Uiramutã
é uma cidade localizada na área indígena Raposa-Serra do Sol, em
Roraima. A palavra quer dizer, em macuxi, boca do Rio Mau, que separa o
Brasil da Guiana. Vindo de Boa Vista, viajo numa região acima da Linha
do Equador. A julgar pela canção, existe um pecado acima do Equador: o
empreguismo.
No momento em que se julga o
mensalão em Brasília, poucos se dão conta da dramática presença do
mensalinho nas eleições municipais. Em Roraima há 32 mil funcionários
públicos. Nem todos são necessários ao funcionamento da máquina. É o que
chamo de mensalinho. Somado aos salários de funcionários excedentes ao
longo do Brasil, desemboca num supermensalão.
Admito que essa tese possa
relativizar o processo do mensalão. O empreguismo é um pecado venial tão
absorvido pelo cotidiano que parece uma segunda natureza. Afinal, no
caso do mensalão o dinheiro público foi utilizado para compra de votos
no Congresso, algo muito diferente de um salário mensal destinado à
sobrevivência.
Quem acompanha as eleições
municipais no interior compreende muito rapidamente que os empregos
excedentes são um capital eleitoral. Prefeitos ameaçam os funcionários
que se afastam ostensivamente do voto oficial. Convencem os mais
ingênuos de que perderão seu emprego se o adversário ganhar. De certa
forma, têm razão. Quase nunca a oposição virá com nova perspectiva sobre
o uso do dinheiro público, mas trará os próprios aliados para os
cargos. O raciocínio quase consensual entre os políticos é este: se não
emprego os aliados, quem empregaria, os adversários?
Compreendo que as pessoas achem
eleições, com sua superfície pitoresca, algo de outra galáxia.
Candidatos estranhos que parecem ter vindo de muito longe, da
Neverlândia. Falar de eleições, portanto, é arriscado. Do distante
Estado de Roraima, então, arriscadíssimo.
Em Boa Vista há o pitoresco
eleitoral, como em toda parte. Um descendente de japoneses é candidato a
vereador com o slogan "o único que não tem olho grande". Um líder
partidário contou que foi chamado às pressas ao Tribunal Regional
Eleitoral (TRE) para discutir problema urgente: havia dois candidatos
com o nome Pé de Pato. Quem sobraria? Ao cabo de muita negociação, o
perdedor teve de se consolar com o acréscimo do nome verdadeiro: Ricardo
Pé de Pato.
Por baixo dessa superfície
folclórica, as eleições em Boa Vista tratam de problemas sérios e
revelam um certo esgotamento do modelo empreguista. É preciso investir,
abrir novos postos de trabalho, estimular as pessoas a inventar suas
próprias fontes de renda. Nesse sentido, Boa Vista, que é a capital mais
setentrional do País, dependente do governo federal, pode nortear
alguns debates futuros, sobretudo nas cidades que recebem royalties de
petróleo e não melhoram a vida de seu povo, pois uma terça parte do
dinheiro se destina à contratação de servidores.
O modelo vai-se esgotando não
por uma crise moral, mas a partir das necessidades econômicas. O difícil
será derrotar uma elite que é mediadora entre as verbas federais e seu
emprego em projetos locais.
Na maioria das cidades que
percorri até agora, os prefeitos são favoritos. Isso não significa que
serão vencedores de ponta a ponta.
Há casos como o do prefeito de
Uiramutã, do PT, que só tinha uma bicicleta e, segundo os adversários,
comprou seis caminhonetes e um avião. Aqui a dúvida se o dinheiro é
público ou privado não procede. A maioria dos 9 mil habitantes vive de
Bolsa-Família, há apenas um pequeno comércio. Sem estar sob nenhuma
acusação específica, a prefeita de Natal, do PV, é rejeitada por mais de
90% dos eleitores e nem disputará as eleições.
Tanto as suspeitas de corrupção
como o colapso administrativo são fatores que podem favorecer uma virada
do jogo. O problema é prever o que significa a virada do jogo, caso
ocorra. Não há programas definidos para um novo caminho.
É difícil ganhar eleições com
promessa de enxugar a máquina. Os que consideram isso um fator de peso
na definição do voto são minoria. E a ausência de expectativa de
presença nos cargos do governo esfria os aliados e a própria equipe de
campanha. A semente dos favores oficiais está num dos textos fundadores
do Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha, na qual ele pede ao rei ajuda
para seu genro. A expectativa de ser amparado pelo governo é um sonho
de 500 anos.
Não acredito que as eleições de
2012 superem esse problema. No entanto, a pressão econômica poderá vir
de cima para baixo, caso o governo federal avalie seus gastos. E pode
vir de baixo para cima, caso haja núcleos interessados em examinar as
contas públicas e monitorar o desempenho das administrações.
Num
programa eleitoral em Manaus vi uma candidata que se intitula a Madona
dos Ferroviários; em Boa Vista, um candidato que enfrenta a câmera
seriamente e afirma muitas vezes: "Morro tentando". Depois de rir um
pouco, a gente se pergunta de quem está rindo mesmo.
Por trás de toda a crosta
folclórica, as eleições definem o futuro de temas vitais, como
saneamento, mobilidade. Há uma muralha político-cultural e é preciso
achar brechas paras algumas ideias sobre cidade brasileiras mais
humanas, sustentáveis e inteligentes. Esta última, na medida do
possível, de acordo com as vocações de cada uma.
No livro Bombaim, Cidade Máxima,
Suketu Mehta conta a história de um cabo eleitoral do Partido do
Congresso que argumentava mais ou menos assim: o partido já ganhou
dinheiro suficiente; pode votar que eles não querem mais, vão apenas
governar. Não sei quantos votos virou com o argumento. Não vejo consolo
nele. Suficiente é um conceito relativo.
Não é preciso morrer tentando,
como o candidato de Boa Vista. Mas reconhecer que o caminho é longo.
Quanto perguntamos aos índios de Roraima a que distância estamos de um
lugar, eles respondem: "Longe". Se perguntamos por horas de viagem,
quilômetros, ele respondem de novo: "Longe, longe".
Tudo o que podemos desejar agora é uma boa viagem.
* Jornalista
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (14/09/12)
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