A decisão do Supremo Tribunal Federal, no corrente mês de maio, reconhecendo a união estável de casais do mesmo sexo constitui um salto no avanço dos direitos dos homossexuais e um indicador de amadurecimento de uma parte da sociedade brasileira.
São muitos os méritos da mais alta corte do País ao tomar essa decisão. Seria fácil a seus membros lavar as mãos e não conhecer as ações propostas pela Procuradoria da República e pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, sob a alegação de que a matéria dependia de lei de iniciativa do Congresso. Diante da inércia do Legislativo, neste e em outros casos de extrema relevância, o STF entendeu que a questão envolvia preceitos constitucionais básicos e deveria, assim, ser decidida em seu âmbito.
Outra razão que nos leva a enfatizar a importância do julgamento do STF reside no fato de que, para chegar à decisão, a nossa mais alta corte de Justiça seguiu uma linha de interpretação não literal da lei, harmonizando-a com as chamadas cláusulas pétreas da Constituição. Assentou o STF que o fato do Código Civil reconhecer como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher em nada impede a concessão do mesmo direito aos casais do mesmo sexo. Não é pouco, o que disseram os ministros, na votação da matéria. Exemplifico, com um pequeno trecho do voto do ministro Luiz Fux: "A união homoafetiva enquadra-se no conceito de família. A pretensão é que se confira juridicidade a essa união homoafetiva para que os homossexuais possam sair do segredo, sair do sigilo, vencer o ódio e a intolerância, em nome da lei".
Entretanto, não é possível afirmar que o julgado em exame veio referendar uma situação já admitida pela sociedade. É verdade que a aceitação de um comportamento afetivo diverso do padrão heterossexual vem ganhando certo grau de reconhecimento, pela via da ação das ONGs, por manifestações como as paradas gay que atraem milhões de pessoas, talvez pela ação educativa de certas escolas de ponta e ainda pela influência generalizada das novelas. Por exemplo, recentemente, um canal de televisão (SBT) projetou sem rodeios, numa de suas novelas, a imagem de um primeiro e longo beijo entre duas jovens lésbicas.
Admitido o avanço, é forçoso considerar que a decisão do STF não veio ao encontro de uma esmagadora maioria da opinião pública, como aconteceu com a lei do divórcio, aprovada curiosamente pelo Congresso, durante o regime militar, em dezembro de 1977. Em poucas palavras, naquele caso, a questão, que fora quente no passado, se tornara fria.
O reconhecimento da família homossexual divide as opiniões. Por um lado, para os setores mais conservadores da sociedade, para a Igreja Católica e outras igrejas, ela representa um terrível golpe na instituição da família, constituída por um homem e uma mulher, tal como se entendeu, ao longo dos séculos, no mundo ocidental.
Por outro lado, descartando-se o catastrofismo que acompanha as profundas transformações do comportamento, reconhecer a união de casais do mesmo sexo tem aspectos díspares. Ampliar o conceito tradicional de família constitui uma verdadeira revolução no plano dos fatos e do imaginário social. Ao mesmo tempo, estamos lidando com casais estáveis, cujo direitos devem ser reconhecidos, e não com "a marginalidade desviante". O vínculo estabelecido por esses casais é duradouro, embora ele possa romper-se, como ocorre com qualquer vínculo afetivo, mesmo sancionado pela lei e pelas bênçãos das igrejas.
A existência de um arraigado preconceito homofóbico em nossa sociedade é uma óbvia constatação. Lembremos a discriminação de que têm sido vítimas homossexuais praticantes de esportes coletivos, vaiados impiedosamente pelas torcidas adversárias, e as violentas agressões praticadas por grupos de jovens delinquentes nas ruas de nossas cidades. Num tom menor, porém mais generalizado, lembremos também as inúmeras piadas que tomam o homossexual (homem ou mulher) como personagem degradante.
Certamente, nem as decisões judiciais nem leis que vierem a ser aprovadas pelo Congresso, por mais importantes que sejam, farão desaparecer o preconceito. A questão é sabidamente complexa. Pensemos em certas situações extremas, que não são as de simples aceitação superficial dos homossexuais. Por exemplo, quantos pais e mães aceitam ou aceitariam, com tranquilidade, essa opção por parte de um de seus filhos?
Uma aceitação plena da diversidade sexual passa por um longo processo educativo que precisa encarar a questão, sem catastrofismo. A afirmação heterossexual da ampla maioria da sociedade decorre tanto de condições naturais como da construção de identidades. Afinal de contas, no terreno da afetividade, as fronteiras são menos nítidas do que muitos imaginam.
BORIS FAUSTO É HISTORIADOR, PROFESSOR APOSENTADO DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP E AUTOR DE A REVOLUÇÃO DE 30 - HISTORIOGRAFIA E HISTÓRIA (COMPANHIA DAS LETRAS)
Fonte: O Estado de São Paulo
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