sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O Complexo do Alemão e outros (Fábio Wanderley Reis)

As brigas e barganhas da luta por cargos não bastam para alterar o modorrento anticlímax do pós-eleição e da transição continuísta. E, apesar da polêmica novidade das revelações do WikiLeaks, o assunto de mais denso interesse do noticiário recente é com certeza a ação da aparelhagem estatal contra fortalezas do tráfico de drogas e da criminalidade no Rio de Janeiro.

A pergunta maior a respeito, que a imprensa repetiu, é por que essa ação demorou tanto a acontecer. Nessa forma, ela apenas aponta um efeito mais evidente de complicações sociológicas maiores. A indagação real, que remete às raízes profundas da desigualdade social do país, é a de como é possível, em nada menos que o Rio de Janeiro, a ocorrência de situações em que criminosos impedem a presença do Estado e controlam grandes parcelas de território por anos a fio, a ponto de que até o aspecto físico dos lugares envolvidos seja novidade digna de ser mostrada na televisão.

Posta em termos simples, a resposta é que, enquanto as populações afetadas forem cidadãos de segunda classe e favelados, o absurdo aí contido na verdade não tem maior importância aos olhos dos cidadãos "reais" e, portanto, aos olhos do Estado. A importância surge quando a violência transpõe os limites das "comunidades" marginais e alcança a classe média e a "elite", como vimos acontecer em São Paulo há algum tempo e de novo agora no Rio. O que não quer dizer que a dramaticidade especial de tais transbordamentos não seja acompanhada da penetração gradual, na elite, da percepção da ameaça de violência vinda "de baixo" e que dela não brotem reações (afinal, a explosão carioca recente parece dever-se ao menos em parte às UPPs), à medida que a dinâmica das transformações modernas intensifica a interdependência social e impõe, como quer Abram de Swaan ("In Care of the State"), a superação da desatenção e do jogo de empurra da elite por meio da ação centralizada executada pelo Estado.

Mas há outro crucial aspecto de psicologia coletiva associado à desigualdade e à luta contra ela (com a violência como limite negativo), o qual tem a ver antes com as disposições manifestadas pelos próprios estratos socioeconomicamente inferiores. Os estudos sociológicos há muito contrastam o conformismo e a passividade da sociedade tradicional ao sentimento de privação - e de injustiça, ao cabo - que brotaria com as "comparações invejosas" produzidas pelo processo de desenvolvimento econômico e de mobilização social. A presença desse sentimento em parcelas relevantes das camadas carentes da população brasileira sem dúvida é parte, em articulação nefasta com a economia da droga, da explosão de criminalidade e violência no Brasil atual. A superação de tal dinâmica negativa suporia antes de tudo um processo de incorporação socioeconômica ao menos suficientemente acelerado para prover um patamar de oportunidades materiais e educacionais capazes de dar rumo político às insatisfações e reivindicações, ensejando a afirmação e a eventual consolidação de parâmetros institucionais e culturais de cunho socialdemocrático. Menos mal que algo desse processo incorporador temos visto operar, recentemente, em conjugação propícia com o jogo político-eleitoral.

Mas as complicações e dificuldades envolvidas são indicadas pelo exame atento, como o feito por Larry M. Bartels em volume de 2008 ("Unequal Democracy"), da experiência de desigualdade crescente nos Estados Unidos dos últimos decênios. Contrapondo-se à visão em que a desigualdade surge como resultado "natural", ou mesmo bem-vindo em seus efeitos de mais longo prazo, do jogo do mercado livre (com a curiosa adoção de certa velha visão marxista dos automatismos e determinismos históricos que assegurariam o socialismo), Bartels aponta com força, recorrendo ao processamento convincente de dados de grande riqueza, o grau surpreendente em que a nova desigualdade nos Estados Unidos se vincula à disputa partidária e deve ser atribuída, na verdade, a administrações do partido Republicano.

Mas há um outro lado, talvez igualmente desconcertante. As análises de Bartels mostram, por uma parte, a falsidade de ideias como a de que triunfos republicanos recentes se deveriam à suposta conversão dos trabalhadores ou pobres estadunidenses às posições conservadoras na chamada "guerra cultural" (aborto, gays), e destacam a força popular que os temas econômicos mantêm. Por outra parte, contudo, elas evidenciam, e de modo independente do ativismo de lobbies republicanos, a intensidade da adesão cultural de todas as faixas de renda a itens do velho "sonho americano" a que a nova desigualdade, mesmo percebida como fato, se ajusta mal - com consequências de grande importância política quanto à resistência a reformas de inspiração socialdemocrática como as que Obama vem agora tentando.

A cultura importa, mesmo se envolve "hegemonias" tortas. E nosso avanço socialdemocrático pode ver-se desvirtuado pelos legados de um Brasil elitista mesmo quando processos dinâmicos corroem as raízes do elitismo.


Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UFMG.
Fonte: VALOR ECONÔMICO (17/12/10)

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