Um
imperador chinês adorava dragões. Colecionava suas imagens e os
reverenciava. Os dragões, que ocupavam o lugar mais alto na hierarquia
dos animais na China e eram associados ao próprio imperador - a palavra
dragão em chinês produz o som do trovão -, ficaram felizes quando, nas
montanhas onde viviam exilados, souberam que ele os admirava. Rompendo o
confinamento, eles resolveram visitá-lo. Desajeitados, rastejaram,
galoparam e voaram para o palácio imperial. Foram recebidos com
insultos. O imperador até tentou encarar a visita como uma cortesia.
Mas, quando se viu diante daqueles bichos escamosos e fedorentos, que,
enquanto falavam, provocavam labaredas que queimavam plantações, deixou
de lado a admiração que sentia e os expulsou do palácio.
Ouvi essa história de um
cientista político chinês, durante uma palestra numa universidade
americana. Como se sabe, disse com ironia o colega chinês, todo mundo
ama e admira a democracia desde que ela, como os dragões, permaneça nas
montanhas. Quando a democracia chega cuspindo o fogo da liberdade -com
seu poder de reduzir ricos e pobres, fracos e fortes à igualdade perante
seus poderes -, há em toda parte uma forte reação. Hoje, os dragões são
bons símbolos das confusões permanentes da competição eleitoral e da
igualdade de todos perante as leis, porque a vida numa democracia
liberal é tão complexa e difícil quanto a desses seres que, de repente,
podem botar fogo pela boca.
Como domesticar os dragões no
caso de países como o Brasil? Aqui, eles correspondem não ao ideal de
democracia, mas a outra idealização: a enorme diferença entre o que se
diz e o que se faz com nossos companheiros e com nosso partido quando
chegamos ao poder. Aí está o mensalão, armado por aficionados desses
monstros, que não me deixa mentir. O dragão pergunta: será que o voto
deve ter o mesmo valor para todos? Se sabemos a solução para os
problemas do Brasil, não seria legítimo comprar votos e políticos, e até
mesmo partidos inteiros - para permanecer no poder resolvendo, a nosso
modo, os problemas do povo brasileiro? Não se trata de tomar partido,
trata-se de condescender com a desonestidade como um meio para
permanecer no poder.
Lula, sem sombra de dúvida, foi o
político simbolicamente mais forte da história do Brasil. Ele não
precisava adorar dragões, porque dentro dele conviviam o dragão da
miséria, da fome, do abandono e da pobreza, com todos os seus terríveis
coadjuvantes. Jamais se viu um presidente ou líder político com tanto
poder de aglutinação simbólica como Lula. Ele atraía os ricos pela culpa
e pelas novas oportunidades de ganhar dinheiro com - e não contra - os
trabalhadores sindicalizados; era amado pelos subordinados e
ressentidos; era incensado pelos intelectuais - sobretudo os chegados a
um despotismozinho inocente -, porque, como Platão, supunham que ele
poderia ser educado ou convertido; era idolatrado pelos fanáticos pelo
poder porque, com Lula, algo novo ocorreria com seus donos. E,
finalmente, Lula dragava na sua figura os cristãos porque, nascido no
centro da opressão, ele sofreu, mas não desistiu.
Sua fala repleta de erros
crassos de português e de imagens simplórias não era, como pensavam os
letrados, um demérito. Era o mais sincero testemunho de sua origem
popular, porque essa fala confirmava o "pobre" iletrado (e explorado) no
papel do presidente que pode tudo. Lula foi premiado com a Presidência
por suas virtudes e por algo que a teoria política burguesa dos Hobbes,
Rousseaus, Lockes e Mills jamais perceberam: aquilo que alguns
antropólogos chamaram de "poder dos fracos". O poder dos miseráveis nas
sociedades intransigentemente desiguais, como a nossa, que tem a
ilegítima legitimidade de transformar o assalto à mão armada em
distribuição de renda. Esse poder dos fracos é o velho poder das ciganas
que vivem miseravelmente no presente, mas predizem o futuro. Lula foi a
imagem da redenção do Brasil pelo Brasil.
Nem a Revolução Francesa, nem a
Russa, nem a Americana tiveram um ator com tais atributos. Pois Lula é a
metáfora viva do que uma democracia pode fazer e do que só pode ser
feito numa democracia construída por meio de uma imprensa livre e da
competição eleitoral. Nas revoluções que romperam as realezas e
inauguraram a democracia como uma forma de vida, esse dragão feio,
imperfeito, inclassificável - porque é ave, réptil e é também um
mamífero -, não há nenhum líder como Lula. A Revolução Gloriosa e a
Francesa foram feitas por pensadores burgueses. Nem mesmo Mandela, negro
e advogado, se iguala a ele. Nenhum deles veio tão de baixo - nem mesmo
na Revolução Americana, onde se fundou a primeira sociedade civicamente
igualitária do planeta, como tão bem percebeu um deslumbrado Alexis de
Tocqueville.
Medir o que Lula representa
simbolicamente é mais fácil hoje porque o tempo e a vida - e, mais que
isso, a presença do petismo nas engrenagens paradoxais do poder -
revelaram, logo no primeiro governo, a impossibilidade de seguir à risca
o projeto ideológico de permanência, hoje em julgamento pelo Superior
Tribunal Federal. Lula perdeu parte de sua atração ideológica quando se
filiou ao projeto brasileiro perene de manter nossas desigualdades
confiando ao Estado (não à sociedade) seu projeto de revolução. E tome
roubo e recursos públicos, e tome funcionalismo acima das leis.
Está Lula hoje, como um
ex-presidente profissional que sabe como ninguém jogar com a
dramaticidade de sua trajetória e com os anseios messiânicos do povo
brasileiro, ainda desejoso de ter um dragão que tudo resolva? É certo
que Lula tem um papel ímpar no processo político nacional. Mas também é
seguro que ele não goza mais aquela ausência de verniz que o cobria como
um presidente messias - um pobre governando os pobres. A aura de pureza
e de inocência dos fracos e destituídos desmanchou-se diante da fieira
de roubalheiras que é parte de sua era.
As eleições são o teste. Veremos
se Lula continua com o mesmo poder de transferir carisma ou se o
desfrute do poder concreto tem mesmo a capacidade destrutiva de
transformar dragões em lagartos. Quem viver verá. E quem viver também
verá se ainda precisamos de messias populistas que são pais (e mães) do
povo - ou se começamos a exigir um estilo de governo mais impessoal,
menos mendaz, mais democrático, que gerencia em nome do povo o que só a
ele pertence.
FONTE: REVISTA ÉPOCA
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