sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

UM DRUMMOND PARA UM ANO NOVO

RECEITA DE ANO NOVO

Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Formato do cérebro pode interferir na opção política

Partes do órgão determinariam ponto de vista
Joe Churcher Do Independent – O GLOBO

● Neurocientistas estão investigando se as alianças políticas são determinadas no cérebro, depois de encontrarem evidências de que algumas estruturas no órgão de conservadores são diferentes das de esquerdistas. Análises de imagens de cérebros de 90 estudantes na University College London (UCL) mostraram “forte correlação” entre duas áreas da massa cinzenta e pontos de vista.
As pessoas que se dizem de direita tinham a amígdala — uma parte primitiva do cérebro associada com a emoção — mais pronunciada, enquanto os seus opositores políticos apresentavam o cingulado anterior mais espesso.
A pesquisa foi coordenada por Geraint Rees, diretor do Instituto de Neurociência Cognitiva da UCL, que se mostrou “muito surpreso” com o resultado, que está sendo revisado por pares antes de ser publicado em 2011. O estudo foi financiado pela produção do ator Colin Firth, para o seu programa de rádio da BBC, mas está sendo aplicado para investigar se os homens são programados para assumir uma determinada tendência em política.
Rees disse que, embora o seu estudo não seja preciso o suficiente para prever a posição política de alguém a partir de análises de imagem do cérebro, houve uma forte correlação em todos os testes científicos.

Novo governo é PT, mas Dilma não é Lula (Maria Inês Nassif)

A vida do partido mudou no governo e mudará mais ainda

A vida do PT mudou muito, desde que assumiu pela primeira vez a Presidência da República, em 1º de janeiro de 2003. Num primeiro momento, sofreu perdas importantes de quadros internos, absorvidos pelo governo que começava. A ausência de uma direção forte, como a que existia sob José Dirceu, presidente do partido entre 1994 até a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, e de quadros históricos que foram para o ministério petista, fizeram ascender nas instâncias partidárias quadros que se firmaram por posições consolidadas na máquina burocrática do partido, centralizada por José Dirceu no momento anterior. Eram quadros sem grande liderança interna, apoiados por um Campo Majoritário que também estava presente com muita força no governo.

O PT foi atingido em cheio pelo Escândalo do Mensalão, em 2005. Ficou credor de Lula, que com sua liderança pessoal ganhou a disputa pela reeleição, em 2006, enquanto o partido, abalado pelos escândalos, chegou a reduzir a sua bancada na Câmara.

Os escândalos levaram junto lideranças que tinham uma grande ascendência sobre a máquina partidária. José Dirceu, o presidente do partido que articulou o Campo Majoritário, estava fora. O grupo paulista foi muito atingido. A renovação tornou-se inevitável. Como o PT tinha prática de articulação orgânica, e não tinha mais lideranças absolutas, acabou fazendo uma transição menos traumática do que era previsto. A perda de setores mais à esquerda facilitou a articulação de novos termos de convivência entre as facções que ficaram. Ao mesmo tempo, o avanço do partido fora de São Paulo e a redução da força petista no reduto paulista ajudaram a ascensão de outras lideranças, em especial do Nordeste.

Para resgatar seu eleitorado, o PT precisou da liderança pessoal do presidente Lula. Volta ao Congresso, depois das eleições deste ano, como primeira bancada na Câmara e segunda no Senado. A relação com o novo governo, todavia, será outra.

Há quem aposte na total dependência de Dilma Rousseff ao partido, já que seu vínculo com o PT é muito menos forte que o de Lula - e a presidente eleita depende do apoio do seu partido no Congresso. Há quem assegure o contrário: que o PT, em disputa dentro do governo com o PMDB, será subserviente à presidente eleita. A soma de um presidencialismo forte como o brasileiro e um partido articulado como o PT, todavia, pode resultar numa relação talvez mais equilibrada do que a mantida entre o PT e Lula. Partido e presidente se misturavam, tanto internamente como para o eleitor, embora Lula, depois de 2005, tenha se tornado muito maior do que o PT. Dilma e o PT não se misturam, mas dependem um do outro. Isso não é uma desvantagem, mas apenas um dado novo, que indica que a relação da presidente eleita com o seu partido será diferente. Se a distância entre ambos se resolver com a formulação de políticas públicas e no debate político, essa relação pode ganhar qualidade. Se ficar na disputa por espaço político no governo, pode perder qualidade. É o que se saberá a partir de 1º de janeiro.

Se Dilma Rousseff fizer do debate político o elemento de ligação com o seu partido, poderá manter nos mesmos termos a relação com outros partidos aliados de perfil clientelista, como o PMDB. A presidente eleita tem a seu favor também uma base de apoio parlamentar reforçada, que Lula não teve a sorte de ter em nenhum dos seus dois governos. Isso fortalece Dilma e enfraquece os partidos da coalizão, já que as dissensões podem ter efeito limitado de pressão dos partidos sobre o governo. Nos dois mandatos de Lula, se uma parcela muito grande do PMDB roesse a corda, não era possível aprovar nenhuma medida importante. Hoje, a base é mais diversificada. A dissidência pode prejudicar mais ao partido desunido do que ao governo.

Existe ainda um espaço para o governo avançar na base oposicionista. Lideranças do DEM e do PSDB que têm um eleitorado mais tradicional se ressentiram muito nas últimas eleições e estão com grande dificuldade de sobrevivência. Essa é uma perspectiva que fortalece a posição do novo governo, mesmo que a adesão desse setor oposicionista não se concretize.

No dia 1º de janeiro, um carro aberto desfilará com a primeira mulher eleita presidente do Brasil. Há oito anos, o carro que se movia lentamente pela Esplanada dos Ministérios levava o primeiro operário eleito para o cargo mais alto da República. A história andou muito a partir de 1989, primeiras eleições diretas para a Presidência da República, num ritmo mais acelerado do que o carro que desfila com presidentes empossados.

Há quase 47 anos o Brasil iniciava seu último período ditatorial. Faz 25 anos que acabou o último governo militar. 21 anos nos separam da primeira eleição direta para presidente; e há 20 anos se promulgava a nova Constituição brasileira.

Uma geração que já é adulta nasceu na democracia e sequer tem lembranças do período negro da ditadura. Essa geração não tem a dimensão do que é, para a história do país, o fato de uma mulher que foi presa política assumir a presidência da República. Isso é história em seu estado puro.

Maria Inês Nassif é repórter especial de Política.
Fonte: VALOR ECONÔMICO (30/12/10)

''Democratização'' ou mero desvio? (Eugênio Bucci)

A manchete da Folha de S.Paulo de terça-feira passada jogou luz sobre uma das mais soturnas caixas-pretas da administração federal: o uso de verbas públicas em campanhas publicitárias. Planalto pulveriza sua propaganda em 8.094 veículos, informou a chamada no alto da primeira página. A reportagem, assinada por Fernando Rodrigues, conta que de 2003 até hoje houve um aumento de 1.522% no número de órgãos de imprensa que recebem recursos federais como receita publicitária. Eram 499 em 2003 e somam hoje 8.094. Mas - atenção - não houve um crescimento significativo do gasto total. Os dois governos Lula investiram, em média, R$ 2,3 bilhões por ano em publicidade (aí incluídos os custos de produção das campanhas, mais as verbas de patrocínios destinadas a projetos esportivos e culturais), valor que não se distancia substancialmente do que foi empregado na gestão de Fernando Henrique Cardoso. A diferença entre eles foi o que a reportagem da Folha chama de pulverização.

No linguajar de apoiadores do governo atual, a palavra mais adequada não seria pulverização, mas "democratização". Ontem, em discurso no complexo industrial e portuário de Suape, em Pernambuco, o próprio presidente Lula foi ainda mais retumbante. Vangloriou-se de ter resolvido "socializar" o dinheiro de publicidade. A tese do discurso do presidente e de seus apoiadores é primária: dar recursos públicos a muitos soa mais "democrático" do que dá-los a poucos. Verdade? Não necessariamente. Demagogia? Sem dúvida. Primeiro, porque o grosso do dinheiro foi para os veículos dominantes - como sempre, o principal foi para os de sempre. Depois, porque o atual governo usou alguns trocados não para tornar a sua comunicação mais eficiente, mas para fazer média com os jornais e as emissoras de menor porte.

Antes de entender - e desmontar - as justificativas do discurso oficial de "democratização", lembremos que, sobre esse assunto, os governos se sucedem sem detalhar valores. Publicidade oficial, como já foi dito, é caixa-preta. O contribuinte não sabe quanto cada veículo recebeu dos cofres públicos e sabe menos ainda sobre os resultados dessas campanhas, pulverizadas ou não Os bilhões de reais despejados em propaganda rendem popularidade para quem governa, mas até hoje não se tem uma única prova de que realizem algo de bom para o interesse público - que, por definição, deveria ser apartidário. Se esses dados fossem divulgados, ficaria explícito que a verba de publicidade oficial vem sendo administrada, no Brasil, mais para melhorar a imagem de políticos (e massagear o ego e o caixa dos empresários de comunicação) e menos, muito menos, para atender ao interesse público.

Nesse quadro, falar em "democratização" é quase um deboche. O gasto do Planalto em propaganda é uma enormidade: R$ 2,3 bilhões correspondem a quase um terço do que a Rede Globo faturou com publicidade ao longo de 2009. Na escala de grandeza do nosso mercado publicitário, é uma fortuna. O Estado brasileiro é um Estado anunciante: somadas, as campanhas dos governos federal, estaduais e municipais alcançam cifras escandalosas e vêm estatizando uma fatia expressiva do mercado.

Além de deboche, a palavra "democratização" é um biombo novo para encobrir um vício velho: o uso de dinheiro público para amaciar a imprensa privada. Essa prática já deveria ter sido varrida pela cultura democrática, mas está aí, intacta, e cresce a cada ano. Não deveria ser assim. Quando compra espaço publicitário, o agente público deveria orientar-se pelo dever de buscar o melhor serviço pelo menor preço. Deveria buscar o veículo que lhe dá acesso à audiência pretendida nas melhores condições. Ponto. Quanto a isso, a compra de espaço publicitário pelo Estado não é diferente da compra de aparelhos de ar-condicionado, de computadores ou de vacinas. Há agentes públicos que se vangloriam de distribuir a verba publicitária de acordo com a participação dos veículos no mercado, dando a esse critério um peso aparentemente absoluto. É claro que se devem levar em conta as audiências gerais de cada veículo quando se concebe uma campanha governamental, mas esse não é nem deve ser o fator decisivo. Se fosse, o Estado deveria comprar vacinas não pela qualidade, mas pela participação de cada laboratório no mercado. Compraria um pouquinho de cada laboratório. O mesmo deveria ser feito com a compra de aparelhos de ar-condicionado e de computadores. Enfim, se esse for o critério determinante, teremos de dizer adeus ao princípio - democrático - das licitações.

O argumento mais grave e mais falacioso, no entanto, é outro. Há burocratas que posam de justiceiros e garantem que "pulverizando" as verbas fortalecem os veículos "alternativos" contra a "mídia conservadora". Parece incrível, mas é o que dizem. Ora, se o governo quer estimular a diversidade da imprensa, que crie linhas de fomento, com financiamentos que possam ser - aí, sim, democraticamente - disputados pelos interessados, mediante regras públicas e transparentes. Usar dinheiro de publicidade para fortalecer os "alternativos" não consta das diretrizes legais para a publicidade oficial. Esse argumento, portanto, não tem sustentação legal. Se o gestor público que favorece jornaizinhos de parentes age mal, aquele que dá uma força aos sites dos correligionários age mal do mesmo modo. Nos dois casos, o servidor extrapola o seu poder discricionário. E, mais do que isso, deixa claro que, para ele, não importa se a mensagem oficial será recebida e compreendida pelo público esperado; seu negócio é fazer média com os veículos.

Concentrada nos grandes ou "democratizada" nos pequenos, a publicidade oficial tem sido a moeda dos governos para relações promíscuas com a imprensa. Até quando?

Em todo caso, feliz 2011.

Jornalista,é professor da ECA-USP e da ESPM. Filiado ao PT desde 1980. Foi criador e 1º editor da revista Teoria em Debate. De 2003 a 2007, dirigiu a Radiobras (Empresa Brasileira de comunicação).
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO (30/12/10)

Lula e a política do óbvio (Rolf Kuntz)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anda repetindo uma nova frase de efeito, boa como propaganda e, como de costume, sem compromisso com os fatos. Ele se vangloria de ter feito somente o óbvio. Por isso, acrescenta, foi fácil governar e promover mudanças importantes. Se esse fosse o balanço de uma empresa aberta, a Comissão de Valores Mobiliários deveria impugná-lo. Os pontos verdadeiros são relevantes, mas escassos. Se fazer o óbvio é agir com bom senso, o presidente aderiu à obviedade ao manter o tripé da política macroeconômica - metas de inflação, câmbio flexível e superávit primário. Acertou também ao respeitar o acordo de autonomia do Banco Central, um dos poucos núcleos de competência da administração federal nos últimos oito anos.

Fez o óbvio, igualmente, ao ampliar os programas de transferência de renda, lançados com sucesso na administração anterior. Os demais acertos também foram construídos sobre alicerces amplamente renovados e reforçados na década anterior. E é sempre instrutivo repetir: o oposicionista Lula e seu partido combateram essas mudanças. Contestaram o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o câmbio flexível e o plano de recuperação bancária, alardeado por Lula, anos depois, como exemplo para o mundo rico.

Mas, se o óbvio é o sensato, Lula fez o oposto do óbvio em boa parte de sua gestão. Na educação, deu prioridade à multiplicação de faculdades e à ampliação de matrículas em cursos universitários. Fez muito barulho com esse tipo de ação, realizável sem esforço e muito rentável politicamente. Mas deixou em plano inferior questões muito mais urgentes. A educação fundamental continua muito ruim, a taxa de analfabetismo funcional pouco variou (cerca de um quinto dos brasileiros com 15 anos ou mais) e o acesso ao nível médio permanece afunilado. Tudo isso tem sido confirmado pelo IBGE e pelo fracasso dos estudantes brasileiros nos testes internacionais.

Lula também não fez o óbvio em relação ao sistema político. A liberdade de imprensa é obviamente essencial à democracia, mas o governo petista várias vezes tentou restringi-la. No primeiro mandato, o presidente mandou ao Congresso um projeto de censura (essa palavra resume bem o propósito). A tentativa foi repelida e ele negou sua responsabilidade. O Executivo, segundo ele, apenas enviou ao Legislativo um projeto concebido fora do governo. Não haveria uma desculpa menos grotesca?

O ataque foi retomado nos anos seguintes. O impropriamente chamado Decreto dos Direitos Humanos continha novas ameaças à liberdade de informação e de opinião e foi apoiado por defensores do "controle social" dos meios de comunicação. Esse controle foi incluído no programa do PT, registrado pela candidata Dilma Rousseff e em seguida por ela renegado.

Milícias e movimentos atrelados ao governo são uma óbvia ameaça à democracia. Mas o presidente aceitou conversar com arruaceiros, como os invasores do Ministério da Fazenda, e promoveu o peleguismo sindical e estudantil. Pela primeira vez na história um dirigente da UNE se declarou estudante profissional e afirmou ser obrigação do governo dar dinheiro a entidades estudantis.

Seria óbvio valorizar a profissionalização do setor público. O governo preferiu o aparelhamento e o loteamento. Outra obviedade seria limitar a carga tributária para tornar a economia mais competitiva, mas a tributação cresceu sem parar, para sustentar uma administração ineficiente e gastadora.

Na política externa, o óbvio seria dar prioridade aos interesses do País. Mas a diplomacia petista resolveu apoiar tiranos e tiranetes e desprezar os acordos comerciais mais promissores. A escolha dos parceiros "estratégicos" nunca envolveu reciprocidade e os interesses nacionais foram sacrificados até na América do Sul. Compradores de manufaturados brasileiros, como os Estados Unidos, foram negligenciados.

A ascensão da China à condição de mercado número um foi celebrada como façanha diplomática. Mas para a China, o Brasil é uma fonte de commodities. Teria pelo menos o mesmo papel com outra diplomacia. Os chineses precisam desses produtos e os brasileiros podem fornecê-los. Na relação com os emergentes, não se ganhou nada mais do que se ganharia sem o carnaval terceiromundista. O País fez papel de bobo em troca de apoios irrelevantes à pretensão de integrar o Conselho de Segurança. Na relação com os Estados Unidos, oportunidades foram perdidas para países com políticas mais adultas - como a China e emergentes até da América do Sul.

Jornalista
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO (29/12/10)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

De Lula para Dilma (Marcos Coimbra)

Nos balanços sobre o governo Lula que nestes dias pululam, o tom, na maior parte das vezes, é uma mistura elogios e críticas. Há os que unicamente encontram motivos para desmerecê-lo, mas são raros. Salvo um ou outro dinossauro da antiga direita e os cômicos personagens da “nova direita” da mídia, quem tem um mínimo de bom senso sabe que avaliá-lo desse modo é bobagem.

Também existem os que acham que tudo foi uma maravilha, que Lula não pode ser cobrado por nada, pela simples razão de que só acertou. São ainda menos frequentes, mas, vez por outra, ainda aparecem, especialmente entre lulistas da velha guarda.

Quase sempre, os balanços procuram ser equilibrados, ressaltando acertos e erros, sucessos e fracassos. Como, no entanto, a verdadeira imparcialidade não existe, mesmo esses revelam de que lado estão os autores, se são mais ou menos favoráveis ao governo.

Do lado positivo, o grande consenso é a política social, capitaneada pelos programas de transferência de renda e cujo carro-chefe o Bolsa-Família. Só os preconceituosos não veem sua importância e insistem no discurso de que ele perpetua a pobreza e aumenta a dependência dos beneficiários. A evidência de que isso não é verdade é tão ampla que somente a desinformação explica a sobrevivência do estereótipo.

Do lado negativo, até quem simpatiza com Lula costuma arrolar o mensalão e os escândalos de corrupção como as “manchas” de seu governo, seu pecado capital. Quando o assunto chega aí, mesmo o mais ardoroso petista fica intimidado e prefere desconversar.

No meio, entre o Bolsa-Família e o mensalão, temos o vasto território de tudo mais que o governo fez: política econômica, relações internacionais, políticas setoriais, relações com os Poderes, ação política. A respeito desse conjunto, prevalece a visão de que Lula acertou mais que errou, quando se põem na balança as iniciativas de seus dois mandatos.

Para quem não gosta de Lula, o saldo é positivo mais pelo que ele deixou de fazer, quando manteve as linhas mestras da herança de Fernando Henrique, a começar pela política econômica e o princípio da responsabilidade fiscal. Quem o admira ressalta o oposto, as mudanças realizadas na gestão da economia e o caráter inovador das medidas que criaram o ambiente de desenvolvimento que levou o país aos resultados a que chegamos.

Enquanto os analistas fazem sua contabilidade, as pesquisas de opinião revelam uma opinião pública muito mais favorável a Lula. Se as pessoas comuns pensassem como os entendidos, o presidente não estaria encerrando seu período com 87% de aprovação e Dilma talvez não tivesse sido eleita ao assumir o compromisso de continuar seu trabalho.

Sempre se pode dizer que o povo está errado, que foi e continua a ser enganado por Lula, que, com sua habilidade e seu “poder de comunicação”, manipula os sentimentos dos cidadãos “mais simples” (nunca os da classe média “mais lúcida” e de seus intelectuais, que se mantêm “vigilantes”). Ou seja, que Lula “não merece” a boa avaliação que recebe, e que Dilma ganhou a eleição em consequência da combinação de esperteza e falta de escrúpulos de seu mentor.

Mas podemos olhar a aprovação de Lula e a vitória de Dilma de outra premissa, reconhecendo que o povo é perfeitamente capaz de fazer julgamentos racionais. Em outras palavras, procurando entender o que quer dizer um presidente que termina um governo tão longo com tamanha popularidade.

O Lula de antigamente virou o Lula deste final de 2010 em função de duas comparações e como resultado de uma aposta bem sucedida. Ele foi melhor como presidente que todos que a população conheceu e superou a expectativa que as pessoas tinham do que seria. E fez com que aqueles que votaram nele achassem que acertaram quando confiaram em alguém como ele, apesar de tudo que tinham ouvido (e continuaram a ouvir) em contrário.

É claro que foi por isso que Dilma ganhou e que vai começar a governar com a torcida quase unânime da população. A esperança de que ela será uma presidente tão boa ou melhor que Lula é mais uma prova da admiração que o povo tem pelo trabalho feito nos últimos anos, no qual ela foi peça fundamental.

Tomara que estejamos (quase) todos certos!



Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi

Na despedida de Lula, lamento destoar do clima de louvação (Bolivar Lamounier)

Na obrigação de escrever alguma coisa, tentarei dar uma arrumação nova a avaliações que vez por outra andei fazendo neste espaço.

Na área econômica, eu penso que Lula acertou em cheio ao jogar no lixo as idéias do PT e manter a política do governo anterior . De fato, ao assumir, em 2003, Lula não alterou o tripé de política econômica que encontrou : metas de inflação, câmbio flutuante e Banco Central livre de interferência política ; para presidir o BC, teve inclusive o cuidado de buscar um banqueiro acima de qualquer suspeita, com o que evitou prevenções nos mercados financeiros e conservou a estabilidade a duras penas alcançada no período anterior.

Por mais que falasse em “privataria” e em “auditoria”, Lula não moveu uma palha no sentido de reverter as privatizações efetuadas nos anos 90. Ao contrário, instruiu o PT a abortar no Congresso uma proposta do PSOL, que queria um plebiscito sobre a privatização (e eventual reestatização) da Vale. Nos últimos dois anos, já sob a influência de Dilma Rousseff e em conexão com o pré-sal, o espírito estatizante voltou forte; até onde irá, não sabemos.

Mas aí acabam os acertos, ou não-erros. Para começar, o legado de Lula para Dilma inclui índices de inflação já bastante incômodos e uma situação fiscal preocupante, necessitando de sério ajuste.

Na infra-estrutura – energia elétrica, rodovias, portos, aeroportos…-, a presidência Lula pode ser considerada desastrosa. Uma das causas do desastre foi a qualidade manifestamente deficitária da gestão, mas que dizer do financiamento?

Oito anos atrás, a inexistência de recursos públicos para os investimentos necessários era de conhecimento geral. Que foi feito das PPPs (Parcerias Público-Privadas), cuja lei foi aprovada no Congresso logo no inicio do primeiro mandato? No ambiente internacional favorável daquele período, por que não se tratou de atrair capital estrangeiro para essa área?

Estou falando do passado, mas o desastre ficará ainda maior se os trabalhos relacionados com a realização da Copa do Mundo e da Olimpíada se atrasarem – e por ora é difícil crer que isso não vá acontecer.

Chegando ao final de seus dois mandatos, Lula parece convencido – e isto é grave – de haver descoberto a pedra filosofal. Pensa que a economia brasileira cresceu vigorosamente nos últimos anos graças a méritos inexcedíveis de seu governo. Às vezes fala como se não se desse conta de que o motor do nosso crescimento é o progresso da Ásia, em especial o da China. Dir-se-á que o governo soube aproveitar tal oportunidade. Ora, espantoso seria se não tivesse sabido.Seria como não perceber um elefante entrando numa residência de dois cômodos.

Na área social, também, Lula acertou, e muito, ao manter e expandir programas iniciados pelo governo anterior. Foi rápido no gatilho quando se desfez do Fome Zero, que não iria a lugar nenhum, e adotou o Bolsa-Família. Não vem ao caso inquirir aqui por que Lula nunca deu o devido crédito ao governo Fernando Henrique – cálculo eleitoral, certa inclinação de personalidade, sabe-se lá.

Mas chega a ser desfrutável, convenhamos, a pretensão de elevar as políticas sociais do período Lula à condição de um “novo modelo de desenvolvimento”, como consta na tese de doutoramento em economia do senador petista Aloísio Mercadante, defendida dias atrás na Unicamp.

De corrupção, eu talvez nem precisasse falar, mas não posso passar batido sobre o que Lula disse anteontem numa entrevista. Segundo ele, pior que o mensalão teria sido o acidente com o avião da TAM em Congonhas. Eu não estou seguro de haver captado a mensagem que Lula pretendeu passar. Quereria ele talvez dizer que não houve corrupção em seu governo, ou que a corrupção, se aconteceu, foi desimportante, insuficiente para lhe causar algum abalo? Sem faltar ao respeito com S.Exa., atrevo-me a indagar se não haverá em sua fala um quê de autismo, considerando-se que a corrupção em seu governo começou com Valdomiro Diniz e culminou em Erenice : o mensalão foi o meio do caminho.

Na área propriamente política, as últimas declarações de Lula vêm sendo mais uma vez instrutivas. Um dia ele diz que não descarta voltar em 2014. No dia seguinte, diz que Dilma será sua candidata em 2014. A imprensa correrá atrás, tentando adivinhar quais são afinal as reais intenções de Luís Inácio.

Eu me limito a lembrar um ilustre comunicólogo de cujo nome não me lembro: “o meio é a mensagem”. Lula passará os próximos dois ou três anos propalando ambigüidades, disseminando contradições, afirmando uma coisa e seu contrário, com um único objetivo – manter sua imagem permanentemente associada a uma palavrinha de sete letras: eleição.

Para concluir, direi três ou quatro palavras sobre os desafios que Dilma irá enfrentar a partir de sábado. Inflação, ajuste fiscal, reformas, Congresso? Sim, isto é óbvio.

Mas o que me chamou a atenção esta semana foram dois números que apareceram na imprensa: no governo Lula, 83% dos cargos de livre nomeação foram preenchidos por petistas, e 49% por sindicalistas. São números eloqüentes. Eles mostram que Lula e o PT montaram no governo uma subestrutura – um aparelho – do qual Dilma dificilmente conseguirá se livrar.

Quer queira mesmo voltar em 2014 ou não, o ponto de referência e principal interessado nessa subestrutura é evidentemente Lula.

Os fatos mencionados sugerem duas hipóteses. Primeiro, como é óbvio, a presidente Dilma Rousseff corre o risco de ter um poder paralelo permanentemente nos calcanhares. O bom relacionamento dela com Lula pode atenuar, mas não elimina por completo os problemas a que essa situação pode levar.

Segundo, por aí se pode apreciar o amplo panorama histórico da evolução do PT. A fase da pureza ética e do discurso proto-revolucionário (“contra tudo o que aí está”) acabou. Era uma “doença infantil”. Sobrevive apenas nas margens, como uma canção de ninar ainda útil para embalar o sono dos ingênuos.

Na fase atual, o que há é um projeto de poder, um guarda-chuva remunerativo sob o qual militantes, sindicalistas, ONGs e apparatchiks de vários tipos e origens se acomodam. Para maior glória do lulismo e sob os auspícios do contribuinte.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O complexo do Alemão e a república (Luiz Werneck Vianna)

Com o episódio de ocupação do complexo do Alemão, santuário do narcotráfico encravado em uma região estratégica da cidade do Rio de Janeiro, a experiência republicana brasileira trava uma batalha que não admite recuo. É vencer ou vencer, embora as circunstâncias não lhe sejam afortunadas, quer porque ela não teve como escolher a hora, que lhe chegou de modo inesperado, nem ainda dispõe dos meios e de quadros qualificados a fim de converter uma cidadela de quatrocentos mil habitantes, há décadas vivendo sob uma ordem imposta por senhores de guerra, em um espaço citadino.

Em sua concepção original, a política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPS) previa a sua imposição primeiramente nas comunidades faveladas de baixo risco, recolhendo experiências e conquistando o apoio da população, daí passando a agir nas mais problemáticas. Nessa escala, certamente o complexo do Alemão deveria ser uma das últimas, se não a última, inclusive pela natureza da sua geografia, a ser objeto de uma UPP. A reação dos narcotraficantes, sob as ordens de núcleos com base nesse complexo de favelas, que desencadearam uma série de ações terroristas em alvos indiscriminados da cidade, obrigou a mudança de cálculo: tornou-se imperativo começar pelo fim.

Concluída com sucesso, a operação político-militar de ocupação daquele território, a sociedade teve diante de si, nas telas da TV, a exposição nua de uma cidade de médio porte que vivia em um mundo paralelo à margem do Estado e de suas leis e serviços públicos, e que tinha aprendido a construir uma rotina em meio a um campo de guerra e às ameaças das balas perdidas. Nas imagens repetidas à exaustão, além das tropelias da incursão policial-militar, viam-se os movimentos das pessoas em suas fainas cotidianas, com suas sacolas de compras, em suas idas e vindas para os lugares do seu emprego, visíveis, em toda parte, os sinais de uma intensa vida mercantil.

Mas, em meio a tantas indicações de uma natureza bem assentada da vida privada, nada havia ali que denotasse a presença do público e do cidadão. Ali estavam indivíduos treinados a buscar suas condições de sobrevivência como seres especializados a viver na bolha da esfera privada, uma das quais, essencial, era a própria ocupação do solo sobre o qual tinham construído suas habitações, principal refúgio para evitar a lei da selva imperante no território.

Ali estava, em uma das principais cidades do país, um espaço em que o exercício da autonomia deveria se confinar à dimensão privada da vida, uma vez que, no mundo da rua, o que cada qual deveria esperar era o estatuto da heteronomia imposta pelos comandos narcotraficantes ou pelo aparelho policial, não sem frequência ocupado por membros da sua banda podre. Sem um lugar institucionalizado para uma fala livre, a comunidade, tal como se constatou, não teve como apresentar qualquer narrativa que exprimisse a situação de terror sob a qual vivia, e nem contou, embora a maioria adulta da população seja eleitoral e faça parte do mundo do trabalho, com uma solidariedade ativa dos partidos e dos sindicatos.

A simples libertação do território é, como se sabe, apenas um primeiro passo. A população inerme, em estado de anomia cívica, destituída de auto-organização, sem vínculos orgânicos com o mundo externo, continua uma presa fácil quer para a reconstituição, em novo formato, dos negócios dos narcotraficantes, quer para sua subordinação a organizações de milícias. Confiar unicamente na intervenção policial-militar, mesmo que permanente, não deve fazer parte das cogitações dos tomadores de decisão quanto ao objeto do complexo do Alemão, alguns com a rica experiência do Haiti. A tópica republicana sai dos livros, e se impõe como um remédio heroico, mesmo para aqueles que sempre a trataram com desdém em nome de nomeadas urgências substantivas.

O paradoxo da situação está no fato de que essa mudança de larga envergadura nas relações do Estado e dos seus governantes com os setores mais sensíveis das classes subalternas - a imensa população que habita as favelas -, se apresente como uma resposta à ação do narcotráfico, que contém, registre-se de passagem, um evidente elemento de rebelião juvenil quanto a um sistema de ordem excludente e discriminador. Se, ali, agora, a república conta com uma oportunidade para criar raiz, deve-se, de algum modo, a eles, pois foi a partir do domínio terrificante que impuseram nos territórios que ocupam, que a demanda por ela se tornou uma questão geral, socialmente necessária, quando ficaram patentes os efeitos perversos de deixar a tantos à margem da cidade, dos seus valores, direitos e oportunidades de vida.

A tarefa é de perder o fôlego e exige o envolvimento de todos, da universidade, dos intelectuais, dos especialistas, dos partidos, sindicatos, associações empresariais, além das autoridades governamentais envolvidas, que, diante da gravidade da situação, não podem mais agir segundo sua própria discrição. Estão maduras as condições para a constituição de um fórum permanente da sociedade civil, agregando um conjunto de inúmeras atividades já existentes a fim de concertar iniciativas comuns.

A república nos veio de cima, sob forma oligárquica, e a conhecemos, pelas longas décadas do processo de modernização, como autocrática. A Carta de 1988 nos apresentou às instituições de uma república democrática, mas, como sabido, ela ainda não é uma ideia popular, pois, contraditório que seja, é essa a possibilidade que se abre com o complexo do Alemão, onde estão dadas as condições para que se rompa com o sertão sem lei rumo à cidade e para que se introduza animação republicana a partir de baixo.

Desta feita, como se vê, a coluna mudou de estilo - foi mais normativa do que analítica.

Deve ser o Natal e a passagem de ano, tempos propícios aos bons augúrios.


Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional.
Fonte: VALOR ECONÔMICO (27/12/10)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Nada será como antes ( Marco Aurélio Nogueira)

Lula não inventou a roda nem começou do zero, mas mudou o País. Quem há de se vangloriar ou se lamentar disso?

Nunca antes na história deste País houve um presidente como Luiz Inácio Lula da Silva. Encerrada sua dupla presidência, nada será igual. O País que ele nos deixa é outro, para o bem e para o mal. Nem melhor, nem pior, simplesmente diferente. Lula fez e desfez, aconteceu, circulou e apareceu, mudou o discurso do poder e o modo como a opinião pública se relaciona com seus governantes, pacificou e articulou os mais distintos interesses sociais, a ponto de sair de cena como uma espécie inusitada de glória nacional. Deixou marca tão forte na política, na administração pública e no imaginário popular que será preciso um tempo para assimilarmos sua ausência.

Lula não teve a grandeza fundacional e paradigmática de um Vargas, verdadeiro artífice do Brasil moderno, que ele forjou mediante um padrão de intervenção estatal e um “pacto” ainda hoje vigentes. Não trouxe o charme nem o dinamismo de JK, com sua fantasia industrializante de recriar o País, fazendo 50 anos em 5. Nem sequer seria justo aproximá-lo de Fernando Henrique Cardoso, cujo refinamento intelectual fazia com que conhecesse a estrutura do País que pretendeu administrar.

Mas Lula foi diferenciado. A começar do estilo. Falastrão, debochado, emotivo, avesso a protocolos e a regras gramaticais, demarcou um território. Líder metalúrgico, filho humilde do Brasil profundo, encontrou uma fórmula eficiente de dialogar com as grandes multidões, valendo-se da exploração de uma espontaneidade que o levou a ser tratado como um brasileiro igualzinho a você, predestinado a promover a ascensão dos pobres graças à magia de uma identificação imediata. Por ter vindo “de baixo” e carregado a cruz do sofrimento, Lula saberia como atender os pobres. A precariedade da formação intelectual e a falta de gosto por leituras ou estudos sistemáticos seria compensada pela percepção intuitiva das carências sociais. Ponha-se nisso uma pitada de sagacidade e se tem a lapidação de um mito.

O estilo Lula de ser presidente caminhou sempre de braços dados com glorificação e a autoglorificação. Foi assim, aliás, que ele abriu caminho no PT. Soube usar a aura que o cercou no final dos anos 70, quando despontou como expressão de um “novo sindicalismo” que irrompia numa sociedade silenciada pela ditadura e disponível para se emocionar com a movimentação dos operários do ABC paulista. Criou-se assim o signo do trabalhador que se impõe a políticos, estudantes e intelectuais para fundar um partido diferente, uma política de outro tipo, um novo discurso, um distinto modo de deliberar e agir. O bordão “nunca antes na história”, na verdade, nasceu ali, colando-se a sua trajetória.

O estilo sempre esteve próximo da egolatria e da autossuficiência, combinadas com uma enorme vontade de agradar a todos. Lula nunca reconheceu erros ou cultivou a modéstia. Sua vida teria transcorrido numa sucessão de eventos positivos, modelados por seu discernimento, seu sacrifício e seu espírito de luta. Outros erraram, companheiros inclusive; ele no máximo foi enganado ou ficou imobilizado por perseguições e preconceitos.

Mas é impossível diminuir o tamanho real do personagem. Num País em que as elites políticas, econômicas e intelectuais, apesar de não terem conseguido governar com generosidade, nunca largaram as rédeas do governo, a irrupção de um metalúrgico no Planalto deve ser compreendida sem ira nem ressentimento. Tratou-se de um fato excepcional, desses que podem efetivamente sinalizar que algo novo começou a trepidar no chão da vida cotidiana.

A chegada de Lula ao poder não foi obra do desígnio divino, nem derivou exclusivamente de seu carisma ou mérito pessoal. Muita gente se empenhou para isso e a operação exigiu algum sacrifício. O PT, por exemplo, trocou sua identidade operária pela possibilidade de projetar um operário na cúpula do Estado. Depois de ter se recusado a jogar o jogo da redemocratização do País, o partido passou a defender as regras formais e informais do sistema político.

Afastou-se dos compromissos de esquerda. Depurado de combatividade e eixo, ficou refém de seu mais conhecido expoente. Alguma semelhança com o papel desempenhado por Luiz Carlos Prestes no velho PCB não é mera coincidência.

A estratégia foi auxiliada pelos fatos da vida. Houve o governo FHC, que venceu a inflação e lançou a plataforma de uma sociedade mais educada para a racionalidade econômica e mais sensível à necessidade de centralizar a questão social. Lula beneficiou-se, também, da consolidação democrática, da expansão da economia internacional e do que isso trouxe de espaço para o crescimento da economia brasileira. Tudo ajudou as políticas públicas a ganhar nova preeminência e incluir o combate às zonas de miséria e pobreza que devastam a sociedade.

Exagera-se muito na avaliação que se faz de Lula. Na apreciação do que há de positivo em seu governo, nem sempre se dá o devido valor à equipe técnica e política que o assessorou. O bloco de sustentação e a amplíssima coalizão de interesses que montou não se deveram a uma incomum habilidade de negociador, mas sim à recuperação do Estado como agente, à disseminação de práticas generalizadas de composição parlamentar e a uma “racionalidade” dos próprios interesses, que pactuaram para ganhar um pouco mais ou perder um pouco menos. Uma “nova classe média” apareceu, impulsionada pelas facilidades do crediário, pelos programas de transferência de renda e pela impressionante mobilidade da sociedade. Mas não mudou a face do País.

A presidência Lula se completou com a eleição de Dilma Rousseff, sua maior criação. O “animal político” nascido no ABC mostrou que tem corpo e vontade própria. Já não depende mais de um partido para se afirmar e pode almejar ser fiador do novo governo.

Mas nada é tão simples como parece. Todo governante constrói sua biografia e a lógica da política o impele a buscar luz autônoma. Uma hipótese realista sugere que haverá um suave descolamento entre Lula e Dilma. Disso talvez nasça um governo mais ponderado e equilibrado, capaz de substituir a presença de um líder carismático e intuitivo pela determinação e pelo rigor técnico que são indispensáveis para que se possa construir uma sociedade mais igualitária.
Lula entrou para a galeria política brasileira. Mas não inventou a roda, nem começou do zero. Não fará tanta falta quanto imagina ou imaginam. Sua passagem para os bastidores do sistema, ainda que temporária, poderá propiciar uma lufada de oxigênio na política e na dinâmica social, ajudando-as a adquirir mais espontaneidade e a pressionar por agendas de novo tipo.

Nada será como antes, é verdade, mas ninguém lamentará nem se vangloriará disso.


Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp e autor de o encontro O Encontro de Joaquim Nabuco com a Política (Paz e Terra)
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS (26/12/10)


Seguir em frente (Marco Aurélio Nogueira)

Ano de eleições gerais nunca termina como os demais. Dezembro surge animado e cheio de promessas, menos como fim de período e mais como porta de entrada de um novo ciclo, carregado de esperanças. Há dúvidas e incertezas também, é evidente, mas o clima é de réveillon. O tradicional balanço do que se fez e passou é substituído pela excitação de decifrar o que vem pela frente.

A movimentação frenética dos vencedores é reveladora. No curto espaço de tempo que separa a apuração dos votos da posse dos novos governantes, atiram-se todos na disputa por cargos, na formatação do Ministério e dos secretariados estaduais, na distribuição das fatias nobres e das migalhas do poder. O País assiste a tudo parado, com mãos e bocas travadas, entre o indiferente e o curioso. A hora é dos políticos, não dos cidadãos. É quando se destacam os mais hábeis, os mais insistentes, os mais persuasivos, quando fica claro o real poder de fogo das coalizões que irão governar.

O momento também ajuda a que se perceba quem coordenará as ações dos novos governos e decidirá sobre a vida e a morte, isto é, terá a ultima palavra. No plano federal, a pergunta reverberou durante todo o mês: dado o protagonismo e o brilho acumulados por Lula, que papel exercerá ele no governo de Dilma Rousseff e, portanto, nas definições que precederão seu início efetivo? Sairá de cena ou permanecerá nos bastidores, influenciando, pressionando, "aconselhando"? Terá cargo compatível com sua estatura real ou presumida? Conseguirá se manter em evidência, de modo a se valorizar como candidato para 2014? Agirá como "reserva moral" da Nação ou como "partidário", como homem público ou como cidadão comum?

A resposta a essas questões respinga evidentemente no que se imagina estar reservado à presidente Dilma. Terá ela força suficiente para se descolar de seu antecessor e provar a todos que uma criatura pode muito bem ter vida autônoma perante seu criador? Imprimirá marca pessoal a seu governo, seja em termos de estilo e linguagem, seja em termos de políticas e escolhas?

Estamos há duas décadas vivendo um ciclo virtuoso no Brasil. Sua tônica tem sido a continuidade, não a ruptura ou a mudança de padrão. O segundo governo Lula deu maior visibilidade à questão social - ainda que não propriamente à política social - beneficiado pela recuperação da racionalidade econômico-financeira alcançada por FHC. Ambos contribuíram para ajustar o Estado e imprimir mais profissionalismo à administração pública. Projetaram o País no mundo, dando nova consistência à política externa. Diatribes partidárias à parte, trabalharam na mesma direção e se complementaram. Não fizeram mais porque se deixaram consumir por uma obstinação mal calibrada de acumular recursos de poder. Os 16 anos de FHC e Lula só não foram excepcionais porque seus principais operadores - o PSDB e o PT - não estiveram à altura do momento.

Nada indica que esse ciclo esteja para se romper, ainda que já se possam notar sinais de saturação. A sociedade quer mais, necessita de governos melhores, que se mostrem mais sensíveis às suas demandas e expectativas. Embora tenhamos progredido bastante, continuamos toscos na arte de governar. Faltam-nos estadistas, lideranças respeitáveis, cidadãos ativos e partidos qualificados para estruturar as correntes de opinião da sociedade e delinear um rumo para o País. Carecemos de políticas públicas mais criativas, especialmente na área social, que viveu os últimos anos à sombra da benevolência e das coreografias presidenciais e ameaça se acostumar a isso.

A partir de 2011, com uma presidente que não poderá repetir o figurino Lula e será obrigada a inventar um guarda-roupa afinado com sua personalidade e sua biografia, tenderão a ganhar preeminência dois elementos que ficaram secundarizados nos últimos oito anos. A política, por um lado, será mais exigida e os políticos precisarão mostrar mais seriedade e competência. O Brasil está mais complexo e depende, agora, de operações que articulem seus grupos, classes e interesses no plano da representação política, sem pagar preço alto demais para as coalizões de conveniência. Por outro lado, não haverá nenhum encantador de serpentes no Planalto, mas uma governante treinada para agir de modo pragmático e com menos propensão a querer agradar a todos. Uma dose extra de racionalidade técnica poderá impregnar seu governo, com impactos no desenho das políticas e no discurso com que se buscará legitimá-las.

Com mais política e mais racionalidade técnica, maior espaço haverá para a recuperação de alguns fios que se perderam no decorrer dos últimos 16 anos. Fios que não se romperam, mas que permaneceram desatados, atrasando o desfecho de certos processos vitais. O fio do desenvolvimento sustentável, por exemplo, que foi bloqueado pela fúria de um desenvolvimentismo mal compreendido.

O da justiça social, que não progrediu satisfatoriamente e não se aproximou com firmeza dos parâmetros dos direitos de cidadania, confundindo-se com assistencialismo e generosidade. O da democracia política, que, embora se tenha consolidado, ainda deixa a desejar, seja porque não dispõe de uma boa cultura política, seja porque carece de instituições atualizadas e não tem sido embebida do necessário protagonismo social.

Desenvolvimento sustentável, justiça social e democracia política formam o tripé mágico que pode, mais que as habilidades e os atributos de um líder acima do bem e do mal, abrir caminho para a consecução da etapa mais importante da modernização capitalista brasileira, que conduzirá o país ainda marcado pelo passado colonial, pela dependência econômica e pela mediocridade política para a condição de Estado fundado num livre pacto de cidadãos.

São conjecturas e especulações de um dezembro aberto para o futuro. Adequadas, portanto, ainda que não necessariamente corretas e factíveis.

Bom ano-novo a todos.

Professor titular de Teoria Política da UNESP.
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO (25/12/2010)

domingo, 26 de dezembro de 2010

O LEGADO DO FENÔMENO LULA A CONSTRUÇÃO DO MITO LULA (VIII)

No poder, PT mancha a estrela com escândalos

CHICO DE GOIS

O Globo - 19/12/2010

Desde que chegou ao Planalto, partido se envolveu numa série de casos
como do mensalão e de dossiês


O“santo” deixou-se flagrar em pecado. O PT, que desde sua criação, em
1980, esmerou-se na arte da guerra, atacando quem estava no governo
com uma logística que tinha como principal arma a defesa da ética e a
esgrima contra a verdadeira ou suposta corrupção dos opositores,
sucumbiu à tentação do poder. Uma vez catapultado à cadeira mais macia
do Palácio do Planalto, o vermelho que caracterizava a raiva do
partido deu espaço para o vermelho que envergonhou a muitos. E
descobriu- se o óbvio: o PT é um partido como outro qualquer. A
constatação foi feita por ninguém menos que seu presidente de honra e
então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Grandes e barulhentos escândalos de corrupção se sucederam ao longo
dos últimos oito anos.
Ao subir a rampa em janeiro de 2003, depois de três tentativas
frustradas, a legenda foi, aos poucos, demonstrando que no reino da
Esplanada dos Ministérios não há santos. O primeiro sinal de que
pecados havia surgiu logo no início da gestão petista. Atendia pelo
nome de Waldomiro Diniz e estava lotado no Palácio do Planalto,
alojado na Subsecretaria de Assuntos Parlamentares da Presidência. Era
assessor direto do então todo-poderoso ministro da Casa Civil, José
Dirceu — que muitos depois tentaram caracterizar como o “coisa ruim”,
responsável por tudo de mau que aconteceu no primeiro mandato de Lula
e na geração seguinte.
Waldomiro foi flagrado em filmagem pedindo propina para si e dinheiro
para campanha política em 2002, quando presidia a Loteria do Estado do
Rio de Janeiro (Loterj). Queria pouco, para os padrões vigentes na
política: 1% de comissão.
O pedido era dirigido a Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira,
empresário de jogos. Para muitos, era simplesmente bicheiro.
A revelação se deu em fevereiro de 2004 e serviu como roteiro para o
comportamento que o PT e o governo adotariam nos outros escândalos que
se seguiam: negação da prática, ataque à oposição, discurso de que se
pretendia desestabilizar o governo, proteção no Congresso para evitar
a todo custo que o acusado viesse a público prestar esclarecimentos e
exoneração a pedido.
“Soube da notícia às dez e meia da manhã e, ao meio dia, eu já tinha
exonerado o cidadão (Waldomiro Diniz)”, disse Lula em seu programa de
rádio, no 4º dia após a divulgação da denúncia.
Embora o caso Waldomiro tenha abalado a reputação do PT, nada se
comparou ao inferno que estava por vir. O fogo amigo veio de alguém
que se assentava em reuniões com o presidente Lula. Como no roteiro
anterior, o pecado foi gravado em vídeo e exibido em rede nacional,
depois transformando-se no rumoroso escândalo do mensalão.
Começou com um simples funcionário dos Correios, resvalou no
presidente do PTB, então deputado Roberto Jefferson, que se agarrou na
cúpula do governo, quase levando para os confins o presidente Lula.
Maurício Marinho era funcionário de carreira dos Correios e ocupava
posição de mando numa diretoria pelas mãos de Jefferson. Ao ser
pilhado, acusou seu padrinho de estar por trás de um esquema bem
maior, que tirava dinheiro dos cofres públicos para distribuir sabe-se
lá a quem.
Jefferson, percebendo que o caldo engrossara ao seu redor, agiu como
o PT: passou a ver a mão de inimigos políticos na mexida da frigideira
que o fritava.
E fez o que sabe bem: falar.
Numa entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”, acusou o governo de
pagar mensalão para deputados aprovarem projetos de interesse do
Palácio do Planalto. O cabeça do esquema seria José Dirceu. A mão
operadora, o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares. Os tentáculos
passavam por Minas, por um “carequinha”, como ele se referiu a Marcos
Valério, o homem que transformou em marketing negativo o jeitinho PT
de governar.
Neste caso, o presidente Lula resistiu a se livrar dos companheiros do PT.
Mas, um a um, nomes que brilhavam no panteão petista acabaram
lançados às profundezas: o presidente do partido José Genoino; o
ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha; o ex-líder do governo Luiz
Carlos Silva, mais conhecido como professor Luizinho; o ex-presidente
do PR Valdemar da Costa Neto; o exsecretário- geral do PT Silvio
Pereira. E o poderoso José Dirceu, a quem Jefferson mandara sair da
cadeira antes que atingisse Lula.
Menos de dois meses depois de estourado o escândalo, muitos já tinham
caído. E Lula começou a adotar o discurso que exploraria muitas vezes
ao longo do seu governo. Primeiro, dizendo que o PT estava fazendo o
que todos os partidos fizeram a vida toda.
Depois, insistindo que no seu governo a diferença é que havia combate
à corrupção e punição.
“Nesses 29 meses de governo mais de mil pessoas foram presas no
Brasil, ou seja, presas de verdade, por sonegação, por prática de
corrupção. (...) Goste quem gostar, doa a quem doer, nós vamos
continuar sendo implacáveis na apuração da corrupção e quem tiver que
ficar bravo com o governo, que fique. Mas se tiver, nós vamos apurar”,
disse em julho de 2005.
O mensalão nem tinha acabado e, às vésperas das eleições de 2006, o
Brasil conheceu outros personagens: os aloprados.
Alcunha dada pelo próprio Lula aos petistas paulistas que se meteram
na compra de falso dossiê contra tucanos — especialmente contra José
Serra, que disputava o governo paulista.
A ação da turma, que parecia roteiro de filme policial, teve direito
a maletas de dinheiro em quarto de hotel. Como no caso anterior, os
envolvidos frequentavam os arredores do Planalto.
Em alguns casos, até a intimidade da churrasqueira do presidente.
Antes do “dossiê dos aloprados”, um outro escândalo abalou o governo
e o Congresso, em maio de 2006, quando a Operação Sanguessuga da
Polícia Federal tornou público um grande esquema de superfaturamento
de ambulâncias compradas com dinheiro de emendas parlamentares ao
Orçamento da União para prefeituras. A PF prendeu 48 pessoas, mas
todos foram soltos e respondem a processos em liberdade. O Congresso
abriu uma CPI, e as investigações resultaram na abertura de 67
processos contra deputados e três senadores acusados de envolvimento.
Nenhum dos parlamentares foi punido pelo Congresso. Nem o processo
judicial teve ainda condenação. A pena foi aplicada pelas urnas. Na
Câmara, apenas cinco dos que responderam a processos no Conselho de
Ética foram reeleitos naquele ano de 2006. O esquema que envolveu
dezenas de parlamentares e prefeitos era comandado por Luiz Antonio
Vedoin e Darci Vedoin, sócios da empresa Planam.
O então ministro da Saúde, o petista pernambucano Humberto Costa,
perdeu o cargo e chegou a ser indiciado, a pedido do Ministério
Público. Recentemente, foi absolvido. E, em outubro, ganhou um mandato
de senador.
Segundo a Controladoria Geral da União (CGU) e o Departamento
Nacional de Auditoria do Ministério da Saúde, a máfia dos sanguessugas
causou prejuízo de mais de R$ 15 milhões, com a compra de ambulâncias
superfaturadas em mil convênios assinados com cerca de 600 municípios.
Apesar de todo o terremoto, a terra não se abriu sob os pés de Lula.
Ao contrário.
Foi reeleito.
Só teve que esperar a vitória no 2º turno. N o 2 o - mandato, os
pecados continuaram. Em vez de vídeos de pessoas recebendo dinheiro e
de intrincadas operações de distribuição, os escândalos surgiram em
forma de dossiês.
E atingiram a “guardiã da porta do céu”, a então ministra Dilma
Rousseff — que negou qualquer ação contra as práticas republicanas.
Começou com a revelação de que sua braço direito, Erenice Guerra,
pedira um levantamento de todos os gastos do presidente Fernando
Henrique Cardoso (PSDB) e sua mulher, Ruth, com cartões corporativos.
A ideia do ataque era neutralizar a exploração do fato de que a
Presidência estava utilizando os cartões para compras que pouco tinham
a ver com questão de segurança nacional.
Erenice Guerra, a amiga, se envolveu em mais casos rumorosos e, este
ano, quase levou Dilma à derrota nas eleições presidenciais. Seu fogo
amigo por pouco não se transformou em incêndio sem controle. E o
ingrediente inflamável foi o mesmo de escândalos anteriores: dossiê.
Começou com levantamentos clandestinos de Imposto de Renda de tucanos.
E acabou com a demonstração de que a assessora mais poderosa de Dilma
tinha tanto poder que conseguiu encaixar no governo uma parentada que
ia dos filhos ao marido, passando por irmãos e amigos. Todos acusados
de tráfico de influência. E muitos exonerados no rastro das denúncias.
Inclusive a própria Erenice, que já era apontada, antes da vitória
petista, como “a toda-poderosa” do futuro governo Dilma.

O LEGADO DO FENÔMENO LULA A CONSTRUÇÃO DO MITO LULA (VII)

Sem avanços na reforma agrária, tensão aumenta

SÉRGIO ROXO

O Globo - 19/12/2010

Número de assentamentos foi menor, e conflitos no campo batem recorde
desde a redemocratização


Aligação histórica do PT com os movimentos de briga pela terra não foi
suficiente para garantir avanços significativos na reforma agrária nos
oito anos de governo Lula. Além de ter frustrado as expectativas em
relação ao número de assentamentos, a gestão termina com registro
recorde de conflitos no campo.
— Na nossa avaliação, e na verdade é uma constatação que o próprio
governo reconhece, o tema da reforma da agrária não avançou — diz José
Batista de Oliveira, membro da coordenação nacional do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra (MST).
Dirceu Fumagalli, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), fala em “inércia” do governo.
— Não houve empenho em relação à reforma agrária. Houve retrocesso — disse.
Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra), foram assentadas no governo Lula, até 10 de dezembro, 596 mil
famílias. Mas movimentos contestam os números por incluírem
regularização de terras na categoria de assentamentos. Com isso,
segundo especialistas do setor, a gestão petista fechará com números
menores no setor do que no governo de Fernando Henrique Cardoso
(PSDB), que assentou 540 mil famílias.
E os novos assentamentos não reduziram confrontos. De acordo com
levantamento do geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, professor da
Universidade Federal Fluminense (UFF), feito para a Comissão Pastoral
da Terra, o período entre 2003 e 2009 foi o que registrou a maior
média anual de conflitos desde a redemocratização do país, em 1985.
Houve uma média anual de 929 confrontos nos sete primeiros anos da
gestão Lula.
O estudo divide o governo Fernando Henrique em dois momentos — o
primeiro, de 1996 a 2000, e o segundo de 2001 a 2002, depois da edição
de Medida Provisória que tirou as terras invadidas do programa de
reforma agrária. A média anual de confrontos nas duas fases do governo
tucano são, respectivamente, de 800 e 537.
— O fato de não ter havido uma reforma agrária, com o assentamento de
todas as famílias acampadas, é um motivador da permanência do conflito
no governo Lula — avalia José Baptista de Oliveira, do MST.
Porto-Gonçalves, o autor da pesquisa, acredita que a perspectiva
criada no começo do governo Lula de que a reforma agrária avançaria
contribuiu para que proprietários de terra endurecessem no confronto
com os movimentos.
— Sempre que avança a expectativa de que o Brasil vai democratizar o
acesso à terra, a resposta das oligarquias é a violência — disse.
Apesar do aumento dos confrontos, os movimentos avaliam que o governo
Lula foi marcado pela aproximação com as entidades que lutam por
terra, até porque houve um aumento do repasse de recursos para órgãos
ligados aos sem-terra, além do loteamento de superintendências do
Incra entre partidos aliados e, principalmente, grupos ligados ao MST.
— Houve um diálogo permanente com todo o governo. Apesar de o diálogo
não ter significado ações por parte do Incra. Até os compromissos
assumidos pelo próprio presidente não se concretizaram — afirma
Oliveira, do MST.
O diálogo e o aumento do repasse de recursos não serviram para
reduzir as invasões, que haviam caído nos dois últimos anos do governo
Fernando Henrique. A média anual foi de 373 ocupações, contra 198 do
fim da gestão tucana. Nos cinco anos anteriores do governo de Fernando
Henrique (1996-2000), antes da MP que tirou terras invadidas do
programa de reforma agrária, o número de ocupações era maior: 507.
— O governo Lula criou uma expectativa grande, e muitas pessoas se
mobilizaram em grandes acampamentos.
Mas muitas famílias que começaram o governo acampadas seguem
acampadas — afirma o líder do MST.
Em 2002, o movimento contabilizava 200 mil famílias em acampamentos
no Brasil. Hoje, são 100 mil.
O Incra acredita que houve evolução da questão agrária durante o governo Lula.
— Houve um grande avanço na obtenção de terras, e principalmente a
retomada de terras ilegalmente ocupadas.
Também criamos assentamentos diferenciados para cumprir a legislação
ambiental. E o apoio inicial ao assentado, que era de R$ 7,4 mil,
agora chega a até R$ 49 mil — disse Rolf Hackbart, presidente do
órgão, que está no cargo desde o início da gestão.
— Credito muito dessa expectativa a não saber como funciona um
processo de desapropriação judicial. Temos restrições orçamentárias —
acrescenta.
Sobre o aumento dos conflitos, Hackbart diz que os critérios da
Pastoral da Terra são diferentes dos do Incra, mas reconhece um
acirramento das tensões no campo.
— Salvo melhor juízo, a terra nunca foi tão disputada. Há muitos
grupos estrangeiros comprando terra no Brasil. Como é um meio de
produção em disputa, a tendência é haver conflito, sim.

O LEGADO DO FENÔMENO LULA A CONSTRUÇÃO DO MITO LULA (VI)

O paradoxo Lula: Fenômeno político, governo modesto

MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 19/12/2010


Truques dos números oficiais e carisma do presidente inflam desempenho
econômico de gestão que aumentou gastos e investiu menos do que diz


Na economia, o mito Lula não se sustenta em fatos.

Ele é um bem-sucedido resultado da repetição diária de uma versão
triunfalista e de truques numéricos. Em 2010, o país teve o maior
crescimento em 25 anos; mas em parte porque em 2009 caiu 0,6%, a pior
recessão desde 1990.

O presidente termina o mandato com mais de 80% de
popularidade, mas em outubro de 2005 apenas 31% diziam que o governo
era bom ou ótimo. No primeiro ano, Lula aumentou o superávit primário;
nos últimos anos, promoveu uma orgia de gastos. Consolidou um amplo
programa de transferência de renda aos pobres, e fez forte doação de
recursos públicos aos ricos.

Atingiu a menor taxa de desmatamento, mas fincou várias
estacas no coração da Amazônia. Quem vê só a cena final, não entende o
filme.

Quando lançou o primeiro PAC, em 2007, o governo disse que
seriam investidos mais de R$ 600 bilhões, mas investiu menos de 1% do
PIB por ano, em média. É preciso paciência para separar a fanfarra dos
fatos. Apenas 9% do total é investimento público federal.

Mas o governo põe no mesmo pacote investimentos de
estatais, contrapartidas estaduais, projetos privados e até o esforço
das famílias. Quem pegou um empréstimo no banco e comprou um imóvel,
novo ou usado, ou reformou a casa entrou na conta do PAC.

Aliás, se somar todo o investimento em logística —
rodovias, portos, aeroportos — e mais os de energia — incluindo- se
petróleo — dá menos do que o total de financiamentos para compra ou
reforma de casa. A propósito: apenas 0,2% é de casa popular.

Aquele apartamento que você comprou com seu esforço e
pagará, com juros, por 20 anos, o governo Lula incluiu hoje como ação
concluída no balanço do PAC. Os financiamentos imobiliários, mesmo
junto aos bancos privados, são 48% do PAC. É óbvio que dívidas das
famílias não são investimento público. Para confundir mais, o governo
muda o cronograma das ações para que elas não apareçam como atrasadas.
Dá muito trabalho descobrir o truque embutido em cada número do
governo Lula. A verdade está em estatísticas como as do IBGE que
mostram que, em saneamento, subiram de 56% para 59% os domicílios com
acesso a redes de esgoto. Apenas isso. Não houve a revolução de
investimento público que a propaganda diz.



Os gastos de pessoal, previdência e custeio aumentaram sempre acima do
PIB, e são a pior herança que o presidente Lula deixa para a
sucessora. O gasto não financeiro total da União aumentou 145% entre
2002 e 2009. O número de funcionários civis e militares aumentou em
155 mil. Só de DAS foram 3.200 a mais. De cargos em comissão e funções
gratificadas foram 15 mil a mais. Criou 10 ministérios ou secretárias
com status de ministério.

O governo inchou e aparelhou a máquina.

A carga tributária subiu três pontos percentuais do PIB. E
o país continua tendo déficit nominal.

A projeção do Brasil no exterior se ampliou com a
diplomacia presidencial, mas o país entrou em frias como a do apoio ao
projeto nuclear do Irã.

Sacrificou princípios por uma cadeira no Conselho de
Segurança da ONU, que não conseguiu.

No governo Lula foram desmatados 125 mil km² de floresta
amazônica. Isso equivale a uma área 82 vezes maior que a cidade de São
Paulo, ou ao território de Portugal e Bélgica somados. É 18% menos do
que o total desmatado no governo anterior, mas o risco é o rumo mudar
porque foram lançadas obras que levam o eixo do desmatamento para cada
vez mais dentro da floresta, como a hidrelétrica de Belo Monte e a BR
319, de Manaus a Porto Velho.

O consumo em alta explica grande parte do mito Lula. As
compras cresceram porque a estabilidade foi mantida, a oferta de
crédito dobrou, o salário mínimo aumentou 54% em termos reais.

Além disso houve o Bolsa Família.

Milhões de brasileiros entraram no mercado de consumo, mas
o marco inicial do processo de retirada de pessoas da pobreza e
formação do mercado do consumo de massas foi o Plano Real. Naquela
época, o total de pobres caiu de 47% para 38%. No governo Lula, caiu
para 25%.

O Fome Zero foi abandonado em favor do Bolsa Família, uma
tecnologia mais atualizada, testada pelo Bolsa Escola no Brasil e em
programas similares no México. Teve o mérito de unificar projetos
anteriores, melhorar o cadastro dos pobres e ampliar a rede de
proteção social. Mas a política exige correção urgente. Das suas
distorções, a pior é a de apresentar o benefício como concessão de um
líder paternalista, em vez de ser o direito do cidadão. A queda do
desemprego é um dos grandes ganhos, mas o desemprego entre jovens de
18 a 24 anos ainda está na espantosa marca dos 14%. Na última PNAD,
41% dos trabalhadores ainda estavam na informalidade.

O mundo ajudou nos primeiros cinco anos, quando houve o
melhor momento recente da economia mundial.

De 2003 a 2007, o mundo cresceu de forma acelerada, o
fluxo de capitais para os países emergentes teve um salto exponencial,
o comércio internacional dobrou e os preços dos produtos que o Brasil
exporta explodiram.

O Banco Central acumulou reservas.

Isso foi fundamental para enfrentar a crise mundial que
explodiu em 2008. Mas 2010 termina com um déficit em transações
correntes de US$ 50 bilhões. Nos primeiros anos o Brasil cresceu menos
que o mundo. Nos oito anos, cresceu menos que a América Latina e os
países emergentes. Os juros eram — e ainda são — os mais altos do
mundo.

O tamanho do Estado na economia voltou a crescer, e a
ideia de agências reguladoras independentes foi destruída.

Não houve uma única boa reforma no atual governo. A da
previdência dos funcionários do setor público foi uma grande batalha
inicial. O governo Lula conseguiu aprová-la, em batalhas duras.

No final, foi muito barulho por nada.

A reforma jamais foi regulamentada, e o país voltou à estaca zero.

Só uma vez antes na História deste país houve tanta transferência de
dinheiro público para grandes empresas: no governo militar. O BNDES
recebeu um reforço de R$ 200 bilhões diretamente do Tesouro para
emprestar às empresas. Um dinheiro que custa ao governo o dobro do que
ele cobra dos grandes tomadores. A diferença de taxas é doação aos
ricos.

O BNDES fez escolhas polêmicas: financiou a concentração empresarial,
a compra de uma empresa por outra, sem nenhum ganho para o país ou o
consumidor, nem um único novo emprego gerado. Algumas eram empresas
familiares. Há desastres maiores: o banco comprou ações e emprestou
dinheiro para o frigorífico Independência, que quebrou logo após
receber o dinheiro. As estatais e os fundos de pensão de estatais
entraram de sócios para estatizar o risco em projetos perigosos como
as hidrelétricas da Amazônia, entre elas, Belo Monte. No projeto do
Trem Bala está escrito que, além do dinheiro barato, haverá R$ 5
bilhões de doação para o grupo vencedor caso haja menos passageiros do
que o previsto.

Lula, o metalúrgico, foi um líder de mobilização na Presidência. Usou
todo o seu carisma e capacidade de comunicação para garantir o apoio
ao seu governo num arco que atravessou classes sociais. Lula, o
presidente, se entregou incessantemente ao esforço de autolouvação e
de negação de qualquer mérito em governos anteriores. Teve sucesso
impressionante em obscurecer os fatos. A História permitirá que se
veja o governo Lula com seus méritos e defeitos. Ele manteve as
conquistas da estabilidade da moeda, ampliou o consumo e estruturou
melhor a rede de apoio social. Aprofundou o aparelhamento e o uso da
máquina pública para atender a interesses partidários e pessoais e
capturou os movimentos sociais, tornando-os dependentes do dinheiro
público. Fortaleceu o novo Brasil que nasceu no Real, mas preservou a
sombra do velho Brasil.

O LEGADO DO FENÔMENO LULA A CONSTRUÇÃO DO MITO LULA (V)

O governo Lula

FREI BETTO

O Globo - 19/12/2010

Anunciada a vitória de Lula nas eleições de 2002, publiquei em O GLOBO
(28/10/2002) o artigo “O amigo Lula”. Encerrei-o com a frase:
“Sobrevivente da grande tribulação do povo brasileiro, Lula é, agora,
um vitorioso”.
Apoiado por ampla maioria da opinião pública brasileira (hoje, 84%),
Lula governa o país há oito anos. Surpreendeu aliados e opositores.
Lula é, também agora, um vitorioso — posso parafrasear-me.
Vivi sempre de meu trabalho, como recomenda o apóstolo Paulo.
Por breves períodos mantive vínculo empregatício com a iniciativa
privada. Recusei nomeações do poder público. Por considerar compatível
com minha atividade pastoral, aceitei convite do presidente Lula para
integrar, em 2003, sua assessoria especial no gabinete de Mobilização
Social do Programa Fome Zero, ao lado de Oded Grajew.
Ali permaneci dois anos. Tive oportunidade de implantar dois
programas de ampla capilaridade nacional e ainda vigentes: a Rede de
Educação Popular, que atua segundo o método Paulo Freire na formação
cidadã de beneficiários do Bolsa Família; e o Escolas Irmãs, que
estabelece conexões solidárias entre professores e alunos de
instituições de ensino.
Minha tarefa principal consistia em mobilizar a sociedade civil em
prol do Fome Zero, sobretudo os Comitês Gestores que, eleitos
democraticamente nos municípios, cuidavam do cadastro dos
beneficiários e supervisionavam o cumprimento das condicionalidades do
programa de erradicação da miséria.
Muitos prefeitos reagiram. Queriam a si o controle do Fome Zero.
Temiam o despontar de novas lideranças locais via Comitês Gestores.
Exigiam decidir, por razões eleitoreiras óbvias, quem entra e sai do
cadastro. Por sua vez, o lobby do latifúndio — cerca de 200
parlamentares do Congresso — pressionava para o Fome Zero não efetivar
a reforma agrária, que lhe asseguraria caráter emancipatório e
constituía cláusula pétrea do programa do PT.
A Casa Civil deu ouvidos aos insatisfeitos. Tratou de substituir o
Fome Zero por um programa de caráter compensatório e, até hoje, sem
porta de saída, cujo cadastro é controlado pelos prefeitos: o Bolsa
Família. Oded Grajew regressou a São Paulo, o ministro Graziano foi
substituído, e eu, em dezembro de 2004, pedi demissão.
Voltei a ser um feliz ING — Indivíduo Não Governamental.
Às vésperas de encerrar o governo Lula, avalio-o como o mais positivo
de nossa história republicana. O Brasil mudou para melhor.
Entre 2001 e 2008, a renda dos 10% mais pobres cresceu seis vezes
mais que a dos 10% mais ricos. A dos ricos cresceu 11,2%; a dos
pobres, 72%. No entanto, há 25 anos, de acordo com o Ipea, metade da
renda total do Brasil permanece em mãos dos 10% mais ricos. E os 50%
mais pobres dividem entre si apenas 10% da riqueza nacional.
Sob o governo Lula, os mais pobres mereceram recursos anuais de R$ 30
bilhões; os mais ricos, através do mercado financeiro, foram
agraciados, no mesmo período, com mais de R$ 300 bilhões, o que
impediu a redução da desigualdade social.
Faltou ao governo diminuir o contraste social por meio da reforma
agrária, da multiplicação dos mecanismos de transferência de renda e
da redução da carga tributária nas esferas do trabalho e do consumo. E
onerar as do capital e da especulação.
Hoje, os programas de transferência de renda do governo representam
20% do total da renda das famílias brasileiras. Em 2008, 18,7 milhões
de pessoas viviam com menos de 1/4 do salário mínimo. Não fossem as
políticas de transferência, seriam hoje 40,5 milhões. Isso significa
que o governo Lula tirou da miséria 21,8 milhões de pessoas.
É falácia alardear que, ao promover transferência de renda, o governo
“sustenta vagabundos”. Isso ocorre quando não pune corruptos,
nepotistas, licitações fajutas, malversação de dinheiro público. No
entanto, a Polícia Federal prendeu, por corrupção, dois governadores.
Mais da metade da população do Brasil detém menos de 3% das
propriedades rurais. E apenas 46 mil proprietários são donos de metade
das terras. Nossa estrutura fundiária é idêntica à do Brasil império!
E o empregador rural não é o latifúndio nem o agronegócio, é a
agricultura familiar: ocupa apenas 24% das terras e emprega 75% dos
trabalhadores rurais.
A inflação manteve-se abaixo de 5%, cerca de 11,7 milhões de empregos
formais foram criados e o salário mínimo corresponde, hoje, a mais de
US$ 200. Isso permitiu ao consumidor planejar melhor suas compras,
facilitado por uma política de créditos consignados e a longo prazo,
malgrado as elevadas taxas de juros.
O governo Lula não criminalizou movimentos sociais; buscou o diálogo,
ainda que timidamente, com lideranças populares; melhorou as condições
dos quilombos; demarcou terras indígenas como Raposa Serra do Sol.
Ao rechaçar a Alca e zerar as dívidas com o FMI, Lula afirmou o
Brasil como país soberano e independente. O que lhe permitiu manter
confortável distância da Casa Branca e se aproximar da África, dos
países árabes e da Ásia, a ponto de enfraquecer o G8 e fortalecer o
G20, do qual participam países em desenvolvimento.
Estreitou relações com a África do Sul, a Índia e a China, valorizou
a Unasul e rompeu o “eixo do mal” de Bush ao defender a
autodeterminação de Cuba, Venezuela e Irã.
O governo termina sem que, nos oito anos de mandato, tenham sido
abertos os arquivos das Forças Armadas sobre os anos de chumbo, nem
apoiado iniciativas para entregar à Justiça os responsáveis pelos
crimes da ditadura. O país continua sem qualquer reforma estrutural,
como a agrária, a política, a tributária etc.
Na educação, o investimento não superou 5% do PIB, quando a
Constituição exige ao menos 8%. Embora o acesso ao ensino fundamental
tenha se universalizado, o Brasil se compara, no IDH da ONU, ao
Zimbabwe em matéria de qualidade na educação. Os professores são mal
remunerados, as escolas não dispõem de recursos eletrônicos, a evasão
escolar é acentuada.
Os programas de alfabetização de adultos fracassaram e o MEC se
mostrou desastrado na aplicação do Enem. De positivo, a ampliação das
escolas técnicas e das universidades públicas, o sistema de cotas e o
ProUni.
O SUS continua deficiente, enquanto o atendimento de saúde é
progressivamente privatizado. Hoje, 44 milhões de brasileiros estão
inscritos em planos de saúde da iniciativa privada. Mais de 50% dos
domicílios do país não possuem saneamento, os alimentos transgênicos
são vendidos sem advertência ao consumidor, os direitos das pessoas
portadoras de deficiências não são devidamente assegurados.
Governar é a arte do possível. Implica imprevistos e exige
improvisos. Lula soube fazê-lo com maestria. Espero que o governo
Dilma possa aprimorar os avanços da administração que finda e
corrigir-lhe as falhas, sobretudo na disposição de efetuar reformas
estruturais e ampliar o rigor na preservação ambiental. Tomara que a
presidente consiga superar a deficiência congênita de sua gestão: o
matrimônio, por conveniência eleitoral, entre o PT e o PMDB.
PS: O poder não muda ninguém, faz com que as pessoas se revelem.
FREI BETTO é escritor, autor de “A mosca azul” e “Calendário do
poder” (Rocco), entre outros livros.

O LEGADO DO FENÔMENO LULA A CONSTRUÇÃO DO MITO LULA (IV)

Na saúde, mais escândalos que resultados

EVANDRO ÉBOLI
O Globo - 19/12/2010

Vampiros e sanguessugas marcaram oito anos de administração, enquanto
medidas moralizadoras na gestão pouco avançaram


No governo Lula, o Ministério da Saúde foi ocupado por quatro
diferentes titulares, todos ligados ao chamado Movimento Sanitarista,
comprometido com o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS). No
dois mandatos, porém, o presidente patrocinou uma gestão sem marcas na
saúde, com a manutenção da desigualdade no atendimento à população. O
volume de dinheiro privado investido no setor é maior que o público, o
governo perdeu a receita da CPMF e medidas consideradas moralizadoras
na gestão de hospitais públicos, como a criação de fundações estatais,
não avançaram. O projeto esbarrou no corporativismo do próprio PT no
Congresso Nacional.
O partido foi obrigado a dividir o ministério com o aliado PMDB ao
longo dos oito anos da Era Lula. O primeiro ministro da Saúde, o hoje
senador eleito Humberto Costa (PTPE), não poupa críticas aos
peemedebistas que o sucederam. Ele considera que os avanços na gestão
Lula ocorreram todos nos seus dois anos e meio à frente da pasta.
— Se comparado a outras políticas sociais do governo Lula, a área de
saúde ficou a desejar. Deveria ter melhorado mais. Atribuo esse fato à
descontinuidade, com as mudanças no ministério. Poderiam ter melhorado
a qualidade do atendimento e do serviço de emergência, entre outros
gargalos — disse Humberto Costa.
Entre as ações que implementou, o petista enaltece o Samu (sistema de
gerência do serviço de ambulâncias), o Farmácia Popular, o Brasil
Sorridente e a expansão do Saúde da Família.
Costa afirmou ter sido vítima de perseguição, até mesmo de “fogo
amigo”, de gente do PT.
— A área da saúde foi muito cobiçada, até por muita gente do PT, que
aspirava o cargo e buscou me desestabilizar.
Por ser do Nordeste, fui vítima de um preconceito muito forte.
Foi na gestão de Humberto Costa o registro do primeiro escândalo na
saúde no mandato de Lula. A Operação Vampiro, da Polícia Federal,
desvendou um esquema de fraudes na compra de coagulantes usados no
tratamento de hemofílicos. O desvio teria chegado a R$ 2 bilhões e
levou 17 pessoas à prisão e vários outros foram investigados, além de
36 servidores que enfrentaram o afastamento.
— Apesar de ter sido responsável pela deflagração dessa investigação,
terminei sendo indiciado. Por isso, perdi uma eleição. Somente agora
fui inocentado e o Ministério Público pediu minha absolvição.
Depois de Costa, o ministério foi ocupado pelo deputado federal
Saraiva Felipe (PMDB-MG). Ele ficou apenas oito meses e foi sucedido
por Agenor Álvares, que permaneceu um ano no cargo. O atual ministro,
José Gomes Temporão, é o mais longevo deles. Se sair junto com Lula,
Temporão terá permanecido três anos e nove meses frente à pasta. Ele
foi uma indicação do PMDB do Rio.
Temporão considera que houve muitos e significativos avanços e
destaca o fortalecimento do serviço de atenção básica, com a ampliação
da cobertura do Saúde da Família. O ministro cita a redução da
mortalidade infantil, que teria caído de 23,6 para 19 óbitos para cada
grupo de mil crianças nascidas vivas.
Na área de promoção da saúde, o Temporão afirma que foi um dos
articuladores da Lei Seca, que diminui casos de morte no trânsito.
O ministro afirmou que, apesar dos avanços que citou, é preciso
melhorar muito. Ele apontou a falta de recursos como o problema que
enfrentou.
— O subfinanciamento é o principal problema do SUS. Hoje gastamos
3,5% do PIB em saúde. Temos que dobrar esse percentual, para começo de
conversa.
Esse entrave dificulta a melhoria da qualidade dos serviços e uma
ampliação maior do acesso — disse.
Temporão atribuiu à reação das corporações a não implementação do
projeto de fundação estatal, que permitiria aos serviços públicos de
saúde, por exemplo, demitir incompetentes. A bancada do PT,
principalmente os parlamentares sindicalistas, foi a maior opositora
do projeto.
— As corporações defendem um modelo anacrônico totalmente superado,
de manter a estabilidade rígida do funcionalismo público — afirmou
Temporão.
A médica e professora Ligia Bahia, do Laboratório de Economia da
Saúde da UFRJ, diz que a homogeneidade na escolha dos ministros da
Saúde de Lula, todos sanitaristas, é distinto do perfil anterior,
quando o escolhido era médico prestigiado, um cientista, um
parlamentar ou um economista.
— Mas a preferência pela escolha de profissionais com trajetória de
militância ativa na saúde pública não necessariamente correspondeu à
priorização do tema na agenda do governo — analisa ela.
Para o pesquisador Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP, o
governo Lula foi um retrocesso na política de fiscalizar os planos de
saúde, ao lotear a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) com
profissionais oriundos do setor privado.
— A ANS é a agência com maior número de conflitos de interesse. O
setor regulado ocupa cargos estratégicos na fiscalização. Essa foi uma
marca desse governo — afirmou Mário Scheffer.
Para o pesquisador, aumentou a desigualdade no acesso à saúde no país.
— O financiamento privado responde por 55% do investimento na saúde.
Isso é muito ruim. Em todos os sistemas universais, como o SUS,
prevalece o recurso público. Estamos na contramão do planeta.
Neste governo, segundo Temporão, 24 medicamentos que antes eram
importados passaram a ser fabricados no Brasil. São remédios para
Alzheimer, hemofilia, osteoporose, Aids, asma e tuberculose. O Brasil
decretou neste período o licenciamento compulsório de um medicamento,
o Efavirenz, do coquetel para o tratamento da aids.
— Lembro de muita gente dizendo que isso iria desestimular o
investimento estrangeiro no Brasil. O que aconteceu foi exatamente o
contrário.
Nunca se viu tanto investimento e fábricas abrindo no setor — disse Temporão

O LEGADO DO FENÔMENO LULA A CONSTRUÇÃO DO MITO LULA (III)

Cobertor do ensino deixou de fora o básico

ALESSANDRA DUARTE
O Globo - 19/12/2010

Qualidade da educação não avançou e resultados do país ainda são um
vexame; já a oferta de vagas no nível superior aumentou

Ocurrículo do presidente termina este ano com 14 milhões de
analfabetos com mais de 15 anos, uma população com 7,2 anos de estudo
em média — mesmo nível de escolaridade do Zimbábue —, e uma prova para
o ensino médio que deu vexame duas vezes. Mas terá também a criação de
bolsas em faculdades particulares para alunos de baixa renda, com o
Prouni, e um piso salarial nacional para o professor. Apesar de deixar
para a sucessora avanços como mais vagas no nível superior, a era Lula
entregará a Dilma Rousseff um sistema que não avançou na qualidade do
ensino, um modelo do Enem que precisará ser revisto, altas taxas de
evasão no ensino médio, baixa cobertura de creches e fracassos no
cumprimento de metas do atual Plano Nacional de Educação.
O Prouni foi um dos avanços saudados pelo setor. “Para mim, foi o
mais importante”, diz Rodrigo Capelato, diretor- executivo do Semesp
(Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino
Superior de São Paulo). O principal no programa, diz, foi o uso de
vagas ociosas da rede privada de ensino superior: — Foram mais de 400
mil alunos que entraram na rede privada desde 2005 — destaca Capelato,
e cita outro avanço, porém menor, da educação nesses últimos anos: — A
reformulação do Fies (financiamento estudantil) este ano, com redução
da taxa de juros cobrada, por exemplo. Era necessário, ninguém se
interessava em buscar financiamento.
Conselheiro do Movimento Todos pela Educação, Mozart Neves Ramos
inclui mais dois itens na lista de pontos a favor da educação no
governo Lula: — Os dois decorrem da continuidade de políticas:
primeiro, o (ministro Fernando) Haddad pegou o antigo Saeb e o
aperfeiçoou criando a Prova Brasil; segundo, transformaram o Fundef
(fundo que abrangia só o ensino fundamental) no Fundeb (que passou a
incluir também educação infantil e ensino médio).
Ter estabelecido uma meta de desempenho e fluxo escolar (repetência e
evasão) dos alunos — obter nota 6 no Ideb até 2022 — também foi um
ganho, completa Ramos. Assim como a PEC 59, que acabou com a DRU
(desvinculação de receitas) para a educação.
Mas a nota baixa na educação do governo Lula, na opinião de Rodrigo
Capelato, vai, por exemplo, para a forma como se deu o Reuni, programa
de expansão das universidades federais. Foi com o Reuni que Lula
passou a afirmar ter sido o presidente que mais teria criado
universidades (mais de dez, sendo que várias já existiam, tendo sido
federalizadas ou reestruturadas).
O programa teve saldos como o estímulo à criação de vagas no período
noturno em universidades já existentes, “um melhor uso de estruturas
que não precisaram ser criadas”, diz Capelato. Mas ele ressalva: —
Expandir o sistema criando novas universidades, não acho que seja o
caminho.
É caro, para um resultado que foi até baixo, já que o programa criou
apenas cerca de 150 mil vagas até agora.
Além disso, fica o risco de haver decisões por critérios políticos.
Por exemplo, a criação das universidades de Guarulhos e do ABC: são
praças saturadas na oferta de ensino superior; então, só podemos
considerar como tendo sido beneficiadas por decisão política.
Mostra de que a expansão do Reuni não teria se traduzido em aumento
suficiente de alunos nos bancos de faculdade é a taxa de escolarização
líquida (proporção da população matriculada no nível de ensino
adequado para sua faixa etária) dos jovens de 18 a 24 anos (faixa que
deveria estar no ensino superior): só 14%. A meta do governo era
chegar a 2010 com pelo menos 30%.
— Para um país que se quer uma potência, esse número teria de ser de
uns 50% — analisa Edward Madureira, presidente da Andifes (Associação
Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior)
e reitor da Universidade Federal de Goiás. Ele elogia, porém, o
andamento do Reuni: — O sistema está quase dobrando de tamanho.
A questão é que as matrículas não ocorrem todas no início da expansão.
Como no Reuni o dinheiro federal para universidades é condicionado ao
número de vagas a serem criadas, houve ainda o fato de que muitas
universidades, para não perder a verba, comprometiam-se com um aumento
de vagas com o qual não tinham condições administrativas e físicas de
arcar.
Sem falar que a expansão foi iniciada sem que tenham se resolvido
questões como a autonomia orçamentária das universidades.
Na lista de problemas da educação nos últimos anos, somam-se às
fragilidades do Reuni os contratempos do Enem. Exame com pretensão de
avaliar de uma só vez mais de quatro milhões de alunos, viu sua
primeira edição, em 2009, ser sabotada por vazamento de provas. Já a
segunda edição, este ano, não ficou imune a cartões de resposta e
cadernos de prova com erros.
— O problema é que o governo quis lançar uma prova com esse alcance,
mas na hora não tinha pessoal suficiente ou preparado. Quiseram
abraçar o mundo, quando poderiam ter feito o Enem em fases, ou
consultado entidades com experiência em ações do tipo, como a
Fuvest... — critica Capelato.
— Poderia haver, na aplicação das provas do Enem, um maior
envolvimento das universidades federais, já preparadas para isso —
acrescenta Edward Madureira.
O fato de tanto um avanço como o Prouni como percalços como os
vividos por Enem e Reuni estarem ligados ao ensino superior mostra o
quanto esse nível de ensino recebeu atenção do governo federal nos
últimos anos — em detrimento, dizem, da atenção que precisaria ser
dada à educação básica.
— O ensino superior dá mais visibilidade.
Mexe com os jovens na sociedade — afirma Mozart Ramos.
Não faltam sinais de que a educação básica precisa ser mais bem cuidada.
Um deles é o custo anual por aluno nesse nível, em comparação com o
custo anual por aluno na educação superior.
Um universitário custa R$ 15 mil aproximadamente, enquanto um aluno
na educação básica, em torno de R$ 2,9 mil, afirma Ramos.
— Sendo que o universo de alunos no ensino superior é muito menor —
completa Rodrigo Capelato. O mau desempenho dos alunos nos níveis
fundamental e médio, sobretudo na rede pública, é outro fator a chamar
atenção para a área. No início deste mês, os resultados do Programa
Internacional de Avaliação de Alunos 2009 (Pisa, que avalia o
conhecimento de estudantes de 15 anos em matemática, leitura e
ciências) mostraram que, numa avaliação que abrangeu 65 países, o
Brasil ficou em 54olugar.
Em matemática, por exemplo, dos alunos que chegam à 4º série do
ensino fundamental só 25% aprenderam a disciplina nos níveis mínimos
esperados, diz o Todos pela Educação. Dos que chegam ao 3º ano do
ensino médio, esse número é ainda menor — 10%.
— A situação do ensino médio é o mais preocupante — diz Edward Madureira.
— O número de vagas oferecidas no ensino superior é maior que o de
alunos no 3º ano.
Há um estrangulamento aí que está no ensino médio.
A necessidade de universalização atinge não só o ensino médio, mas
também a educação infantil — as creches e pré-escolas, em déficit na
rede pública —, a outra ponta do ensino que, como o Antigo 2º grau, só
entrou mais tarde no bolo de um fundo federal (quando o Fundef virou
Fundeb). Só 50% das crianças entre 4 e 5 anos estavam matriculados na
educação pré-primária no país em 2008, enquanto a média na América
Latina era de 65,3%, diz a Unesco.
Base para a melhoria de todo o sistema, a valorização do professor
deu um passo com Lula, mas também não avançou. O governo conseguiu
aprovar lei que criou um piso salarial nacional para o professor. No
entanto, a lei não está em vigor, mas sob análise do Supremo Tribunal
Federal, após estados pedirem revisão do texto.
— Em 2007 e 2008, o governo atuou na educação básica. Mas, em 2009 e
2010, a agenda do ministro passou a ser inaugurar campus. Só que a
educação básica, por ser de co-responsabilidade de estados e
municípios, precisa de uma coordenação do governo federal — diz Mozart
Ramos.
— Então, faltou uma mobilização maior do governo que não se dividisse
entre ensino básico e superior. Faltou o governo promover um pacto
pela educação básica

Na educação, propostas extremas, alguns vexames e falta de foco na qualidade
Autor(es): Agencia o Globo
O Globo - 19/12/2010

Na educação, o governo Lula teve três ministros, nenhuma estratégia e
alguns vexames, como os do Enem. A meta inicial de erradicar o
analfabetismo foi abandonada. Caiu de 11,8% para 9,7% em oito longos
anos. Ao todo, 14 milhões de brasileiros com mais de 15 anos ainda são
analfabetos.
Mudou o ministro, e o objetivo foi para o outro extremo: passou a ser
ampliar o número de universidades públicas. Várias foram inauguradas,
mas as universidades federais atendem a apenas um quarto dos alunos do
ensino superior e metade dos seus estudantes estão entre os 20% mais
ricos do país. Com objetivos tão mutantes, deixou-se de fazer o óbvio.
O governo anterior tinha perseguido, com sucesso, o objetivo de por
toda criança na escola. O óbvio passo seguinte seria melhorar a
qualidade. O governo anterior tinha criado formas de avaliação e um
fundo especial para o desenvolvimento educacional, o Fundef. Na
oposição, o PT foi contra as duas iniciativas. No governo, trocou o
nome para Fundeb, mudou a metodologia, mas manteve o sistema de
avaliação. Uma boa novidade foi o ProUni, cujo objetivo é financiar o
ensino superior dos pobres, mas os 20% mais pobres ainda são apenas
1,5% dos estudantes do ensino superior privado e 3,4% dos estudantes
do ensino público.
É na educação que se trava a batalha econômica decisiva na era do
conhecimento, quando a riqueza maior são os cérebros. O Brasil é o
53opaís em qualidade da educação num ranking de 65 países do Pisa,
teste internacional de estudantes feitos pela Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico. A ONU constatou, ao divulgar o
último Índice de Desenvolvimento Econômico, que o Brasil tem a mesma
escolaridade do Zimbábue, país que passou nos últimos oito por
hiperinflação e recessão de 7% ao ano. Pior do que as comparações
internacionais são as internas. Pelo Ideb, Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica, que mede o desempenho do ensino fundamental e
médio, a nota conseguida pela escola pública em 2009 foi de 4,4 nos
primeiros quatro anos do fundamental. No ensino privado, foi de 6,4. A
desigualdade existe, e tanto o ensino pago quanto o público não se
saem muito bem. O que realmente desanima é verificar que a meta do
Ideb para daqui a uma década, em 2021, é chegar com o ensino público à
nota de 5,8. Isso é menos do que o ensino privado tinha em 2009. Os
dados ficam piores quanto mais sobe a série escolar. No ensino médio,
a meta para a escola pública é chegar a 2021 com 4,9 de desempenho,
quando, em 2005, o da privada já era de 5,6.
O Brasil não podia perder um minuto na educação, principalmente por
ter errado sempre nessa área decisiva.
Mesmo assim, perdeu tempo nos dois governos Lula por não saber se
queria mirar um extremo — o fim do analfabetismo — ou o outro extremo
— a ampliação do número de universidades públicas —, quando a virtude
estaria em mirar o objetivo do meio: melhorar a qualidade do ensino
fundamental e manter os adolescentes nos bancos escolares. A Síntese
dos Indicadores Sociais de 2010 mostra que metade dos jovens de 15 a
17 anos não está no ensino médio. Já pararam de estudar ou estão
atrasados. Entre os 20% mais pobres, só 32% estão no ensino médio na
idade certa. A arrancada na educação que precisava acontecer não
aconteceu.
Não seria possível resolver tantos erros acumulados nessa área
crítica, mas certamente poderia ter sido feito mais, se houvesse foco
no essencial. No debate eleitoral, esse quadro agudo de atrasos mal
foi tocado. Os dois candidatos se limitaram a disputar quem oferecia
mais escolas técnicas. A falta de uma radiografia reveladora dos
riscos na educação faz com que o novo governo comece sem o sentido de
urgência no campo onde estamos perdendo o futuro. (Míriam Leitão)