domingo, 29 de maio de 2011

Alquimia poética e utopia (Silviano Santiago)

São admiráveis estes quatro versos de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor, / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. O paradoxo desconfia da lógica da razão e diz que, ao mascarar a dor autenticamente sentida com o fingimento poético, a voz do poeta se cola à verdade. Esta não tem o percurso pavimentado pela espontaneidade do sujeito e, sim, pela sua predisposição salutar ao fingimento retórico, que escreve a boa poesia. Ao divergir do senso comum, o poeta distorce a emoção da dor sentida para guardá-la no coração e fingi-la com letras na página em branco. Ali a sente mais realisticamente, revela-a e a transmite ao leitor. Alquimia da arte.

O escritor modernista brasileiro também tem o fingimento como alicerce da poesia. No entanto, de Fernando Pessoa se distancia por colocar como epicentro da escrita poética não a distorção da dor sentida, mas a desconfiança em relação ao nível de exigência formal requerido do adulto no uso da língua nacional e da linguagem poética. Em rebeldia contra o saber escolar que o constituiu como cidadão e contra a tradição literária eurocêntrica que o constituía como artista da palavra, o modernista finge observar o mundo com olhos de criança e finge imitá-la na redação. Contraditória e autenticamente, estaria escrevendo poesia de e para cidadão adulto brasileiro. Leia-se o livro Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade (1927), ou entenda-se a docência às avessas no poema 3 de Maio: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi”.

Ao distorcer o saber proporcionado pela formação educacional em vigor e ao rejeitar o ouvido poético afinado pela métrica e a rima, ao fingir-se de criança e escrever como ela, o poema modernista se cola ao autenticamente pensado e vivido. O fingimento evita que a escrita poética caia em outro e nefasto sistema de fingimento – o do artista comprometido com o artesanato de ourives e o da retórica, com a estética parnasiana.

O caderno do aluno Oswald não se assemelha ao carnê em que o viajante europeu anotou observações e pensamentos à espera da versão apurada e definitiva. Tampouco é metáfora para versos que traduzem a experiência subjetiva da desigualdade negra sentida pelo martinicano Aimé Césaire em terras metropolitanas (Cahier d”Un Retour au Pays Natal, 1939). O caderno escolar de Oswald tem em comum com os dois exemplos o trato com o desconhecido, que se expressa pelo desejo de “ver com olhos livres” e de sentir a “alegria dos que não sabem e descobrem” (como está no Manifesto da poesia pau-brasil). Bem acabada, a linguagem poética do caderno de Oswald é, no entanto, mal torneada por ser fingidamente inocente e ingênua, decidida a desconcertar o leitor pela varinha de condão do humor e da surpresa. O poeta não está onde você acredita que ele deveria estar.

O poema se arrisca quando acopla ao artista da palavra a voz crítica do intelectual. Unidos, escancaram em escrita o jogo político-social e econômico dominante na jovem nação. O povo brasileiro abre alas na poesia e pede passagem. Pelo seu tosco e autêntico modo de sentir e de pensar e pelo seu linguajar precário, é semelhante à criança. Um denominador comum sela o encontro – “a contribuição milionária de todos os erros”. O dado e tido como certo para o Brasil é errado. O dado e tido como errado é certo. O adulto poeta finge ser criança e o intelectual maduro finge ser povo. Ao apadrinhar (to patronise, em inglês) criança e povo, o poema se quer força de resgate da nova geração e da nova cidadania. Desenha utopias verde-amarelas. O paradoxo poético de Pessoa se expressa pelo erro correto, moeda que, desvalorizada pelo senso comum europeizado, financia a futura e boa cidadania brasileira. Leia-se Pronominais: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro”.

No cenário poético da infância, Manuel Bandeira sobrepõe ao erro correto o sabor e o saber da experiência proporcionada ao cidadão brasileiro pelo linguajar do povo. Lê-se na Evocação do Recife: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Na mesma cena infantil do sabor/saber popular, Carlos Drummond afina pelo afeto a voz da empregada doméstica e, acertada e contraditoriamente, a situa em etnia e classe diferentes. Leiamos trecho do poema intitulado Infância: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / A ninar nos longes da senzala – e nunca se esquece / Chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / Café gostoso / Café bom”.

Em todos os poemas citados a (quase total) ausência de pontuação reitera a necessidade de a sintaxe modernista ser fonética. Em Pontuação e Poesia, Drummond observa: “A pontuação regular, iluminando igualmente todos os ângulos da superfície poética, impede que se destaque algum de seus acidentes mais característicos”. Em outro texto da época, Drummond afirma que “o preconceituoso procura o acessório, que não interessa e foi removido”.

A alquimia poética do Modernismo é nitidamente pós-colonial, fingida e realisticamente utópica. Deveria ter sido relegada à década de 1920 em virtude das várias etapas de modernização política, social e econômica por que passou a nação brasileira depois dos anos 1930. A polêmica em torno do livro Por Uma Vida Melhor, de Heloísa Ramos, demonstra que, no Brasil, a educação das massas ainda é uma utopia verde-amarela. Diz o mundo e lamenta o projeto do pré-sal.

O Estado de S.Paulo

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