segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A chegada da república no sertão (Luiz Werneck Vianna)

Não há registro de partidos ou sindicatos no Alemão

Mais alguns dias e começamos nova década e um novo governo, que não deve ser igual àquele que está passando, queiram ou não os principais envolvidos na passagem do bastão presidencial de Lula a Dilma. Os ecos da crise financeira de 2008 ainda ressoam por toda parte, e teme-se uma recidiva. O neoliberalismo, que confiou no protagonismo dos fatos e apostou na desregulação do mercado, na crença de que ele conheceria mecanismos automáticos de correção de desajustes, é, ao menos por ora, uma página virada na agenda do mundo. Em uma palavra, retorna-se a Keynes e ao ideal de um capitalismo organizado, em que política e economia voltam a se encontrar como dimensões interativas.

A globalização, é claro, segue seu curso, mas, a essa altura, sob a desconfiada vigilância de todos os envolvidos que se empenham em higienizar seus sistemas financeiros, racionalizando as suas operações. Sob risco, as economias nacionais passam a depender do tirocínio e de uma intervenção perita das agências especializadas dos seus Estados no sentido de dirimir o impacto da crise, enquanto sondam as possibilidades para os caminhos que levem a uma recuperação. A necessidade da cooperação, tanto no plano nacional quanto no internacional, tem exposto o mundo sistêmico a uma inédita influência das instituições republicanas sobre o seu comportamento.

O governo Dilma nasce, portanto, em um cenário descrente em surtos de modernização, e já não se ouve falar das virtudes do estilo de governar do nacional-desenvolvimentismo, que dominou o discurso de campanha da então candidata. A aceleração do desenvolvimento por políticas de crédito fácil e de uma diversificada e potente ação do Estado no domínio econômico, até ontem um objetivo a ser perseguido, nesse novo cenário é percebida como um lugar de riscos. Há, como se diz, armadilhas na rota do crescimento, e, para evitá-las, até vale o recurso ao ajuste fiscal, antes demonizado.

Não à toa, nas entrevistas dos quadros já identificados como responsáveis pela condução da economia no futuro governo, o lema adotado é o da "administração prudencial" do seu curso, dicção própria ao discurso da social-democracia, avessa àquela do nacional-desenvolvimentismo, que guarda em sua gramática uma concepção fáustica sobre as promessas da expansão das forças produtivas, que não deveria temer, entre outros espantalhos, um certo quantum de inflação.

Como notório, não se chegou a essa mudança por uma operação meramente mental. Foram os fatos - a crise de 2008 - que forçaram o ator a buscar novos paradigmas, a ponto do presidente Lula não se reconhecer na figura do ainda seu ministro Mantega, que, indicado para continuar sua gestão no ministério da Fazenda do governo Dilma, já fala no novo idioma que passará a imperar. Em outro plano, no da sociedade, por uma combinação também errática dos fatos, mas, no caso, afortunada, nota-se a emergência da tópica republicana como o repertório mais adequado para emancipar os territórios das favelas cariocas do domínio exercido sobre elas pelas diferentes facções de narcotraficantes.

Decerto que, desde a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), os germes de uma nova política estavam presentes, cujas origens mais remotas provinham do programa Favela-Bairro, adotado nos anos 1990. Tal programa se fundava no diagnóstico que, na raiz dos males da sociedade carioca, posta em evidência pelo controle territorial e de populações das classes subalternas exercido pelo crime organizado, estava uma certa configuração do Rio de Janeiro como "cidade escassa", na forma do conceito formulado pela socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, de algum modo apropriado, em seu primeiro mandato, pelo prefeito Cesar Maia. Tal diagnóstico se assentava no reconhecimento de que era a falta do Estado e de suas instituições republicanas no mundo popular, especialmente nas favelas, a causa mais funda do "malaise" carioca.

Por vários motivos, a política do Favela-Bairro não prosperou, inclusive pelo fato de que não se enfrentou o tema decisivo da libertação dos territórios ocupados pelas bandas de narcotraficantes, em que se infiltrava um novo e insidioso perigo com a organização das chamadas "milícias", compostas pela banda podre do aparelho policial, que descobrem o caminho eleitoral como recurso de proteção às suas atividades. Coube ao secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, José Maria Beltrame, a fixação do objetivo estratégico da conquista territorial por parte do Estado das zonas sob a ocupação das facções criminosas, a partir da inovação institucional das UPPs.

No plano, o objetivo era o de libertar primeiro as comunidades menos problemáticas, em uma expansão gradual das UPPs, que poderia levar anos até compreender o universo visado. E assim seria não fosse a reação desastrada dos chefes das facções dos narcotraficantes, que recorreram a atos de terrorismo na tentativa de impor um recuo às forças do Estado. O episódio não deixou alternativa às forças da segurança estaduais se não a de recorrer ao governo federal a fim de mobilizar a presença das Forças Armadas. Com ela, efetivou-se a conquista policial-militar do complexo do Alemão, núcleo principal dos narcotraficantes, logradouro habitado por mais de 400 mil pessoas.

Conquistá-lo, porém, para a cidade é tarefa que mal se inicia. Um bom começo está no convênio, há pouco celebrado, entre autoridades do judiciário federal e estadual, do ministério da Justiça e do governo estadual, no sentido de implantar nos territórios resgatados para a cidadania as agências de defesa e promoção dos seus direitos. Animar e proteger a vida mercantil nessas comunidades é outro ponto obrigatório na agenda de ampliação da cidade para um lugar que antes foi apenas um sertão dominado pela lei do mais forte, ou bandido ou policial. A república, quer na dimensão macrossocial, quer na micro, nos tem chegado por imprevistos, mas já passou da hora a entrada em cena do ator.

Em tempo: no complexo do Alemão não há registro da presença dos partidos políticos, nem dos sindicatos. Em Palermo, cidade que viveu sob o terror da máfia, havia.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional.
Fonte: Valor Econômico (20/12/10)

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