Filósofo alemão revaloriza a prática política na Europa e resiste a toda sedução de concentrar o foco na economia
Jürgen Habermas é conhecido como
autor caudaloso, que, uma vez posto em movimento, nada pode deter. Mas
aqui, neste pequeno volume, é diferente. Nele encontramos dois ensaios,
relativamente independentes (que podem ser lidos separadamente, embora
se apresentem como formando um só). O livro pode ser lido como uma
espécie de condensação da longa reflexão do autor, na sua incessante
busca do entrelaçamento das grandes questões do dia com o universo
conceitual que lhes possa conferir sentido, no pensamento e na ação.
Mesmo aqueles que em algum
momento tenham sentido uma ponta de impaciência com as idas e vindas de
um pensamento que se questiona sem descanso e não oferece atalhos, esse
livro é precioso. É verdade que uma leitura mais cuidadosa poderá
detectar sinais inquietantes na combinação dos dois ensaios, como faz na
sua apresentação Alessandro Pinzani - ele próprio autor de importante
livro sobre o conjunto da obra de Habermas. Pinzani sugere a
possibilidade de que, nesses trabalhos recentes (do alto dos seus
oitenta e tantos anos) Habermas tenha recuado em relação à sua
fundamental ênfase numa razão discursiva que, no âmbito da política, se
realiza dispensando quaisquer fundamentos e impondo todo o peso da
legitimação democrática (a única que importa) à livre deliberação
racional. Esse recuo se daria no papel que Habermas atribui à dignidade
como categoria que precede os direitos humanos, ao lhes garantir uma
referência universal. Significaria isso uma âncora fixa, que acaba
amarrando o intercâmbio discursivo e funcionando como fundamento
normativo dos direitos (o que Habermas sempre quis evitar, ao concentrar
a atenção em processos e procedimentos)? Esse cuidado, na própria
apresentação, em fazer o que Habermas tanto aprecia, ou seja, debater,
mostra quanto essa edição brasileira é séria. Não é pouca coisa, aliás,
que três dos quatro integrantes da comissão encarregada pela editora da
Unesp do grande projeto de edição integral da obra de Habermas num
padrão exigente de qualidade assinem a tradução; ainda mais sendo todos
eles representativos de uma nova geração de estudiosos dessa obra no
Brasil.
Na concepção de Habermas a
dignidade relaciona-se com os direitos de maneira "genealógica". Ou
seja, não como fundamento, mas como a "fonte moral da qual os direitos
fundamentais extraem os seus conteúdos". A partir dessa posição básica
torna-se possível a construção de uma "utopia concreta" dotada de
conteúdo político. "A perspectiva de uma sociedade mundial constituída
politicamente perde algo de sua aparência de utopia quando nos lembramos
que, há poucas décadas, a retórica e a política dos direitos humanos
desenvolveram efetivamente uma eficácia global", sustenta ele, para
concluir: "Essa pretensão cosmopolita significa que o papel dos direitos
humanos não pode se esgotar na crítica moral das relações injustas de
uma sociedade mundial altamente estratificada. Os direitos humanos
dependem de sua incorporação institucional em uma sociedade mundial
constituída politicamente". Este é o ponto, é aqui que se manifesta o
cerne da sua posição. Consiste ele em buscar a fonte das exigências
efetivas de direitos na ligação entre direitos e moral mediante a
exigência matriz de dignidade, para dar sentido à ligação entre direitos
e política mediante novas formas de legitimação no único âmbito
possível: o da constituição (em ambos os sentidos) de uma democracia
transnacional com ímpeto cosmopolita. "A tensão entre ideia e realidade
que com a positivação dos direitos humanos se introduziu na própria
realidade nos confronta hoje com a exigência de pensar e agir de modo
realista, sem trair o impulso utópico. Mas essa ambivalência pode nos
levar muito facilmente à tentativa de ou assumir uma posição idealista,
mas desvinculada, a favor do conteúdo moral transcendente, ou adotar a
pose cínica dos assim chamados realistas". O resultado é uma posição que
valoriza a prática política e resiste a toda sedução, afirmativa ou
não, a concentrar o foco na economia. Falando dos estragos causados pelo
capital financeiro, ele não permite dúvidas: "A política se torna
irrisória se ela moraliza em vez de apoiar-se no direito de coerção do
legislador democrático. Ela, e não o capitalismo, é responsável pela
orientação do bem comum".
Eis, portanto, um livro no qual
se articulam dois temas de eminente atualidade. Por um lado, a questão
que se reacende no debate brasileiro, sobre os direitos fundamentais,
suas perspectivas, seus riscos e os efeitos das suas violações; pelo
outro, a questão da constituição/configuração da Europa no momento em
que o projeto da união européia faz água por todos os cantos, mas se
impõe como grande experiência histórica (de "aprendizado", lembra
Habermas).
Habermas escreve para remover o
"bloqueio mental que impede olhar para a frente". Não é possível ficar
indiferente ao esforço desse pensador intrépido que, embora temperado
por todas as cautelas críticas, não consegue resistir ao papel que
escolheu, de ser um iluminista à altura do nosso tempo.)
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO (02/09/12)
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