A política brasileira ainda se organiza em torno da defesa das conquistas
de FHC e de Lula, e não a partir de projetos que enfrentem os problemas
que nenhum dos dois resolveu
por CELSO ROCHA DE BARROS
Já
parece haver, entre os observadores da política brasileira, algum
consenso sobre o que é o estilo da presidente. Dilma Rousseff dá broncas
espetaculares em seus ministros, já tendo abalado a estabilidade
emocional de alguns deles. Dilma microgerencia os projetos do governo,
muitas vezes passando por cima dos titulares dos ministérios para lidar
direto com o segundo ou terceiro escalão. Dilma tem pouca paciência com
barganhas políticas (mas há quem diga que o tempo a está tornando mais
paciente com elas). Dilma é uma negociadora dura que deixa claro o ponto
em que não pretende mais continuar conversando. Dilma é pouco propensa a
estabelecer relacionamentos pessoais próximos com aliados. (Lembram dos
churrascos do Lula com direito a pelada entre os ministros?) Dilma é
mais discreta, e provoca menos a oposição. Dilma tem menos diálogo com
os movimentos sociais do que tinha Lula. Dilma concentra sua atenção em
um número limitado de problemas, o que para alguns é foco, e, para
outros, estreiteza. Já se lembraram de Max Weber para opor Dilma, a
tecnocrata racional-legal, a Lula, o carismático. E, o que talvez seja o
aspecto que mais aparece para a população em geral, Dilma tem parecido
ser menos conivente com a corrupção, demitindo mais ou menos rapidamente
ministros denunciados pela imprensa.
A
vontade de fazer o contraste com Lula talvez exagere esses atributos,
mas é provável que o retrato que emerge da sobreposição dessas várias
descrições seja razoavelmente fiel. A imagemde presidente gestora
corresponde, no mínimo, a um aspecto da autoimagem de Dilma. Em uma
entrevista à tevê em 2009, ela disse que seu grande objetivo, se eleita,
seria aumentar a eficiência e a capacidade de ação do Estado
brasileiro. Creio que devemos levar essa afirmativa a sério, ao menos
como sinalização do que Dilma pensa e espera de si mesma. (Leitores
diferentes terão opiniões diferentes sobre sua capacidade de entregar o
que diz pretender.) Já há, em termos de eficiência, pelo menos alguns
resultados palpáveis: segundo o economista do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (e crítico do governo) Mansueto Almeida, em junho de
2012 houve um aumento da execução orçamentária dos ministérios (à
exceção do Ministério dos Transportes, abalado por uma série de
escândalos), o que é uma medida aproximada do quanto o governo consegue
implementar seus projetos (mas não, é importante frisar, do quão bons
possam ser esses projetos).
A
popularidade da presidente sugere que as pessoas – além de compreender
que mulheres podem atuar em outros papéis que não apenas de mãe em
música do Agnaldo Timóteo – têm uma demanda por clareza política e rigor
administrativo anteriormente não satisfeita. Talvez porque, quando essa
demanda aparecia no discurso da oposição, lhes fosse apresentada como
uma escolha: ou isso ou as políticas sociais do Lula. Pode ser verdade o
que se dizia na época da eleição de 2010, que Dilma tinha muitas
características semelhantes às de José Serra, mas tinha a vantagem
crucial de que não forçava ninguém a fazer essa escolha. Se a população
está certa em sua avaliação de Dilma, ou se apenas projeta nela suas
expectativas, é algo que descobriremos até o fim de seu mandato.
É
claro que nem tudo nessa história é estilo ou, o que talvez seja mais
preciso, nem tudo no estilo de uma Presidência é a personalidade do
presidente. Muitas das diferenças entre Lula e Dilma, e muito da
viabilidade dos dois estilos, são explicáveis por diferenças entre os
momentos políticos em que cada um estabeleceu sua assinatura individual.
Por
exemplo, se Dilma tem mais autonomia diante da base parlamentar, também
é verdade que enfrenta uma oposição muito mais fraca do que a que
confrontou Lula, especialmente após o racha do dem(que levou à formação
do PSD) e a catástrofe de Demóstenes Torres. A força do PSDB e PFL/DEM
durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva (em especial durante o
primeiro mandato) aumentava o poder de barganha da base aliada, que
podia ameaçar, com credibilidade, passar para a oposição (com a qual,
afinal, tinha mais afinidade ideológica). Com a oposição fraca como
está, os partidos menores calculam que romper com o governo é se afastar
do poder (e dos favores que ele distribui) por um bom tempo. Em épocas
de governo forte, a oferta de aliados cresce, e a lei da oferta e da
procura faz seu trabalho com o preço dos aliados. Não é só de corrupção
que estou falando, vejam bem: faz parte do jogo que os deputados briguem
por recursos para suas regiões e bases de apoio.
Por
outro lado, se Dilma tem menos diálogo com os movimentos sociais, em
boa parte é porque tem menos a lhes oferecer, dada a política econômica.
Na análise já citada de Mansueto Almeida (leiam esse cara), fica claro
que a presidente está gastando o dinheiro que tem para gastar,
fundamentalmente, com programas sociais (o MinhaCasa, Minha Vida, por
exemplo, está recebendo uma boa grana). Esses programas são direcionados
ao que o cientista político André Singer identificou como a base social
do lulismo: os pobres desorganizados, que ele chama de
“subproletariado”.
A
prioridade dos gastos de Dilma não é, portanto, a base social do pt,
onde predominam os setores populares organizados. E definitivamente não
são os setores de renda média tradicionalmente associados ao pt, como o
funcionalismo público. Diante da crise mundial, Dilma tem preferido usar
o resto do dinheiro de que dispõe para tentar incentivar a economia.
(Pode-se discutir, é claro, o quanto essas medidas serão eficazes.) Isso
quer dizer que, a menos que a presidente decida cortar gastos sociais,
não há muito dinheiro para atender reivindicações de ninguém. Como seria
de se esperar, isso não está semeando alegria entre os funcionários
públicos. Mas tampouco os funcionários ficariam felizes se Dilma os
convidasse para um café, lhes fizesse um cafuné, e explicasse, no final,
que não tem dinheiro para aumentar o salário de ninguém. Se Dilma
aumentasse os salários, por outro lado, poderia receber os sindicalistas
a golpes de pá que não perderia seus votos no concurso de Miss
Simpatia. Isso vale, em dobro, para deputados da base governista e seus
pedidos de liberação de emendas parlamentares. Não se trata de estilo.
As
diferenças de estilo também podem refletir mudanças no jeito com que
diferentes atores se relacionam com a nova presidente. Não sabemos se
partidos aliados, ou o pt, não estão testando o terreno para saber se
podem pedir mais de Dilma do que pediam de Lula; se for este o caso,
isso exigirá, por parte da presidente, demonstrações de rigor para
segurar a sede com que vão ao pote. Lula inspira deferência muito maior
dentro do pt, o que talvez o dispensasse de maiores demonstrações de
autoridade. Dilma, por outro lado, sofre muito menos preconceito de
classe, o que a livra de ataques elitistas (“Vamos acabar com essa
raça”) que precisariam ser respondidos com gestos populistas ameaçadores
(“Vamos exterminar o dem”).
A
atitude diferente diante da oposição, e mesmo a atitude diante de
aliados acusados de corrupção, também é reflexo de diferenças na rede de
apoios dos dois presidentes. Há testemunhos de que, após a crise do
mensalão, Lula procurou se entrincheirar com os setores com os quais
podia contar em qualquer eventualidade, em especial os sindicatos. Dilma
não tem ninguém com quem possa contar com esse grau de certeza; por
essas e outras razões, tem muito menos meios de administrar um grande
escândalo de corrupção, e precisa construir mais pontes com a oposição.
Finalmente,
não se pode descartar a possibilidade de as diversas manifestações de
simpatia ou antipatia pelo “estilo Dilma” serem outra coisa: acertos de
contas tardios e meio envergonhados de gente que faz tempo percebeu que
vinha falando besteira (contra ou a favor) sobre o governo Lula, mas que
já tinha empenhado sua posição, bem como sua credibilidade em sua roda
de truco, a favor ou contra o sujeito, e achou mais fácil mudar de
opinião agora que mudou o presidente.
Tenho
amigos de esquerda que romperam com o governo Dilma por causa da Usina
de Belo Monte, e lamentam a virada à direita que esse projeto “ecocida”
imposto de cima para baixo representa. Mas Lula também era a favor de
Belo Monte. Parece-me que esses colegas superestimaram o esquerdismo
(ou, no mínimo, o ambientalismo) de Lula, e só por isso veem uma grande
virada em Dilma. Da mesma forma o fazem os que passaram oito anos soando
o alarme de comunismo, totalitarismo, aparelhamento, Foro de São
Paulo, o “polvo” da Veja,
e depois acharam meio difícil admitir que Lula, se tinha lá seus
problemas, nunca esteve nem sequer perto de ser um fanático de esquerda.
É mais fácil para essa turma dizer que a Dilma é tão diferente de Lula
que já é possível reconhecer uma ou outra qualidade em um governo do pt.
Nessa hipótese, o que está havendo é menos uma racionalização do
governo e mais uma racionalização da discussão política, que se
confundiu um pouco vendo o Lula implementar políticas moderadas.
O
estilo de Dilma também é sintoma de seu projeto. É possível, é claro,
que Dilma tenha escolhido seu projeto por ser o tipo de tarefa que atrai
alguém com sua personalidade. E é provável que Lula a tenha escolhido
como sucessora porque também apostou na importância do projeto, e viu em
Dilma alguém capaz de levá-lo adiante.
Quando
Dilma era ministra de Lula, seu nome era frequentemente associado ao
“desenvolvimentismo”. Esse é um nome que já foi usado para descrever
coisas tão diferentes que talvez não seja mais muito útil, mas, em
geral, se refere à defesa de que o Estado, sem substituir a iniciativa
privada, tente acelerar ou induzir o desenvolvimento com obras de
infraestrutura, política industrial, intervenção na taxa de câmbio ou
outras coisas do tipo. Em grandes linhas, e com idas e voltas, descreve a
política econômica brasileira entre Vargas e o fim da ditadura militar.
Em fases diferentes, o desenvolvimentismo foi mais estatista ou mais
privatista, democrático ou autoritário, com grande participação do
capital estrangeiro ou nacionalista. Produziu altas taxas de crescimento
por algumas décadas, mas desabou espetacularmente sob o próprio peso na
passagem para a década de 80.
A
moderna democracia brasileira nasce justamente na crise do
desenvolvimentismo, e convive problematicamente com sua memória. As
grandes realizações do Brasil nas últimas décadas foram correções de
legados ruins do desenvolvimentismo: a hiperinflação (que só acabou em
1994) e a desigualdade (que só agora caiu abaixo do que era nos anos
60). Por outro lado, o crescimento econômico brasileiro na era
democrática foi baixo, bem mais baixo do que no período
desenvolvimentista. Por estupenda que tenha sido a vitória de Fernando
Henrique Cardoso sobre a inflação, ela se deu ao preço de o Brasil ter a
maior taxa de juros do mundo. E, por mais indiscutivelmente justas que
sejam as políticas sociais de Lula, é fato que mais dinheiro para a área
social é menos dinheiro para investimento. Isto é: a herança que Dilma
recebeu de seus antecessores inclui a prataria, mas também aquele quadro
feio de palhaço chorando.
Quando
Dilma escolheu como prioridade recuperar a capacidade de ação do
Estado, indicou disposição para enfrentar esse nó restante da transição
democrática. O leitor pode chamar essa postura de “desenvolvimentista”,
dependendo do que entender por desenvolvimentismo, mas o que importa é o
foco na remoção de obstáculos para o crescimento. Dilma se preocupa com
o financiamento de investimentos de longo prazo e com a perda de
competitividade da indústria. Dilma quer criar condições para a redução
da taxa de juros e resolver carências de capital humano. Dilma fala
muito mais em políticas de inovação tecnológica do que seus
antecessores. O desafio é implementar essa agenda sem repetir as
violências praticadas pelo velho desenvolvimentismo contra a democracia,
a boa gestão macroeconômica, o meio ambiente ou a igualdade.
Há
quem diga que os velhos vícios estão de volta: à esquerda, militantes
ambientalistas críticos da construção da Usina de Belo Monte, como o
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, argumentam que Dilma demonstra a
mesma despreocupação com direitos indígenas que o regime militar
demonstrava. À direita, o economista Alexandre Schwartsman manifesta
ceticismo em relação ao compromisso do atual governo com o regime de
metas de inflação herdado de fhc. Ainda que admitamos que Dilma escolheu
para si um desafio que eventualmente teria que ser enfrentado, é
preciso admitir que a escolha traz riscos significativos.
É
fácil ver que muitas das características do estilo Dilma derivam da
tarefa que ela se colocou. Os problemas que a presidente tem à sua
frente não vão ser resolvidos por um grande plano econômico, por melhor
que seja, ou por um ou dois programas sociais bem desenhados. Se Dilma é
detalhista é porque os problemas que enfrenta agora exigem desatar
centenas de nós menores. Se prefere discussões técnicas, é porque todos
esses problemas têm aspectos técnicos absolutamente infernais. (Se
alguém te disser que basta vontade política para baixar os juros, ou
reduzir os gastos públicos, nunca mais ouça o sujeito.)
O
estilo Dilma, portanto, é a resultante de uma personalidade, uma
conjuntura política e um projeto. Resta saber qual a viabilidade desse
conjunto nas circunstâncias atuais. Até porque, convenhamos, a
conjuntura faz você desejar que o sujeito que sempre aparece nessas
horas dizendo que “o ideograma chinês para crise é o mesmo para
oportunidade” seja obrigado a lavar as cuecas de todo o Exército de
Libertação Popular para ver que oportunidade ele encontra lá dentro.
Uma
crise profunda como a que atinge a economia mundial desde 2008 exige
certo tipo de liderança. Em horas como essa, é bem mais importante ser
capaz de evitar o pânico do que despertar entusiasmo.
Dificilmente
se pode acusar Dilma de ter ficado parada. Os bancos governamentais
agiram coordenadamente para colocar pressão sobre os juros dos bancos
privados. Dilma promoveu uma série de isenções tributárias (incluindo a
desoneração da folha de pagamento para vários setores), deu mais
dinheiro para o bndesemprestar, lançou um pacote de concessões ao setor
privado na área de infraestrutura, e arriscou um protecionismo muito
questionável.
Para
tornar a redução de juros possível, a presidente arriscou seu capital
político alterando a rentabilidade da poupança, o que foi uma jogada
ousada. Alguns críticos têm reclamado da falta de reformas que
beneficiem a economia no longo prazo, mas o foco atual do governo no
curto prazo é menos um sintoma de nossa velha inércia do que a
consequência do fato de que esse curto prazo que temos pela frente é
muito mais perigoso do que os curtos prazos costumam ser: os curtos
prazos não nascem todos iguais, e o atual é particularmente horroroso.
Alguns dos que criticam o governo por miopia no meio de uma crise desse
tamanho estão sofrendo de severa hipermetropia, mesmo se as reformas por
eles defendidas forem uma excelente ideia e merecerem mesmo ser
implementadas.
Se
a crise durar menos do que se espera, é possível que as medidas tomadas
até agora, ou outras da mesma natureza, sejam suficientes para blindar o
Brasil contra os piores aspectos do desastre. Agora, podemos nos
perguntar, quais as chances de a crise durar pouco?
Certas
coisas que hoje não parecem prováveis precisariam acontecer. Nos
Estados Unidos, algum acordo entre Obama e oposição precisaria ser
celebrado para garantir que o governo jogue mais dinheiro na economia
agora, estimulando-a, e se planeje para economizar mais (bem mais)
quando a economia voltar a funcionar. Na zona do euro, a Alemanha
precisaria aceitar ter uma inflação maior do que a dos países devedores
(Grécia, Espanha, Portugal, Itália), em troca de promessas, críveis, de
que esses países vão tentar reformar suas economias: quer dizer, o
eleitorado alemão vai ter que aceitar riscos por causa dos países
devedores, e o eleitorado dos países devedores vai ter que aceitar
sacrifícios para limitar o risco dos alemães. E se vocês acharam que
isso tudo já estava difícil, a China, que é quem costuma vender para
essa turma toda (e comprar da gente), vai ter que se voltar mais para o
mercado interno. Isso quer dizer mexer no arranjo que até agora deu
muito certo: poupança altíssima, investimento altíssimo e dependência
das exportações. Para a China desenvolver seu mercado interno, vai ter
que implementar reformas dificílimas (na remuneração da poupança, na
propriedade da terra, nas políticas sociais, no financiamento dos
governos locais), e todas elas, sem exceção, ameaçam algum interesse
poderoso na política chinesa.
Pode
ser que tudo isso seja resolvido, ou, pelo menos, resolvido o
suficiente para encaminhar a solução da crise, mas seria irresponsável
apostar nisso. As exigências que a crise econômica está fazendo à
política estão léguas além do que seria razoável ou parece factível. O
cenário mais provável para os próximos anos inclui baixo crescimento
entremeado com choques negativos, produzidos na tentativa de desemperrar
os mecanismos políticos nos países desenvolvidos e na China.
Isso
dificulta a realização do projeto da presidente e pode alterar
drasticamente as condições políticas em que o “estilo Dilma” tem operado
com sucesso. Convém aqui examinar o cenário pessimista, em que a crise
bate fundo na economia brasileira, a arrecadação cresce devagar, o
desemprego sobe – enfim, nada que nós nunca tenhamos visto acontecer.
Há,
em primeiro lugar, o risco de o dilmismo entrar em conflito agudo com a
herança de Lula. Se a situação piorar e a quantidade de recursos
encolher, Dilma pode ter que escolher entre abandonar seu plano
desenvolvimentista inicial ou sacrificar as conquistas sociais de Lula;
isto é, escolher entre aumentar o investimento público ou manter os
gastos sociais.
Caso
opte por cortar os gastos sociais (o que me parece improvável), Dilma
corre um sério risco de perder o apoio da base social do lulismo (os
mais pobres). Isto é, Dilma teria que contar apenas com o apoio que
conquista sozinha, sem o contágio da popularidade de Lula. O que hoje
nela é visto como objetividade e determinação aos poucos seria
reinterpretado como frieza e insensibilidade social. Se Dilma perde o
lulismo (o que é diferente, vejam bem, de perder o pt), corre o risco de
se aproximar demais da marca José Serra. É verdade que muitos eleitores
de Serra na classe média têm se entusiasmado por Dilma, mas não sabemos
se esse apoio resistiria a uma deterioração da economia ou a uma crise
política mais séria. Por esses e outros riscos, seria bastante
surpreendente se Dilma escolhesse sacrificar a herança de Lula.
Há,
é claro, a possibilidade de abandonar a herança de fhc, uma proposta em
cuja defesa, infelizmente, não faltará quem saia na esquerda. Isso
poderia ser feito só pelo lado fiscal, aumentando o gasto com
investimentos e com a área social muito além do que seria responsável,
ou substituindo o comando do Banco Central por uma equipe mais dócil que
aceitasse baixar os juros muito mais do que seria responsável.
Implicaria, naturalmente, voltar a conviver com inflação mais alta.
Isso
teria tudo para ser um desastre, porque – repitam 100 vezes comigo – a
inflação sob controle é tão parte do lulismo quanto os gastos sociais:
os aumentos da renda dos pobres seriam facilmente anulados por uma
inflação só um pouco mais alta. Aqui também, cedo ou tarde, Dilma
perderia o apoio dos mais pobres, além, é claro, de comprar brigas
violentas com os setores que não gostavam de Lula, mas simpatizam com
ela (parte da classe média, do empresariado etc.). Dilma perderia,
definitivamente, sua reputação de competência gerencial, adquiriria a
imagem de ideóloga populista radical (como a de Cristina Kirchner),
seria vista como traidora de Lula, como destruidora do legado de fhc, e
seu estilo “distante dos partidos” rapidamente apareceria como “incapaz
de agradar quem quer que seja”. Os riscos associados a essa opção também
a tornam improvável.
Ou
seja, governar sem dinheiro durante as grandes crises cíclicas da
economia moderna é uma desgraça, é horroroso, não aconselho a ninguém.
Mas isso não quer dizer que, mesmo que a crise piore, não haja na-da que
Dilma possa fazer. Só não há nada que seja fácil. Em vez de crescer a
partir das conquistas de fhce Lula, Dilma teria que partir da solução
dos problemas que os dois lhe legaram, em especial os dois citados
acima: os juros muito altos e o pouco espaço no orçamento público para
investimentos após a expansão dos gastos sociais.
Dilma
poderia, por exemplo, tentar enfrentar a parte (vejam bem, é só uma
parte) dos juros altos que, segundo gente que entende dessas coisas, é
causada por mecanismos meio emperrados na economia brasileira. Não estou
falando de ir lá no prédio do Banco Central e pedir para o Alexandre
Tombini baixar os juros na marra (isso seria abandonar a herança do
fhc). A ideia é o governo economizar dinheiro (sem isso a conversa não
vai muito adiante) e tentar resolver imperfeições nos mecanismos da
economia brasileira que mantêm os juros em um patamar alto demais para
padrões internacionais. A complexidade do problema é infernal, e a coisa
não é para amadores.
Se
Dilma tentar esse caminho e der errado, pode acabar abandonando a
herança de fhcinvoluntariamente, comas consequências já previstas. Mas,
se der certo, será naturalmente um enorme sucesso, mesmo que suas
consequências só sejam visíveis alguns anos depois (com a possibilidade,
inclusive, de algum outro presidente colher esses benefícios, e Dilma
jamais receber qualquer crédito).
Uma
outra alternativa seria preservar os gastos sociais de Lula e
“tucanizar” um pouco suas propostas para aumentar o investimento, para
que não concorra com os gastos sociais pelos poucos recursos no
orçamento. O uso de concessões nos serviços públicos, como foi feito
recentemente com o pacote para rodovias e ferrovias, pode ser
interpretado dessa forma. A interpretação corrente, porém, não é essa: é
que Dilma descobriu que o Estado brasileiro é ainda mais ineficiente do
que ela imaginava. Isso é parte da verdade, mas não acho que seja tudo,
ou o mais importante. Mesmo se o Estado fosse inteiramente capaz de
investir os recursos que agora esperamos que a iniciativa privada
invista, essa seria a melhor maneira de gastar esse dinheiro?
Politicamente, creio que não: é melhor para Dilma manter as políticas
sociais, e o apoio político que elas trazem entre os pobres.
Leitores
diferentes terão opiniões diferentes sobre a probabilidade de essa
estratégia ser eficiente, mas, a crise piorando, não haverá comofazer
desaparecer a escolha entre ampliar gastos sociais ou ampliar
investimentos. Ainda na linha de transferir a responsabilidade do
investimento para o setor privado, o governo poderia promover algumas
reformas tributárias ou regulatórias que favorecessem a atividade
empresarial sem conflitar demais com sua posição de esquerda. Por
exemplo, duvido que muita gente na esquerda se importasse caso Dilma
tivesse como objetivo melhorar a posição do país nos rankings de
ambiente de negócios (dificuldade de abrir e fechar uma empresa,
complexidade do sistema tributário etc.). Isso seria visto com bons
olhos por novos simpatizantes de Dilma na velha classe média, mas é
possível que também o fosse na nova, a classe C do Lula: ainda não
sabemos o tamanho do potencial empreendedor ali travado até agora.
A
estratégia tucanizante ofende profundamente muita gente no pt(bem como
nos outros partidos de esquerda da base governista), mas é provável que,
em algum momento, o partido seja forçado a escolher entre suas
preferências por estatismo econômico e por políticas sociais generosas. O
discurso da oposição, em especial do psdb, pode ser fortalecido, o que,
como já vimos, aumenta o preço dos membros da base aliada. No mínimo, o
debate ideológico pode ser reiniciado, o que tende a dissolver a imagem
de uma Presidência puramente técnica. Se a estratégia der errado, Dilma
realizará a façanha de não agradar ninguém; mas, se der certo,
reforçará suas credenciais de pragmática e acima de interesses
partidários mesquinhos. E, naturalmente, como em tudo que envolve
concessão pública, haverá denúncias de corrupção (várias delas, sem
dúvida, verdadeiras), que ameaçarão um aspecto crucial da imagem da
presidente.
A
política brasileira está organizada muito mais em torno da defesa das
conquistas de fhcou de Lula do que a partir de projetos de resolução das
tarefas que nenhum dos dois resolveu. Seria desastroso se qualquer das
duas heranças fosse desperdiçada, e, se o preço para preservá-las for se
mover mais lentamente, eu faria isso. Mas a margem para Dilma se
desviar desses problemas é bem menor do que a de seus antecessores, e a
situação internacional não está com cara de que vai ampliá-la. É
possível que, dentro de seu estilo de tocadora de projetos, Dilma acabe
implementando uma grande reorganização da discussão pública brasileira,
quer queira, quer não.
REVISTA PIAUÍ
09/2012
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