sábado, 7 de maio de 2011

A Batalha da Mídia (Marcelle Ribeiro)

Em plena Guerra Fria, disputa entre revistas ‘Life’ e ‘O Cruzeiro’ evidenciava preocupação dos EUA com avanço da esquerda no Brasil

Marcelle Ribeiro - SÃO PAULO

Uma grande revista americana expõe, em fotos que ficaram famosas mundo afora, a miséria numa favela carioca. Para dar uma resposta ao “imperialismo americano”, uma das maiores revistas brasileiras revida, com uma reportagem mostrando a pobreza de uma família num cortiço de Nova York. Foi o ponto de partida, em plena Guerra Fria, para um debate ideológico, social — com direito a arrecadação de fundos nos EUA — e de ética no jornalismo.


O ano era 1961, e os EUA nutriam preocupação crescente com o avanço da esquerda na América Latina. A Casa Branca temia que o governo de João Goulart transformasse o Brasil em uma nova Cuba. E os brasileiros, incomodados com a ingerência americana na política nacional, desejavam mostrar que a pobreza não era exclusividade daqui, aconselhando os vizinhos do norte a olharem para o próprio quintal.


Essa história, que teve como protagonistas as revistas “Life” e “O Cruzeiro”, é relembrada por uma nova pesquisa de Fernando de Tacca, professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Unicamp, que ganhou com ela o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia/Funarte, no ano passado.


Tacca analisou a reportagem da “Life” que traz uma imagem do carioca Flávio da Silva, 12 anos na época, alçado à fama ao ser fotografado doente e deitado numa cama na Favela da Catacumba, na Lagoa. Ele estudou, também, o revide de “O Cruzeiro”, a melhor revista brasileira da época, que publicou pouco depois a manchete “Repórter Henri Ballot descobre em Nova York um novo recorde norte-americano: MISÉRIA”.

Flávio, símbolo da pobreza

● Com o título “Uma família castigada numa favela do Rio. O temível inimigo da liberdade: pobreza”, a “Life” de 16 de junho de 1961 apresentou ao mundo a história da família de José Manuel da Silva e Nair Germana da Silva. Com oito filhos, o casal morava na comunidade da Catacumba, que, após a remoção dos seus cerca de 10 mil habitantes nos anos 70, deu lugar ao Parque da Catacumba.


Acompanhado do jornalista brasileiro José Gallo, o fotógrafo americano Gordon Parks passou dias observando a vida da família de retirantes nordestinos. Focou o seu olhar no menino Flávio, de 12 anos, que, mesmo asmático, cuidava dos irmãos menores e das tarefas domésticas.


Na reportagem, os Silva são apresentados como um exemplo de pobreza que pode ser encontrada também em Venezuela, Chile, Bolívia e Equador e que implica “perigo acentuado”. “Na maior parte aglomerados em bolsões (...), largamente distribuídos nos morros das cidades, onde a abundante pobreza se torna campo fértil para a exploração política comunista e castrista”, disse a revista.

A reportagem sobre o Brasil foi a segunda de uma série de “Life” sobre a América Latina. A primeira tratava da ascensão de Fidel Castro em Cuba, com analogia às Ligas Camponesas brasileiras, lideradas pelo então líder comunista Francisco Julião — que, do fim dos anos 50 ao golpe militar de 1964, tentou implantar a reforma agrária no país, para temor dos americanos. A terceira reportagem abordou a Bolívia.
— O objetivo ideológico da “Life” era alertar para o avanço dos movimentos populares na América Latina e sua influência no sucesso da Revolução Cubana — explica Tacca.

O pesquisador ressalta, também, a relação da reportagem com o acordo conhecido como Aliança para o Progresso, tema de uma reunião dois meses antes. Idealizada pelos EUA, e tendo como pano de fundo a Guerra Fria, a Aliança previa investimentos na América Latina para promover o desenvolvimento regional, tentando conter o avanço do comunismo e a influência de Fidel Castro no continente.

Tacca explica que, para a “Life” e o governo americano, a pobreza era o berço preferido da temida proliferação da ideologia esquerdista. A reportagem sobre a Catacumba foi publicada numa época em que a política externa brasileira preocupava os EUA, com os presidentes Jânio Quadros e João Goulart — este último, derrubado pelos militares — simpáticos a uma aproximação com países comunistas.

A reportagem de “Life”, publicada também na edição em espanhol, comoveu os americanos, sensibilizados com a imagem do menino Flávio. Sua fotografia foi publicada ao lado de outra, em que o corpo de uma suposta vizinha do garoto jaz num caixão.

A revista organizou uma arrecadação de dinheiro nos EUA para ajudar a criança, levada àquele país para fazer tratamento. A família do garoto ganhou uma casa própria e mobiliada, fato noticiado por grandes jornais brasileiros da época. A “Life” fez nova reportagem sobre a recuperação de Flávio, que apareceu sorridente na capa da edição de 21 de julho de 1961, e a nova vida de sua família.

Mas a denúncia da miséria no Rio mexeu com “O Cruzeiro”. A revista enviou o fotógrafo Henri Ballot para Nova York, com a missão de mostrar que também havia miséria nos Estados Unidos. Na cidade, a publicação mostrou, em fotos com ângulos semelhantes aos usados pela reportagem da “Life”, a vida de uma família portorriquenha num cortiço sujo e infestado por insetos e ratos. “A miséria não é exclusividade nossa”, dizia o texto de 7 de outubro de 1961.

Como a rival americana, “O Cruzeiro” destacou a vida de um dos filhos da família, Ely-Samuel Gonzalez, de 8 anos. “O seu corpo magro de subnutrido é coberto de feridas, roído por baratas que invadem sua cama cada noite”, escreveu, destacando uma fotografia em que o garoto aparecia deitado coberto de baratas, em alusão à imagem de Flávio da Silva na “Life”.

A reação de “O Cruzeiro” gerou um debate sobre a ética do fotojornalismo. A revista “Time” publicou, poucos dias após a edição brasileira, reportagem questionando a postura do fotógrafo
brasileiro Henri Ballot.

Ele foi acusado de ter montado a foto em que Ely- Samuel aparece dormindo com baratas no cortiço em Nova York.

A “Time” relatou o polêmico embate entre “Life” e “O Cruzeiro” em reportagem com o título “A imprensa: vingança carioca”.

“O fato é que a fotografia mais comovente de Ballot — a de Ely-Samuel, frágil filho de 8 anos de Gonzalez, dormindo num colchão imundo e com aparentes baratas em seu corpo — fora posada. O fotógrafo capturou e distribuiu baratas com esse objetivo”, denunciou a “Time”, que enviou repórteres para conversar com a família portorriquenha retratada por Ballot.

A revista “O Cruzeiro” não contraatacou a reportagem da “Time”. “O que, de certa forma, é uma aceitação da versão americana”, escreve Tacca na pesquisa.

Após fazer as polêmicas imagens sobre a miséria americana e ter sua ética questionada pela “Time”, Ballot foi proibido de voltar aos EUA, num momento de acirramento da Guerra Fria.
fonte: O Globo

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