segunda-feira, 23 de maio de 2011

Palocci e a nova casta dirigente (Rudá Ricci)

Tempos atrás, Chico de Oliveira sugeriu que se formava no Brasil um agrupamento social Nov que governava o país. Para o autor, os fundos constitucionais e de pensão deram origem a uma nova classe social formada basicamente por ex-dirigentes sindicais e ex-intelectuais que se encastelavam na administração de um poderoso capital de investimento. Em suas palavras:

"Criou-se no Brasil uma nova casta ou uma nova classe social. Esta casta ou classe social é, teoricamente, formada, de um lado, por ex-sindicalistas, e de outro por ex-intelectuais, e esse conjunto dirigiu as privatizações das grandes empresas estatais nos últimos anos, sobretudo nos oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso. Por isso é difícil se fazer uma oposição ao PT".

Não se trata, evidentemente, de uma nova classe social. Mas a possibilidade de uma nova casta é até razoável e instigante. Lembremos que o conceito de estamento, de onde se originam as castas, relaciona-se com prestígio social conferido pela sociedade. A sociedade legitima distinção a partir do nascimento. Dificilmente há mobilidade de um membro de um estamento para outro. O mais comum é queda, em virtude de quebra de comportamento esperado.

As castas são ainda mais rígidas em seu comportamento e é comum que os casamentos ocorram somente entre pares. Como se percebe, se adotamos o rigor conceitual até mesmo este conceito de casta parece exagerado para retratar a estrutura dirigente que se destaca no bloco no poder montado a partir do lulismo. Não há, evidentemente, uma distinção cultural que se origina na sociedade e que possui lastro histórico, que legitima este segmento dirigente aludido por Chico de Oliveira. Antes, trata-se de uma escolha de governo ou de uma fração dirigente do partido que governa.

Assim, embora com menos charme que a proposição teórica de Chico de Oliveira, estamos citando uma elite ou um grupo dirigente de Estado não oriundo dos quadros de carreira da burocracia estatal. Um grupo dirigente que se forja como gestor de mercado e que ideologicamente assume como foco o resultado esperado da renda que seus investimentos devem gerar. Ao focalizar a eficácia e eficiência das suas ações, torna-se conservador, moderado e especulador. A política desvia-se para o mundo dos negócios e mescla-se de tal maneira que reedita a confusa lógica do lusco-fusco entre as dimensões privadas e públicas em nosso país.

Um descaminho dos mais instigantes para um analista social. Porque esta elite dirigente se apóia na conciliação de interesses e na conquista dos setores sociais desorganizados de nossa sociedade. Assim, sua legitimação se dá, de um lado, pela escolha política do bloco no poder que dirige o Estado que, por sua vez, é avalista do neo-fordismo tupiniquim. Um fordismo que se sustenta num Estado-demiurgo que abre as comportas dos recursos do BNDES para financiar o alto empresariado e transfere renda entre assalariados (porque a adoção de tributação progressiva romperia com a conciliação de interesses) e amplia consideravelmente o mercado consumidor nacional.

Ora, esta era a lógica sugerida por Henry Ford para catapultar a economia norte-americana e que foi complementada com toques keynesianos a partir do New Deal. Aliás, o keynesianismo adotado pelo New Deal parece ser uma abstração teórica, já que sua origem não foi tão intelectualizada. Havia um lastro nítido em relação às práticas já existentes em New York. O New Deal propôs um rol de políticas de promoção social e fomento ao desenvolvimento: Emergency Banking Act (fundos públicos para bancos privados em crise), Federal Deposit Insurance Corporation, Securities Act (regulando o mercado de ações), o Civil Works Administration (programs de obras públicas), o Agricultural Adjustment Act e o National Indstrial Recovery Act (para citar os mais conhecidos). A rede de assistência social (auxílio imediato, nos moldes do Bolsa Família) foi baseada no Federal Emergency Relief Act e o importante Civilian Conservation Corps (CCC). O CCC tentou diminuir a erosão do solo e gerar ocupação para jovens desempregados. Este programa foi responsável pelo plantio de 2 bilhões de árvores (200 milhões em solos recuperados), alfabetizou 35 mil jovens e profissionalizou outros 3 milhões.

Em 1935, uma pesquisa nacional organizada pela Fortune revelava que 90% dos americanos achavam que o governo federal deveria garantir trabalho aos necessitados. Algo assim parece estar na base desta nova elite dirigente da qual Antonio Palocci parece ser uma espécie de garantidor. A trajetória do ministro compõe este cenário de transformação. Filho de funcionário público e costureira, o caçula da família formou-se médico sanitarista pela USP de Ribeirão Preto. Como liderança estudantil, fez parte dos quadros da organização Liberdade e Luta, a LIBELU, vinculada à Quarta Internacional trotskista. Em 1988 Palocci foi eleito o primeiro vereador petista de Ribeirão Preto. Não terminou o mandato. Em 1990, candidatou-se a deputado estadual e venceu. Mas também não terminou o mandato porque se candidatou, em 1992, prefeito de sua cidade. E venceu. Depois, elegeu-se deputado federal.

Conheci Palocci em 1990, quando eu coordenava a campanha de Plínio de Arruda Sampaio para o governo paulista. Lembro de uma viagem que fiz com Plínio e Eduardo Suplicy pelo interior de São Paulo. A parada principal era Ribeirão Preto. Palocci era vereador. O que lembro daquela época era de uma pessoa muito quieta, atento ouvinte. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Porque aquele silêncio não parecia um mero estudo. Parecia dizer que apenas tolerava, mas não apoiava.

Minha desconfiança vinha de algo que ocorreu pouco antes. No final de 1980, parte das lideranças da LIBELU forjaram um acordo com uma ala da corrente majoritária do PT paulista, a famosa Articulação. Ingressaram por cima na cúpula do partido na seção paulista. Lembremos que a LIBELU tinha quadros de destaque, bons articuladores e polemistas, como Luiz Gushiken, Tita Dias, Reinaldo Azevedo, Laura Capriglione, Paulo Moreira Leite, Eugênio Bucci, Luis Favre, José Arbex Jr., Clara Ant, Demétrio Magnoli, Glauco Arbix e Lúcia Pinheiro. O mais interessante é que no mesmo momento em que se fazia este acordo de ampliação da base da Articulação (e incorporação de parte significativa da LIBELU à corrente majoritária que ascendia ao comando da seção paulista), parte da direção da Articulação desfechava uma agressiva campanha de enquadramento da corrente de Genoíno e da então Convergência Socialista (mais tarde, PSTU).

Minha desconfiança vinha daí. Porque este acordo redefinia a então lógica de construção das direções partidárias. Acordos entre correntes era previsível, mas diversionismo não era uma prática comum no jogo interno do PT, assim como acordos envolvendo cargos dirigentes. Lembremos que era fundamental que os dirigentes petistas tivessem sido provados nas ruas e avaliados por uma espécie de tribunal popular que se constituía nas convenções do partido.

Quantos candidatos a deputado foram rejeitados publicamente nesses eventos do PT! Até o final dos anos 1980 a democracia direta e o assembleísmo definiam a lógica de escolhas e deliberações do partido. O que exigia muitas reuniões, motivo de chacota de lideranças de outros partidos. Aliás, um dos momentos mais hilários de minha passagem pelo governo de Luiza Erundina foi quando ouvi, numa reunião em um bairro, uma senhora afirmar que os petistas faziam reunião sem parar e tascou: “vocês fazem reunião para discutir a anterior e preparar a próxima”. Contive uma sonora gargalhada. O fato é que as reuniões eram fundamentais para selar acordos entre dezenas de mini-grupos que se formavam no interior das correntes partidárias, o que conferia um poder significativo às lideranças médias e pequenas que nem sempre tinham voto, mas faziam muito barulho nas reuniões e convenções partidárias.

Mas, até então, não era comum na disputa entre petistas se fazer acordo que não fosse público e muito menos que este acordo significasse algo mais que voto. Porque a partir deste acordo entre Articulação e LIBELU (ou parte desta organização) o ataque às outras organizações de esquerda foi implacável. O discurso oficial era para que o partido se consolidasse e terminasse de vez com a federação de organizações/partidos que se utilizavam da sigla para eleger seus dirigentes. A intenção nobre encobria outros objetivos: o de enquadramento geral e fortalecimento de uma cúpula dirigente que solaparia a metodologia de tomada de decisões estratégicas do partido.

Palocci, enfim, me deixou intrigado com aquele silêncio e sorriso tímido e contido naquela fria manhã de 1990. Era uma forma mais sutil que parecia dizer o que ouvi, pouco antes, de Glauco Arbix, numa reunião com a executiva estadual do PT para preparar a campanha de Plínio de Arruda Sampaio. Glauco disse, cuspindo fogo, para nós (eu, Plínio Sampaio e Plinio Morais): “vocês sabem que Plínio não é a candidatura dos nossos sonhos. Mas como ganharam a convenção, fazer o que?”

Palocci sempre foi mais sutil. Um sorriso tímido e o silêncio. Mas foi um artífice importante da implantação do realismo político no interior do petismo. E de uma lógica que me lembra em muito um conceito criado por Fernando Henrique Cardoso: o dos anéis burocráticos. Na teoria de FHC, os anéis articulavam interesses empresariais com setores da tecnocracia estatal, esvaziando a prática política típica (de acordos e negociações). Os anéis formavam uma triagem, uma lógica de decisão própria, quase que exclusivamente privada (entre tecnocratas e empresários). Talvez era esta a referência de Chico de Oliveira quando afirmou que se forjava uma nova classe social a partir do governo Lula. Na verdade, não se trata de uma nova classe. E nem é algo tão novo. É algo que vem do final dos anos 1980. Algo como a história do ovo da serpente.


Rudá Ricci é sociólogo

Um comentário:

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