domingo, 26 de dezembro de 2010

O LEGADO DO FENÔMENO LULA A CONSTRUÇÃO DO MITO LULA (VI)

O paradoxo Lula: Fenômeno político, governo modesto

MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 19/12/2010


Truques dos números oficiais e carisma do presidente inflam desempenho
econômico de gestão que aumentou gastos e investiu menos do que diz


Na economia, o mito Lula não se sustenta em fatos.

Ele é um bem-sucedido resultado da repetição diária de uma versão
triunfalista e de truques numéricos. Em 2010, o país teve o maior
crescimento em 25 anos; mas em parte porque em 2009 caiu 0,6%, a pior
recessão desde 1990.

O presidente termina o mandato com mais de 80% de
popularidade, mas em outubro de 2005 apenas 31% diziam que o governo
era bom ou ótimo. No primeiro ano, Lula aumentou o superávit primário;
nos últimos anos, promoveu uma orgia de gastos. Consolidou um amplo
programa de transferência de renda aos pobres, e fez forte doação de
recursos públicos aos ricos.

Atingiu a menor taxa de desmatamento, mas fincou várias
estacas no coração da Amazônia. Quem vê só a cena final, não entende o
filme.

Quando lançou o primeiro PAC, em 2007, o governo disse que
seriam investidos mais de R$ 600 bilhões, mas investiu menos de 1% do
PIB por ano, em média. É preciso paciência para separar a fanfarra dos
fatos. Apenas 9% do total é investimento público federal.

Mas o governo põe no mesmo pacote investimentos de
estatais, contrapartidas estaduais, projetos privados e até o esforço
das famílias. Quem pegou um empréstimo no banco e comprou um imóvel,
novo ou usado, ou reformou a casa entrou na conta do PAC.

Aliás, se somar todo o investimento em logística —
rodovias, portos, aeroportos — e mais os de energia — incluindo- se
petróleo — dá menos do que o total de financiamentos para compra ou
reforma de casa. A propósito: apenas 0,2% é de casa popular.

Aquele apartamento que você comprou com seu esforço e
pagará, com juros, por 20 anos, o governo Lula incluiu hoje como ação
concluída no balanço do PAC. Os financiamentos imobiliários, mesmo
junto aos bancos privados, são 48% do PAC. É óbvio que dívidas das
famílias não são investimento público. Para confundir mais, o governo
muda o cronograma das ações para que elas não apareçam como atrasadas.
Dá muito trabalho descobrir o truque embutido em cada número do
governo Lula. A verdade está em estatísticas como as do IBGE que
mostram que, em saneamento, subiram de 56% para 59% os domicílios com
acesso a redes de esgoto. Apenas isso. Não houve a revolução de
investimento público que a propaganda diz.



Os gastos de pessoal, previdência e custeio aumentaram sempre acima do
PIB, e são a pior herança que o presidente Lula deixa para a
sucessora. O gasto não financeiro total da União aumentou 145% entre
2002 e 2009. O número de funcionários civis e militares aumentou em
155 mil. Só de DAS foram 3.200 a mais. De cargos em comissão e funções
gratificadas foram 15 mil a mais. Criou 10 ministérios ou secretárias
com status de ministério.

O governo inchou e aparelhou a máquina.

A carga tributária subiu três pontos percentuais do PIB. E
o país continua tendo déficit nominal.

A projeção do Brasil no exterior se ampliou com a
diplomacia presidencial, mas o país entrou em frias como a do apoio ao
projeto nuclear do Irã.

Sacrificou princípios por uma cadeira no Conselho de
Segurança da ONU, que não conseguiu.

No governo Lula foram desmatados 125 mil km² de floresta
amazônica. Isso equivale a uma área 82 vezes maior que a cidade de São
Paulo, ou ao território de Portugal e Bélgica somados. É 18% menos do
que o total desmatado no governo anterior, mas o risco é o rumo mudar
porque foram lançadas obras que levam o eixo do desmatamento para cada
vez mais dentro da floresta, como a hidrelétrica de Belo Monte e a BR
319, de Manaus a Porto Velho.

O consumo em alta explica grande parte do mito Lula. As
compras cresceram porque a estabilidade foi mantida, a oferta de
crédito dobrou, o salário mínimo aumentou 54% em termos reais.

Além disso houve o Bolsa Família.

Milhões de brasileiros entraram no mercado de consumo, mas
o marco inicial do processo de retirada de pessoas da pobreza e
formação do mercado do consumo de massas foi o Plano Real. Naquela
época, o total de pobres caiu de 47% para 38%. No governo Lula, caiu
para 25%.

O Fome Zero foi abandonado em favor do Bolsa Família, uma
tecnologia mais atualizada, testada pelo Bolsa Escola no Brasil e em
programas similares no México. Teve o mérito de unificar projetos
anteriores, melhorar o cadastro dos pobres e ampliar a rede de
proteção social. Mas a política exige correção urgente. Das suas
distorções, a pior é a de apresentar o benefício como concessão de um
líder paternalista, em vez de ser o direito do cidadão. A queda do
desemprego é um dos grandes ganhos, mas o desemprego entre jovens de
18 a 24 anos ainda está na espantosa marca dos 14%. Na última PNAD,
41% dos trabalhadores ainda estavam na informalidade.

O mundo ajudou nos primeiros cinco anos, quando houve o
melhor momento recente da economia mundial.

De 2003 a 2007, o mundo cresceu de forma acelerada, o
fluxo de capitais para os países emergentes teve um salto exponencial,
o comércio internacional dobrou e os preços dos produtos que o Brasil
exporta explodiram.

O Banco Central acumulou reservas.

Isso foi fundamental para enfrentar a crise mundial que
explodiu em 2008. Mas 2010 termina com um déficit em transações
correntes de US$ 50 bilhões. Nos primeiros anos o Brasil cresceu menos
que o mundo. Nos oito anos, cresceu menos que a América Latina e os
países emergentes. Os juros eram — e ainda são — os mais altos do
mundo.

O tamanho do Estado na economia voltou a crescer, e a
ideia de agências reguladoras independentes foi destruída.

Não houve uma única boa reforma no atual governo. A da
previdência dos funcionários do setor público foi uma grande batalha
inicial. O governo Lula conseguiu aprová-la, em batalhas duras.

No final, foi muito barulho por nada.

A reforma jamais foi regulamentada, e o país voltou à estaca zero.

Só uma vez antes na História deste país houve tanta transferência de
dinheiro público para grandes empresas: no governo militar. O BNDES
recebeu um reforço de R$ 200 bilhões diretamente do Tesouro para
emprestar às empresas. Um dinheiro que custa ao governo o dobro do que
ele cobra dos grandes tomadores. A diferença de taxas é doação aos
ricos.

O BNDES fez escolhas polêmicas: financiou a concentração empresarial,
a compra de uma empresa por outra, sem nenhum ganho para o país ou o
consumidor, nem um único novo emprego gerado. Algumas eram empresas
familiares. Há desastres maiores: o banco comprou ações e emprestou
dinheiro para o frigorífico Independência, que quebrou logo após
receber o dinheiro. As estatais e os fundos de pensão de estatais
entraram de sócios para estatizar o risco em projetos perigosos como
as hidrelétricas da Amazônia, entre elas, Belo Monte. No projeto do
Trem Bala está escrito que, além do dinheiro barato, haverá R$ 5
bilhões de doação para o grupo vencedor caso haja menos passageiros do
que o previsto.

Lula, o metalúrgico, foi um líder de mobilização na Presidência. Usou
todo o seu carisma e capacidade de comunicação para garantir o apoio
ao seu governo num arco que atravessou classes sociais. Lula, o
presidente, se entregou incessantemente ao esforço de autolouvação e
de negação de qualquer mérito em governos anteriores. Teve sucesso
impressionante em obscurecer os fatos. A História permitirá que se
veja o governo Lula com seus méritos e defeitos. Ele manteve as
conquistas da estabilidade da moeda, ampliou o consumo e estruturou
melhor a rede de apoio social. Aprofundou o aparelhamento e o uso da
máquina pública para atender a interesses partidários e pessoais e
capturou os movimentos sociais, tornando-os dependentes do dinheiro
público. Fortaleceu o novo Brasil que nasceu no Real, mas preservou a
sombra do velho Brasil.

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