segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Godard, 80

Godard, 80


Fabrice Cofrini/AFP
Fabrice Cofrini/AFP
Jean-Luc Godard. “O dinheiro foi inventado para que os homens não precisem se olhar nos olhos”, sugere ele em Film Socialisme

Luiz Carlos Merten – O Estado de S.Paulo

Para quem conhecia o cinema engajado e humanista de Mario Monicelli, parecia impossível que um dia o diretor de Os Eternos Desconhecidos, Os Companheiros e O Incrível Exército de Brancaleone fosse se matar. Da mesma forma, Jean-Luc Godard, ao surgir, virou a própria personificação da nouvelle vague. A nova onda foi uma reação aos velhos que dominavam o cinema francês. Quem poderia imaginar o jovem Godard chegando à “melhor” idade? Pois as duas coisas ocorreram, e na mesma semana. A semana comercial começou na segunda com Monicelli jogando-se do quinto andar do hospital em que estava internado. Chega a sexta-feira, com o aniversário de Godard, que hoje completa 80 anos.
Feliz aniversário, M. Godard! Para assinalar a data, a distribuidora Imovision coloca nas telas o novo Godard, que integrou a programação do Festival de Cannes, em maio. Film Socialisme não é apenas o melhor Godard dos últimos tempos – a verdadeira surpresa é constatar que Godard, aos 80 anos, e Manoel de Oliveira, aos 102, que completa este mês, são os que continuam inventando o cinema de “recherche”, o cinema de busca, o cinema autoral.
Citar (relacionando) os dois autores faz sentido porque Film Socialisme se passa durante um cruzeiro marítimo que também é uma viagem por centros formadores da cultura e do cinema universais. Não há como não se lembrar de outro cruzeiro, o que Oliveira empreendeu em Um Filme Falado. Ambos, por sinal, Godard e Oliveira, com todas as diferenças que os caracterizam, acreditam no verbo. Godard prescinde de história, de personagens. É até meio difícil dizer do que, afinal, trata Film Socialisme. Digamos que, como todo Godard, é, acima de tudo, uma reflexão sobre o cinema.
Só sobre o cinema? Godard articula três movimentos para discutir a Europa do século 21. Em Coisas Como, durante uma viagem pelo Mediterrâneo, passageiros e tripulantes conversam em suas línguas (Oliveira já havia feito isso antes). Em Nossa Liberdade, um casal de irmãos exorta os pais para que lhes expliquem o significado de palavras (temas) como liberdade, igualdade e fraternidade. Em Nossas Humanidades, o autor revisita seis lugares fundadores de mitos, falsos ou verdadeiros – Egito, Grécia, Palestina, Barcelona, Nápoles e Odessa. Como o fio condutor é tênue, cabe aos espectador articular esses movimentos, retirando deles seus significados profundos. Duas constatações se impõem, talvez três.
Virulento. O filme é fluido, não evolui por rupturas. Um Godard mais sereno, sem deixar de ser virulento, como de hábito. Termina muito bem, e essa talvez seja a constatação mais impressionante. Godard projeta o espectador – cinéfilo – numa espécie de euforia, nos 15 ou 20 minutos finais. E ele continua singularmente crítico. Quer saber o que é o capitalismo, segundo Godard? Ele diz, no seu filme socialista, mesmo que indiretamente – “O dinheiro foi inventado para que os homens não precisem se olhar nos olhos.” Hollywood? “É irônico que o lugar fundado por judeus seja chamado de Meca do cinema.”
Um pouco da biografia ilumina o gênio. Godard nasceu em Paris, numa família perfeitamente burguesa – pai, médico, mãe pertencente a uma linhagem de banqueiros (como Walter Salles e João Moreira Salles no Brasil). O jovem Godard roubava do avô materno para pagar seus pequenos vícios juvenis, informa Antoine De Baecque em sua biografia, não autorizada mas não interditada, que saiu este ano. E, embora reverenciasse a alta cultura, não era exatamente estudioso – abandonou os estudos de etnologia na Sorbonne. Esses dados biográficos, o segundo, principalmente, têm alguma relevância na obra.
Por volta de 1960, avaliando o fato de os jovens da nouvelle vague fazerem filmes centrados no próprio umbigo, disse – “A honestidade da nova onda consiste em só falar do que sabe, para não falar mal do que não sabe, o que poderia comprometer o que sabemos.” E logo em seguida, em 1962, numa entrevista para Cahiers du Cinéma, ele fez sua autocrítica – “Um filme sobre operários? Adoraria fazer, mas não domino o assunto.” Muitos diretores, os chamados autores, dizem que filmam para descobrir o que não sabem. Francis Ford Coppola, na quarta-feira, em São Paulo, disse que o roteiro é sempre uma pergunta que ele tenta responder fazendo o filme.
Godard não tem essa curiosidade, mas tem outras. São 80 anos de vida e mais de 50 como diretor. Anarquista de direita, virou radical de esquerda. Revolucionou o cinema. Até Hollywood reconhece. Ele está sendo homenageado com um Oscar de carreira. Como iria recebê-lo numa cerimônia fechada, não na grande festa de março, não compareceu. Está certo. Não teria a mesma graça.

Mulheres, fascínio na tela e fora dela

Luiz Carlos Merten – O Estado de S.Paulo

Quase meio século separa o novo Jean-Luc Godard, Film Socialisme, de Viver a Vida, que ele fez em 1962, com sua então mulher, Anna Karina. O primeiro estreia nos cinemas, o outro está disponível em DVD (pela Magnus Opus, em oferta nas lojas).
Há um mistério da mulher no cinema de Godard. Irrompeu logo no primeiro filme, Acossado, quando Jean Seberg, como Patriciá, com acento no A final, pisou na avenida dos Champs Elysées como vendedora do The New York Herald Tribune.
A maneira como diz o nome do jornal, a frase musical, tudo criou um momento mágico que permanece no imaginário do cinéfilo.
Logo no segundo longa, Godard publicou um anúncio no jornal procurando uma atriz para Uma Mulher É Uma Mulher que também o satisfizesse na cama. Pode fazer parte do folclore do filme (e de Godard), mas, como a história é boa, o próprio John Ford (O Homem Que Matou o Facínora) concordaria que deve ser contada.
O filme, Une Femme Est Une Femme, inaugura na obra de Godard um diálogo da mulher com seu corpo, com sua natureza, cujo ápice talvez tenha sido Je Vous Salue Marie, em 1985.
Angelá, em Uma Mulher, quer o filho que Jean-Claude Brialy lhe nega, mas Jean-Paul Belmondo está disposto a fazer. Maria, a mãe de Deus, transformada em mulher moderna, encarna, de certa forma, um dilema parecido.
Entre esses extremos, Jean-Luc Godard fez filmes como Viver a Vida e Uma Mulher Casada. O segundo, curiosamente, foi lançado quando o seu divórcio de Anna Karina estava sendo homologado. Naná (Karina) é, no primeiro, uma prostituta que acredita que poderá vender seu corpo sem perder a alma.
Em 12 quadros, incluindo uma estação no cinema – quando ela chora assistindo a O Martírio de Joana d”Arc, de Carl Theodor Dreyer -, Godard mostra o equívoco de Naná.
Ao longo de sua carreira, Godard muitas vezes entrou em corpo a corpo com os mitos. Aqui mesmo no Caderno 2, há muito tempo, o jornalista gaúcho José Onofre escreveu que ele, como Freud, encara os mitos, sejam religiosos ou não – e não importa de qual religião -, como linguagem.
Linguagem. Tudo é sempre linguagem para Godard. Linguagem do cinema para o diretor, do corpo para sua atriz. O tema da prostituição voltou outras vezes para ele, mas nunca como em Viver a Vida. Magnificamente fotografada – em preto e branco – por Raoul Coutard, Anna Karina olha para a câmera. Ao fundo, a música de Michel Legrand. Naná pode perder a alma, mas o filme permanece como um dos grandes do autor.

Disposição constante para agarrar seu tempo pela garganta

Análise: Luiz Zanin Oricchio – O Estado de S.Paulo

Não basta dizer que Jean-Luc Godard chega aos 80 anos com um trabalho tão ousado e contemporâneo de si mesmo como este Film Socialisme. É preciso também reconhecer que ele nunca deixou de ser assim ao longo de uma carreira que começou (no longa) com Acossado e prossegue até hoje com o mesmo e surpreendente vigor. Desde Acossado (1960), Godard não deixou de provocar esse fascínio contínuo, em especial entre aqueles que cultivam o radicalismo, não como defeito, mas como a virtude dos que têm a coragem de ir à raiz das coisas. A placidez do caminho do meio não interessa a Godard, ou a quem o ama.
Para se ter ideia desse fascínio, um único depoimento basta, o do grande Bernardo Bertolucci. Jovem iniciante na época em que os diretores da nouvelle vague já eram famosos, Bertolucci dizia: “Eu me deixaria matar ou mataria alguém para filmar um único plano como Jean-Luc Godard.” De onde vem essa força? Talvez dessa atitude mesma de tomar as coisas pela raiz, na verticalidade, o que conduziu a sua carreira por caminhos diferentes dos seus então amigos da nouvelle. Não cabe fazer comparações, pois tanto Chabrol como Truffaut, Rohmer e Rivette são brilhantes cada qual à sua maneira. Foi uma geração privilegiada. Mas, se existe um inventor entre eles, esse é Godard. Não apenas porque foi o mais formidável criador de linguagens cinematográficas, mas porque mostrou sempre disposição de agarrar o tempo pela garganta.
Enfrentar o presente com seus desafios e asperezas – isso é algo um tanto diferente daquela atitude meio blasé, cinefílica de direita, do início da nouvelle vague. O Godard engagé vê o maio de 1968 um ano antes, em A Chinesa. Quando seus parceiros começam a se comprazer com as delícias do êxito, milita no coletivo Dziga Vertov, junto com Gorin. É a época do maoísmo intenso, xiita, empedernido, que faz com que muitos companheiros de estrada dele se afastem. Era o tempo, sempre ele, com suas exigências e contradições – e Godard embarca sempre no tempo, seu melhor aliado. Vai produzindo essa obra de filmes inesperados, mas que são, vistos de certo ângulo, como capítulos de um único e mesmo filme. As relações amorosas, a Guerra da Argélia, a prostituição, Kosovo, a crise européia – tudo está lá em obras tão diferentes como aparentadas, que se interpenetram e se comentam entre si, como Uma Mulher É uma Mulher, Os Carabineiros, Viver a Vida, Para Sempre Mozart, Film Socialisme. Um zapping no conjunto da obra nos diz: eis aí um inventor permanente de si mesmo, nunca alheio aos temas do mundo, nunca distante da variabilidade das técnicas e da reutilização das formas. Não é por acaso que Carlos Reichenbach, um dos mais inventivos diretores contemporâneos, o tem em tão alta conta. Não é por nada que Bertolucci o reverencia. Não é gratuito que Tarantino batize sua produtora com o título de um dos filmes de Godard, Band à Part.
Por tudo isso, Godard é também um dos cineastas mais influentes do século. Não se compreende o nosso maior cineasta, Glauber Rocha, sem o conhecimento da cultura nordestina, sem Os Sertões e Guimarães Rosa. Mas não se entende também o seu trabalho sem referi-lo a Brecht, a Eisenstein, a Buñuel e…a Godard. A tal ponto que o crítico da revista Positif, Michel Ciment, amigo particular de Glauber, lhe manda uma carta reprovando O Leão de Sete Cabeças (1970) e dizendo que achava “a influência de Godard nefasta” (Cartas ao Mundo, Cia das Letras, org. Ivana Bentes, p. 370). Ciment podia até estar errado neste caso. Mas acerta ao sugerir que o poder de influência de Godard é tão forte que exige: imitá-lo significa expor-se ao ridículo.
(03/12/10)

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