O clássico Os Companheiros, de 1963, foi censurado no País pelos militares
Luiz Carlos Merten
Admiradores de longa data decepcionaram-se ou ficaram surpresos com o suicídio de Mario Monicelli, aos 95 anos. Nada, na obra do grande diretor de comédias italianas, sinalizava para essa decisão tão radical. O próprio humanismo que Monicelli evidenciou em momentos importantes parecia desautorizar a possibilidade do gesto. Poucos, como o também diretor Hector Babenco, entenderam aquilo como a derradeira encenação – a última mise-en-scène. Como Alfred Hitchcock, que armou um funeral sem corpo – a última piada do mestre do suspense -, Monicelli tinha reservas de surpresa até o último suspiro.
Eis que, postumamente, como um presente natalino, ressurge um de seus clássicos – Os Companheiros, I Compagni, de 1963. O espectador que hoje assiste ao filme não tem ideia do que era o clima – político – há 45/46 anos. Naquela época, os filmes não chegavam tão rapidamente ao circuito. Quando Os Companheiros estreou, a ditadura militar já se instalara no poder e o filme – com Marcello Mastroianni como o Professor Sinigaglia, que percorre a Itália, no século 19, tentando unir os trabalhadores – imediatamente entrou para o índex das obras malvistas e, depois, proibidas. Só que, antes da interdição, Os Companheiros já virara um dos filmes mais populares daqueles tempos, o mais visto em sindicatos e universidades.
Era um símbolo de resistência e o próprio Monicelli, em 1984, visitando o Brasil, surpreendeu-se com a fama do filme. Na Itália, não teve tanta repercussão, “talvez por ser muito forte”, ele arriscava. Ele já dirigira Mastroianni em 1958, em Os Eternos Desconhecidos, antes que o ator virasse alter ergo de Federico Fellini, Sinigaglia é um personagem atípico, até para Mastroianni. Por volta de 1960, ele já se estabelecera como o intérprete preferido dos maiores – Fellini, Michelangelo Antonioni, Luchino Visconti, Valerio Zurlini -, construíra a fama de latin lover. Era viril sem ser bronco, um homem sofisticado e sensível. Quando transmitia angústia, ela era palpável. Mastroianni nunca precisou ser histriônico, embora eventualmente o tenha sido, para transmitir emoções.
Embora “professor”, Sinigaglia quer ser, ou é, um homem do povo, como os trabalhadores e prostitutas com quem convive, todos perseguidos, como arruaceiros ou perturbadores da ordem social, pela autoridade constituída. Boa parte da arquitetura dramática de Os Companheiros vem daí, mas o filme também expõe as condições de trabalho nas primitivas fábricas e usinas – o trabalho escravo do homem, a coisificação da mulher. O que Sinigaglia propõe é a greve como ferramenta, a consciência que vai unir os trabalhadores no sindicato.
Num certo sentido, tudo isso remete a uma outra era, mas justamente a empatia e a qualidade da realização impedem o filme de ser um fóssil. Como todo grande autor de comédias italianas, Monicelli é tragicômico. Em seu cinema, o que diverte também emociona, a ponto de fazer chorar. O elenco traz Annie Girardot e Renato Salvatori – casados, na época, depois de fazerem aqueles papéis em Rocco e Seus Irmãos -, Folco Lulli, François Périer. Homem de esquerda, Monicelli definia-se como socialista, nunca comunista. “Nunca fui de me submeter à disciplina partidária que o PCI cobrava de seus militantes. Seria incompatível com a liberdade em que acredito.” Corroído pelo câncer, ele levou à última fronteira a sua busca de liberdade. Grande artista.
OS COMPANHEIROS
(Itália, 1963)
Direção: Mario Monicelli
Lançamento: Lume. PB.
Preço: R$ 39,90
Fonte:O Estado de S.Paulo(15/12/2010)
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