domingo, 29 de maio de 2011

Na gafieira com Camus (Abdias do Nascimento)

ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Na gafieira com Camus

Duque de Caxias, 1947

Arquivo Pessoal


Camus com Abdias e seu grupo de teatro após ensaio de "Calígula"; leia relato de Camus sobre o encontro em folha.com/ilustrissima

ABDIAS DO NASCIMENTO

QUANDO CRIEI o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, a intenção era trazer à cena a cultura do negro brasileiro, até então exilado dos palcos do nosso teatro. Para realizar o seu potencial de protagonista, seria necessário superar séculos de privação do acesso à educação e às letras e construir espaços de diálogo com o mundo do teatro. O TEN promoveu cursos de alfabetização e de cultura geral, e estabeleceu relações com artistas e intelectuais como Eugene O'Neill, Richard Wright e Albert Camus (1913-60), expoentes da literatura mundial.
Em 1947, o TEN solicitou ao escritor franco-argelino permissão para encenar sua peça "Calígula", texto denso e complexo como o que havíamos escolhido para nossa estreia, dois anos antes: "O Imperador Jones", de Eugene O'Neill. A resposta de Camus veio rápida e positiva, como a de O'Neill. Foi um desafio trabalhar com textos em língua estrangeira, mas nós acompanhamos a versão ao português num rico processo de reflexão e interlocução com escritores como Ricardo Werneck, Efraín Tomás Bó e Gerardo Mello Mourão.
O grande artista Tomás Santa Rosa concebeu os cenários sempre em diálogo conosco. O trabalho de Santa Rosa enfeitiçou "O Imperador Jones" no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 8 de maio de 1945. Mas, no caso de "Calígula", não conseguimos os meios para montar a peça. Fizemos uma apresentação especial para o autor no teatro Ginástico em 1949, quando encenamos também o segundo ato da peça "Aruanda", de Joaquim Ribeiro. Camus assistiu atento e discutiu o trabalho conosco e com os atores do TEN, entre eles Claudiano Filho, Ruth de Souza, Haroldo Costa e Natalino Dionísio.
Além desse memorável encontro, tive a oportunidade de compartilhar com Camus o seu profundo interesse pela cultura brasileira de origem africana. Visitamos, no então vilarejo de Duque de Caxias, os terreiros de candomblé, onde eu tivera o privilégio de conhecer uma grande liderança religiosa, Joãosinho da Gomeia -figura forte e afirmativa, com aquela doçura dos iluminados.
Ainda dividi com Camus uma noitada na gafieira Elite, no centro do Rio. Ele aplaudiu os bailados afro-brasileiros de Mercedes Batista, ensaiou dançar o samba, ouviu a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura e assistiu à Fausta apresentando o frevo pernambucano.
Em 1950, o TEN promoveu o 1º Congresso do Negro Brasileiro, cujo registro taquigráfico e teses apresentadas compunham os anais que reuni em dois volumes. Mergulhado na organização desses anais, soube da publicação de "O Homem Revoltado", ensaio filosófico de Camus. O texto era fascinante; pude conhecê-lo de forma viva e em versão direta em longas discussões com Efraín e Gerardo. A obra inspirou o título do primeiro volume dos anais do Congresso, "O Negro Revoltado". Sumariamente rejeitado pelas editoras até 1968, o livro é todo pontuado com trechos de "O Homem Revoltado", epígrafes em homenagem a Camus.
O segundo volume dos anais seria "A Negritude Polêmica", que registrava a discussão em torno da tese "Estética da Negritude", de Ironides Rodrigues. Nunca encontrou editora. Já o volume publicado registra vários documentos como extraviados, pois um sociólogo que se aproximou do TEN para investigar a questão racial os pediu emprestados e não os devolveu. Publicou sua pesquisa recheada de referências negativas em termos, digamos, pouco científicos, agredindo o TEN e as organizações negras em geral.
Nós apontamos publicamente o caráter tendencioso do trabalho. A resposta do autor expressa bem a geografia humana dessa linha de investigação científica em relação ao negro: "Duvido que haja biologista que veja, digamos, um micróbio tomar de pena e vir a público dizer sandices a respeito da pesquisa em que participou como material de laboratório".
Ao contrário da morte inexorável do movimento social pelos direitos civis e humanos dos negros no Brasil anunciada por tais autores, hoje assistimos às suas conquistas. Entre elas estão a discussão e a formulação de políticas públicas afirmativas para a construção da igualdade racial.

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