Num mesmo dia, 4 de maio último, os principais jornais brasileiros estamparam duas notícias distintas, aparentemente sem nenhuma relação uma com a outra, que revelam claramente o que significaram para o Brasil os oito anos de lulopetismo. A primeira: a pobreza no País caiu 50,64% entre dezembro de 2002 e dezembro de 2010, período dos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva. A segunda: os quatro filhos e três netos de Lula recusavam-se até então a devolver os passaportes diplomáticos que lhes foram concedidos irregularmente nos últimos dias do governo do chefe do clã, levando o Ministério Público Federal a cogitar de recorrer à Justiça para corrigir a anomalia.
Quem se sentir chocado com a colocação dessas duas notícias num mesmo nível de importância para efeito de avaliação do governo Lula deve atentar para o seguinte: o sentido de justiça que impele os bons governantes a lutar pela diminuição das desigualdades é inspirado pelos mesmos valores humanos universais que estabelecem que não pode haver justiça enquanto houver regalias e privilégios aos quais, por definição, só poucos podem ter a oportunidade de acesso. Por mais bem-sucedido que tenha sido no combate à pobreza - e em grande medida realmente o foi -, Lula deixou a obra pela metade ao não ter tido capacidade, ou preparo, para entender que ele próprio é e continuará sendo beneficiário dos mesmos direitos e submisso aos mesmos deveres, nem mais nem menos, do mais humilde dos cidadãos que seu trabalho como presidente resgatou da pobreza. É a igualdade perante a lei, fundamento da organização de qualquer sociedade minimamente civilizada.
Mas não é apenas a atitude antiética de agir como se fosse "mais igual" do que o cidadão comum que compromete o desempenho de Lula como chefe de governo e o coloca muito distante da condição de estadista. Muito piores, do ponto de vista do bem comum, são as consequências da generalização desse comportamento, por contaminação, pelos quadros da administração estatal, estimulados, pelo exemplo que vem de cima, a cultivar privilégios e regalias. Se o chefe pode, por que não eu? É assim que os desmandos e a corrupção prosperam, na razão inversa em que, inevitavelmente, decai a eficiência da máquina governamental.
Lula e o PT sabem perfeitamente disso, pois durante mais de 20 anos combateram ferozmente os privilégios das "elites", acusaram todos os governos, mesmo depois da redemocratização do País em 1985, de se colocarem a serviço de interesses de potências ou do capital internacional e das castas e dos estamentos sociais que o dominavam, em prejuízo da grande maioria da população. Pois bastou chegar lá para o lulopetismo pôr em prática tudo o que sempre combateu. Desde aliar-se às mais retrógradas oligarquias regionais e envolver-se - segundo denúncia da Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal - em esquemas de compra de votos de deputados federais em troca de apoio político até promover um aparelhamento do Estado como nunca antes visto neste país e emascular completamente as grandes organizações sindicais, com a criação de um neopeleguismo alimentado a fundos de pensão.
É claro que esse novo tipo de apropriação privada do poder público teve reflexos negativos, que, com toda a certeza, prejudicaram o desempenho do próprio governo Lula. Não estivessem os coronéis que dominam o Congresso Nacional, os partidos que manipulam a máquina do Estado e os neopelegos deslumbrados com seu novo status social - não estivessem todos tão completamente envolvidos na defesa de seus próprios interesses, como a ampliação de suas regalias e de seus privilégios -, certamente os dois mandatos de Lula teriam um saldo de realizações concretas muito mais amplo a apresentar.
Não é à toa que os mais expressivos resultados desses oito anos se concentram nos programas que representam bandeiras históricas e prioritárias do PT - e, não por acaso, se traduzem em votos -, como a incorporação ao mercado de consumo de milhões de brasileiros antes marginalizados. Contudo metas com menores visibilidade e implicação eleitoral imediata, como todas aquelas que dizem respeito à infraestrutura indispensável ao desenvolvimento - estradas, aeroportos, saneamento básico, geração de energia, etc. -, sem falar no descontrole fiscal decorrente da gastança de recursos públicos, o que hoje começa a ameaçar o controle da inflação, quase todas essas ações, cujo implemento depende não apenas de investimentos adequados, mas também de gestão eficiente, ficaram a dever no governo Lula e hoje constituem uma verdadeira herança maldita para Dilma Rousseff.
Assim, a arrogância da família Lula da Silva na recusa a devolver os passaportes diplomáticos que obteve, indevidamente, ao apagar das luzes do "seu" governo não é um fato isolado e "da maior irrelevância", como já declarou um dos mais notórios aduladores do chefe, Marco Aurélio Garcia. Trata-se de mais um triste exemplo da falta de compostura ética e moral que caracterizou e prejudicou oito anos de lulopetismo no comando da República.
Se Lula não conseguiu, ou não soube, ou não quis transmitir certos valores éticos a seus descendentes, não é de admirar que não se tenha preocupado em fazê-lo em relação a seu partido e, principalmente, à enorme massa de seus eleitores. O que importa é ser "pragmático", levar vantagem. Daí a leniência com que ele próprio sempre passou a mão na cabeça dos seus "aloprados", com que o PT absolve um corrupto confesso como Delúbio Soares, com que todos juntos proclamam descaradamente que o mensalão nunca existiu.
Claro, é uma invenção das "elites". Nas quais, hoje, Lula e o PT, e suas duas faces, estão confortavelmente instalados. Ou não?
Fonte: Estadão
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