Ao fixar em R$ 70 o valor para a linha de miséria, Dilma resolveu uma pendenga de duas décadas
COMEÇOU A SE delinear a estratégia de erradicação de pobreza com a definição de uma linha oficial de miséria. Participei de diversas comissões com esse objetivo durante os governos FHC e Lula. Apesar da riqueza dos debates, foi frustrante, pois ao fim não foi anunciada a tal linha oficial de miséria. Dilma Rousseff resolveu em cem dias uma pendenga de duas décadas.
O valor nacional estipulado de R$ 70 para a linha de pobreza foi percebido por alguns como baixo. De fato, a média da linha da FGV é pouco mais do que o dobro do valor oficial escolhido. Entretanto, há uma hipersensibilidade do gasto público vis-à-vis a linha de pobreza traçada em torno de 500%. Isto é, se a linha dobrar, o custo mínimo da erradicação da pobreza é cinco vezes maior! Na linha da FGV, o custo mínimo seria de R$ 21,8 bilhões por ano a mais para chegar lá.
Curiosamente, no dia seguinte ao recente anúncio de ajuste fiscal, o governo definiu reajuste médio de 19% para os benefícios do Bolsa Família. Nessa aparente contradição, há admirável objetividade: o custo fiscal do reajuste nominal foi de 0,1% do PIB, apesar de beneficiar um quarto da população brasileira.
Aí reside a vantagem de buscar o mais pobre do pobre implícito na escolha de uma linha mais baixa: ele é efetivo em termos sociais, barato em termos fiscais. Qualquer generosidade adicional custa caro no Orçamento fiscal.
A escolha da linha é operacional, pois coincide com o valor do primeiro critério de entrada no Bolsa Família. Ele é próximo da linha de US$ 1,25 por dia ajustada por custo de vida internacional (PPC) da primeira meta do milênio, que é de reduzir a miséria à metade em 25 anos (de 1990 até 2015).
A linha confere simbologia internacional interessante à meta, o que facilitará diálogos entre diferentes níveis e mandatos de governo.
A divisão de trabalho entre níveis de governo ensejada pela meta federal é um dos aspectos mais promissores do novo contexto. O Rio de Janeiro já anunciou sua linha de US$ 2 por dia -a linha mais alta das metas do milênio. Pesquisa do CPS/FGV de 2006 identificou que o Brasil tinha atingido essa meta da ONU. O Brasil propõe agora realizar mais (queda de 100%) em menos tempo (quatro anos).
Será possível? Lula fez 50% em oito anos; FHC, 30% em nove (incluindo o real (vide www.fgv.br/cps/dd). Teoricamente, basta que sobre um miserável para perdermos a guerra. Nesse sentido, a meta é uma espécie de Santo Graal, inatingível, mas cuja busca enobrece o espírito (e o corpo) da sociedade.
Nem a oposição mais refratária ao governo conseguirá ser contra a meta. Mais importante que a meta em si é o peso conferido a ela.
O lema da nação virou "país rico é país sem pobreza". FHC, como exímio sociólogo que é, moveu suas peças no xadrez político para a nova classe média brasileira.
O MDS e o IBGE acabaram de lançar estudo baseado no Censo 2010 que indica 8,5% abaixo dessa linha, ou 16,2 milhões de miseráveis -pela Pnad de 2009 seriam 5,38% (3,7% pela POF). Como nosso estudo revela, a pobreza pela PME caiu 16,2% entre 2009 e 2010, aumentando a discrepância. Nosso mapa do fim da fome mostrava que a medida de pobreza da FGV era 33% com o Censo de 2010, ante 29% nas Pnads logo antes e depois do censo.
Estudo nosso mais recente já mostrava que a Pnad superestimava a pobreza ante a POF, que é a melhor base de dados disponível, por incorporar renda não monetária (25% da renda dos pobres). O censo é não só onde a miséria é maior, mas onde é pior medida.
Nesse sentido, o primeiro passo para reduzir (e melhorar) a medida da miséria é trocar o censo pela POF.
O ideal seria replicar o belíssimo trabalho que o IBGE fez para o MDS antes combinando com técnicas de imputação a riqueza geográfica do censo com a qualidade dos critérios de renda da POF. Até porque, o sistema estatístico nacional se move nessa direção.
Peço desculpas ao leitor desavisado pela sopa de letras e números acima. No mundo das siglas e nomenclaturas, meu filho, Guilherme, recentemente me questionou: "Pai, o sujeito já é extremamente pobre e você ainda o chama de miserável"!
MARCELO NERI, 48, é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, na Fundação Getulio Vargas.
Internet: www.fgv.br/cps
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