Aquilo que no passado o PT chamava de ‘esforço de militância’ confunde-se, cada vez mais, com mera ‘manobra de milícia’
É lamentável que, defronte a esse território opaco dos segredos de uma firma chamada Projeto, protegida por uma fortaleza de "confidencialidades", deva-se ora constatar: o primeiro governo Dilma cambaleia, há menos de cinco meses de um início tão promissor. Mesmo que o prazo da sua sobrevivência se mostre incerto, afeito ainda a várias circunstâncias, já a hemorragia política letal do seu maior ministro não há como estancar, e nenhum expediente terapêutico ou jogada de craque deste que foi definido por Lula como "o Pelé da economia" - seria mesmo Pelé ou estaria mais para Ricardo Teixeira? - parecem, agora, poder reverter.
Se o regime fosse parlamentarista, essa agonia seria visível a olho nu. No presidencialismo ultracentralizado, personalista e fisiológico, em que se funda o sistema político e partidário, talvez se mostre menos evidente, e aí também o perigo maior para o futuro do governo. A derrota na votação do Código Florestal na Câmara foi fragorosa, o PMDB deliberadamente decidiu terçar lanças e testar suas forças contra PT e Planalto. Seria diferente se a Casa Civil estivesse a todo vapor cumprindo sua função política primordial? Difícil responder, mas percebe-se que o jogo de silêncio e tergiversação com que o ex-prefeito de Ribeirão Preto repete, no estilo e no conteúdo, encenações passadas, porém não esquecidas, deixou não só a base aliada à deriva, mas atingiu agora seu ponto de saturação. E o retorno do processo do caseiro Francenildo, neste instante, só tende a agravar todo um quadro suspeitoso.
A entrada em cena de Lula, garantindo respiro no curto prazo, parece destilar veneno também contra a estabilidade e força de sua maior criatura política. Estranha coreografia, essa, a do ex-presidente, diante do desastre anunciado, mal contido em sua desenvoltura de pai soberano e onipresente, recomendando a insistência no emplastro que já se sentia como encosto, como xarope ruim, como receituário incômodo e altamente dispendioso para a economia política do governo. "Tá rindo de quê?", seria a pergunta natural, diante do indisfarçável euforia com que o "Pelé da política" retornava aos meandros do oligarquismo e do personalismo com que ele tanto soube pactuar.
A tragédia no Brasil moderno, no entanto, é sempre mais vasta. Na solidão do Planalto, em algum pequeno instante iluminado, é de se esperar que a presidente Dilma avalie a dimensão do estrago e as perspectivas de desenlace que a liberem desse emplastro hoje impróprio, correndo de si mesmo nas torrentes do inexplicável e nos vícios das amizades capitais, cercado de assessores laranjas e de homens-dispositivos, servidor desregulado aos movimentos do senhor sem nome e sem pátria que alguém alcunhara, há quase 150 anos, de Das Kapital. Ele não era, ao que conste, o eleito de Dilma, bem ao contrário. Sua aceitação significou reverência ao lulo-petismo. Talvez a autonomia requerida para que a grande governante possa despontar se insinue exatamente aqui, nesta encruzilhada a que todo fel da derrota expõe. O primeiro governo Dilma declinou cedo, mas sua chefe pode agora reunir forças para um próximo período, e avançar nas reformas inadiáveis prometidas, livre de um estorvo que não criou, mas cuja proteção, a continuar, lhe custará, certo, muito caro. O preço da hoje tão nomeada blindagem, em face a um PT há muito esquecido dos trabalhadores, a uma base aliada predominantemente conservadora, chegando às raias da pura reação no caso do Código Florestal, já se manifesta algo brutal. Aquilo que no passado se dizia "esforço de militância" confunde-se, cada vez mais, com mera "manobra de milícia". Que, mercenária como qualquer milícia, arredia a toda regulação, clandestina e turva, empareda-se afinal àqueles serviços que alcançam "enorme valor", frutos de uma "experiência única".
Longe dos alaridos enganadores do poder e dos amigos da onça, a presidente Dilma poderia ensaiar exercício imaginário de contrapor a opacidade gritante do enriquecimento vertiginoso do ministro ex-Libelu à clareza cristalina da palavra pobre e rara da professora Amanda Gurgel, há dias, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Já que muita vez o soberano, na solidão de seu posto, é obrigado a escolher sob qual voz melhor se inspirar. Ou sob qual espírito. Nessa semana, em Brasília, enquanto se investia tanta energia inútil em salvar aparências e manter velhos interesses intactos, nos sertões amazônicos do Pará, mais uma vez, a história se repetiu como tragédia, e não houve chance nem apelo para os líderes extrativistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinados a mando de desmatadores.
Processos aparentemente isolados, mas em íntima conexão: a paralisia de um governo às voltas com sua Casa Civil convertida momentaneamente em casamata de segredos espúrios, em cofre-forte de fugas da realidade, é a outra face do Brasil, esse do povo trabalhador e guardião da floresta, esse das professoras heroínas e alunos desamparados. A presidente Dilma sabe, sem vacilo, para onde conduz a incúria do Estado e a ganância dos mercados.
FRANCISCO FOOT HARDMAN É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA LITERÁRIA NA UNICAMP
fonte: Estadão
domingo, 29 de maio de 2011
Kit-Polêmica (Debora Diniz)
A história ainda é nebulosa. Parece um daqueles eventos políticos em que os fatos são piores que os rumores. O teatro público foi o seguinte: o Ministério da Educação anunciou a distribuição de material didático de combate à homofobia nas escolas de ensino médio; um grupo de parlamentares evangélicos reagiu ao que foi descrito como kit gay e pressionou o governo contra a iniciativa; a presidente anunciou o veto ao material didático do MEC. As breves palavras da presidente sobre o ocorrido se resumiram a “não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”. Não arrisco dizer que essa foi a primeira grande polêmica do governo Dilma, mas pressinto uma atualização da patrulha moralista que a perseguiu durante a campanha presidencial. O primeiro capítulo desse teatro parece ser o único a sobreviver como relato oficial da história. O MEC produziu um material didático para a sensibilização e o combate à homofobia nas escolas de ensino médio. O diagnóstico do MEC é simples: a homofobia mata, persegue e violenta aqueles que estão fora da norma heterossexista de classificação das sexualidades. Um adolescente gay tem medo de ir à escola e ser discriminado. Há histórias de abandono escolar e de suicídio. Uma das personagens do vídeo original do MEC se chama Bianca, uma travesti que sai do armário ainda no período escolar. Seu primeiro ato de rebeldia foi pintar as unhas de vermelho e ir à escola. A ousadia rendeu-lhe um ano de silêncio familiar.
Ainda não entendo a controvérsia em torno desse material. O puritanismo que crê ser possível falar de sexo e sexualidades sem exibir práticas e performances foi respeitado pelo material do MEC. Bianca é uma voz desencarnada em um vídeo sem movimento. Não vemos Bianca em ação, conhecemos apenas o seu rosto. Só sabemos que Bianca existe, quer ir à escola e sonha em ser professora. Ela insiste que para ser professora precisa ir à escola. Mas ela depende da autorização dos homens homofóbicos de sua sala de aula, que ameaçam agredi-la. Bianca agradece às suas professoras e colegas que a reconhecem como uma estudante igual às outras. Sozinha, a escola pode ser um espaço aterrorizante.
O segundo capítulo da história é mais difícil de acreditar. Grupos evangélicos teriam substituído a história de Bianca por um vídeo vulgar, uma fraude grotesca cometida por quem não suporta a igualdade sexual. Em audiência com a presidente, teriam entregado o vídeo e, ao que se conta, aproveitado a ocasião para conversar sobre a crise política que ronda o ministro da Casa Civil, Antônio Palocci. Entre as peripécias de Palocci, as travestis em ato sexual e o fantasma da homossexualidade, a reação da presidente foi suspender o material didático do MEC. O surpreendente não está no uso de mentiras para a criação de fatos políticos, mas na proeza de os grupos evangélicos terem conseguido convencer a presidente de que sua equipe de governo do MEC seria tão medíocre na seleção de material didático para as escolas públicas.
Se a presidente assistiu aos vídeos reais ou aos fraudulentos, não importa. O fato é que foi anunciado o veto ao material didático do MEC – uma vitória para os conservadores, que não sossegam desde que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a igualdade sexual em matéria de família. Mas há uma injustiça covarde nessa decisão. O tema do material era a homofobia, algo diferente de propaganda de opções sexuais. Na verdade, jamais assisti a um vídeo de propaganda de algo tão íntimo e da esfera da privacidade quanto a opção ou o desejo sexual consentido. Homofobia é um crime contra a igualdade, viola o direito ao igual reconhecimento, impede o pleno desenvolvimento de um adolescente. Homofobia é o que faz Bianca ter medo de ir à escola.
O verdadeiro material do MEC tem um objetivo claro: sensibilizar professoras e estudantes para a mudança de mentalidades. Uma sociedade igualitária não discrimina os fora da norma heterossexista e reconhece Bianca como uma adolescente com direitos iguais aos de suas colegas. Mas, diferentemente do fantasma conservador, a mudança de mentalidades não prevê uma subversão da ordem sexual – os adolescentes não serão seduzidos por propagandas sexuais a abandonarem a heterossexualidade. A verdade é que o material do MEC não revoluciona a soberania da moral heterossexista, mas contesta a falsa presunção de que a homofobia é um direito de livre expressão. Homofobia é um crime contra a igualdade sexual.
Debora Diniz - Professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Ainda não entendo a controvérsia em torno desse material. O puritanismo que crê ser possível falar de sexo e sexualidades sem exibir práticas e performances foi respeitado pelo material do MEC. Bianca é uma voz desencarnada em um vídeo sem movimento. Não vemos Bianca em ação, conhecemos apenas o seu rosto. Só sabemos que Bianca existe, quer ir à escola e sonha em ser professora. Ela insiste que para ser professora precisa ir à escola. Mas ela depende da autorização dos homens homofóbicos de sua sala de aula, que ameaçam agredi-la. Bianca agradece às suas professoras e colegas que a reconhecem como uma estudante igual às outras. Sozinha, a escola pode ser um espaço aterrorizante.
O segundo capítulo da história é mais difícil de acreditar. Grupos evangélicos teriam substituído a história de Bianca por um vídeo vulgar, uma fraude grotesca cometida por quem não suporta a igualdade sexual. Em audiência com a presidente, teriam entregado o vídeo e, ao que se conta, aproveitado a ocasião para conversar sobre a crise política que ronda o ministro da Casa Civil, Antônio Palocci. Entre as peripécias de Palocci, as travestis em ato sexual e o fantasma da homossexualidade, a reação da presidente foi suspender o material didático do MEC. O surpreendente não está no uso de mentiras para a criação de fatos políticos, mas na proeza de os grupos evangélicos terem conseguido convencer a presidente de que sua equipe de governo do MEC seria tão medíocre na seleção de material didático para as escolas públicas.
Se a presidente assistiu aos vídeos reais ou aos fraudulentos, não importa. O fato é que foi anunciado o veto ao material didático do MEC – uma vitória para os conservadores, que não sossegam desde que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a igualdade sexual em matéria de família. Mas há uma injustiça covarde nessa decisão. O tema do material era a homofobia, algo diferente de propaganda de opções sexuais. Na verdade, jamais assisti a um vídeo de propaganda de algo tão íntimo e da esfera da privacidade quanto a opção ou o desejo sexual consentido. Homofobia é um crime contra a igualdade, viola o direito ao igual reconhecimento, impede o pleno desenvolvimento de um adolescente. Homofobia é o que faz Bianca ter medo de ir à escola.
O verdadeiro material do MEC tem um objetivo claro: sensibilizar professoras e estudantes para a mudança de mentalidades. Uma sociedade igualitária não discrimina os fora da norma heterossexista e reconhece Bianca como uma adolescente com direitos iguais aos de suas colegas. Mas, diferentemente do fantasma conservador, a mudança de mentalidades não prevê uma subversão da ordem sexual – os adolescentes não serão seduzidos por propagandas sexuais a abandonarem a heterossexualidade. A verdade é que o material do MEC não revoluciona a soberania da moral heterossexista, mas contesta a falsa presunção de que a homofobia é um direito de livre expressão. Homofobia é um crime contra a igualdade sexual.
Debora Diniz - Professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Na gafieira com Camus (Abdias do Nascimento)
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Na gafieira com Camus
Duque de Caxias, 1947
Arquivo Pessoal
Camus com Abdias e seu grupo de teatro após ensaio de "Calígula"; leia relato de Camus sobre o encontro em folha.com/ilustrissima
ABDIAS DO NASCIMENTO
QUANDO CRIEI o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, a intenção era trazer à cena a cultura do negro brasileiro, até então exilado dos palcos do nosso teatro. Para realizar o seu potencial de protagonista, seria necessário superar séculos de privação do acesso à educação e às letras e construir espaços de diálogo com o mundo do teatro. O TEN promoveu cursos de alfabetização e de cultura geral, e estabeleceu relações com artistas e intelectuais como Eugene O'Neill, Richard Wright e Albert Camus (1913-60), expoentes da literatura mundial.
Em 1947, o TEN solicitou ao escritor franco-argelino permissão para encenar sua peça "Calígula", texto denso e complexo como o que havíamos escolhido para nossa estreia, dois anos antes: "O Imperador Jones", de Eugene O'Neill. A resposta de Camus veio rápida e positiva, como a de O'Neill. Foi um desafio trabalhar com textos em língua estrangeira, mas nós acompanhamos a versão ao português num rico processo de reflexão e interlocução com escritores como Ricardo Werneck, Efraín Tomás Bó e Gerardo Mello Mourão.
O grande artista Tomás Santa Rosa concebeu os cenários sempre em diálogo conosco. O trabalho de Santa Rosa enfeitiçou "O Imperador Jones" no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 8 de maio de 1945. Mas, no caso de "Calígula", não conseguimos os meios para montar a peça. Fizemos uma apresentação especial para o autor no teatro Ginástico em 1949, quando encenamos também o segundo ato da peça "Aruanda", de Joaquim Ribeiro. Camus assistiu atento e discutiu o trabalho conosco e com os atores do TEN, entre eles Claudiano Filho, Ruth de Souza, Haroldo Costa e Natalino Dionísio.
Além desse memorável encontro, tive a oportunidade de compartilhar com Camus o seu profundo interesse pela cultura brasileira de origem africana. Visitamos, no então vilarejo de Duque de Caxias, os terreiros de candomblé, onde eu tivera o privilégio de conhecer uma grande liderança religiosa, Joãosinho da Gomeia -figura forte e afirmativa, com aquela doçura dos iluminados.
Ainda dividi com Camus uma noitada na gafieira Elite, no centro do Rio. Ele aplaudiu os bailados afro-brasileiros de Mercedes Batista, ensaiou dançar o samba, ouviu a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura e assistiu à Fausta apresentando o frevo pernambucano.
Em 1950, o TEN promoveu o 1º Congresso do Negro Brasileiro, cujo registro taquigráfico e teses apresentadas compunham os anais que reuni em dois volumes. Mergulhado na organização desses anais, soube da publicação de "O Homem Revoltado", ensaio filosófico de Camus. O texto era fascinante; pude conhecê-lo de forma viva e em versão direta em longas discussões com Efraín e Gerardo. A obra inspirou o título do primeiro volume dos anais do Congresso, "O Negro Revoltado". Sumariamente rejeitado pelas editoras até 1968, o livro é todo pontuado com trechos de "O Homem Revoltado", epígrafes em homenagem a Camus.
O segundo volume dos anais seria "A Negritude Polêmica", que registrava a discussão em torno da tese "Estética da Negritude", de Ironides Rodrigues. Nunca encontrou editora. Já o volume publicado registra vários documentos como extraviados, pois um sociólogo que se aproximou do TEN para investigar a questão racial os pediu emprestados e não os devolveu. Publicou sua pesquisa recheada de referências negativas em termos, digamos, pouco científicos, agredindo o TEN e as organizações negras em geral.
Nós apontamos publicamente o caráter tendencioso do trabalho. A resposta do autor expressa bem a geografia humana dessa linha de investigação científica em relação ao negro: "Duvido que haja biologista que veja, digamos, um micróbio tomar de pena e vir a público dizer sandices a respeito da pesquisa em que participou como material de laboratório".
Ao contrário da morte inexorável do movimento social pelos direitos civis e humanos dos negros no Brasil anunciada por tais autores, hoje assistimos às suas conquistas. Entre elas estão a discussão e a formulação de políticas públicas afirmativas para a construção da igualdade racial.
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Na gafieira com Camus
Duque de Caxias, 1947
Arquivo Pessoal
Camus com Abdias e seu grupo de teatro após ensaio de "Calígula"; leia relato de Camus sobre o encontro em folha.com/ilustrissima
ABDIAS DO NASCIMENTO
QUANDO CRIEI o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, a intenção era trazer à cena a cultura do negro brasileiro, até então exilado dos palcos do nosso teatro. Para realizar o seu potencial de protagonista, seria necessário superar séculos de privação do acesso à educação e às letras e construir espaços de diálogo com o mundo do teatro. O TEN promoveu cursos de alfabetização e de cultura geral, e estabeleceu relações com artistas e intelectuais como Eugene O'Neill, Richard Wright e Albert Camus (1913-60), expoentes da literatura mundial.
Em 1947, o TEN solicitou ao escritor franco-argelino permissão para encenar sua peça "Calígula", texto denso e complexo como o que havíamos escolhido para nossa estreia, dois anos antes: "O Imperador Jones", de Eugene O'Neill. A resposta de Camus veio rápida e positiva, como a de O'Neill. Foi um desafio trabalhar com textos em língua estrangeira, mas nós acompanhamos a versão ao português num rico processo de reflexão e interlocução com escritores como Ricardo Werneck, Efraín Tomás Bó e Gerardo Mello Mourão.
O grande artista Tomás Santa Rosa concebeu os cenários sempre em diálogo conosco. O trabalho de Santa Rosa enfeitiçou "O Imperador Jones" no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 8 de maio de 1945. Mas, no caso de "Calígula", não conseguimos os meios para montar a peça. Fizemos uma apresentação especial para o autor no teatro Ginástico em 1949, quando encenamos também o segundo ato da peça "Aruanda", de Joaquim Ribeiro. Camus assistiu atento e discutiu o trabalho conosco e com os atores do TEN, entre eles Claudiano Filho, Ruth de Souza, Haroldo Costa e Natalino Dionísio.
Além desse memorável encontro, tive a oportunidade de compartilhar com Camus o seu profundo interesse pela cultura brasileira de origem africana. Visitamos, no então vilarejo de Duque de Caxias, os terreiros de candomblé, onde eu tivera o privilégio de conhecer uma grande liderança religiosa, Joãosinho da Gomeia -figura forte e afirmativa, com aquela doçura dos iluminados.
Ainda dividi com Camus uma noitada na gafieira Elite, no centro do Rio. Ele aplaudiu os bailados afro-brasileiros de Mercedes Batista, ensaiou dançar o samba, ouviu a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura e assistiu à Fausta apresentando o frevo pernambucano.
Em 1950, o TEN promoveu o 1º Congresso do Negro Brasileiro, cujo registro taquigráfico e teses apresentadas compunham os anais que reuni em dois volumes. Mergulhado na organização desses anais, soube da publicação de "O Homem Revoltado", ensaio filosófico de Camus. O texto era fascinante; pude conhecê-lo de forma viva e em versão direta em longas discussões com Efraín e Gerardo. A obra inspirou o título do primeiro volume dos anais do Congresso, "O Negro Revoltado". Sumariamente rejeitado pelas editoras até 1968, o livro é todo pontuado com trechos de "O Homem Revoltado", epígrafes em homenagem a Camus.
O segundo volume dos anais seria "A Negritude Polêmica", que registrava a discussão em torno da tese "Estética da Negritude", de Ironides Rodrigues. Nunca encontrou editora. Já o volume publicado registra vários documentos como extraviados, pois um sociólogo que se aproximou do TEN para investigar a questão racial os pediu emprestados e não os devolveu. Publicou sua pesquisa recheada de referências negativas em termos, digamos, pouco científicos, agredindo o TEN e as organizações negras em geral.
Nós apontamos publicamente o caráter tendencioso do trabalho. A resposta do autor expressa bem a geografia humana dessa linha de investigação científica em relação ao negro: "Duvido que haja biologista que veja, digamos, um micróbio tomar de pena e vir a público dizer sandices a respeito da pesquisa em que participou como material de laboratório".
Ao contrário da morte inexorável do movimento social pelos direitos civis e humanos dos negros no Brasil anunciada por tais autores, hoje assistimos às suas conquistas. Entre elas estão a discussão e a formulação de políticas públicas afirmativas para a construção da igualdade racial.
Alquimia poética e utopia (Silviano Santiago)
São admiráveis estes quatro versos de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor, / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. O paradoxo desconfia da lógica da razão e diz que, ao mascarar a dor autenticamente sentida com o fingimento poético, a voz do poeta se cola à verdade. Esta não tem o percurso pavimentado pela espontaneidade do sujeito e, sim, pela sua predisposição salutar ao fingimento retórico, que escreve a boa poesia. Ao divergir do senso comum, o poeta distorce a emoção da dor sentida para guardá-la no coração e fingi-la com letras na página em branco. Ali a sente mais realisticamente, revela-a e a transmite ao leitor. Alquimia da arte.
O escritor modernista brasileiro também tem o fingimento como alicerce da poesia. No entanto, de Fernando Pessoa se distancia por colocar como epicentro da escrita poética não a distorção da dor sentida, mas a desconfiança em relação ao nível de exigência formal requerido do adulto no uso da língua nacional e da linguagem poética. Em rebeldia contra o saber escolar que o constituiu como cidadão e contra a tradição literária eurocêntrica que o constituía como artista da palavra, o modernista finge observar o mundo com olhos de criança e finge imitá-la na redação. Contraditória e autenticamente, estaria escrevendo poesia de e para cidadão adulto brasileiro. Leia-se o livro Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade (1927), ou entenda-se a docência às avessas no poema 3 de Maio: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi”.
Ao distorcer o saber proporcionado pela formação educacional em vigor e ao rejeitar o ouvido poético afinado pela métrica e a rima, ao fingir-se de criança e escrever como ela, o poema modernista se cola ao autenticamente pensado e vivido. O fingimento evita que a escrita poética caia em outro e nefasto sistema de fingimento – o do artista comprometido com o artesanato de ourives e o da retórica, com a estética parnasiana.
O caderno do aluno Oswald não se assemelha ao carnê em que o viajante europeu anotou observações e pensamentos à espera da versão apurada e definitiva. Tampouco é metáfora para versos que traduzem a experiência subjetiva da desigualdade negra sentida pelo martinicano Aimé Césaire em terras metropolitanas (Cahier d”Un Retour au Pays Natal, 1939). O caderno escolar de Oswald tem em comum com os dois exemplos o trato com o desconhecido, que se expressa pelo desejo de “ver com olhos livres” e de sentir a “alegria dos que não sabem e descobrem” (como está no Manifesto da poesia pau-brasil). Bem acabada, a linguagem poética do caderno de Oswald é, no entanto, mal torneada por ser fingidamente inocente e ingênua, decidida a desconcertar o leitor pela varinha de condão do humor e da surpresa. O poeta não está onde você acredita que ele deveria estar.
O poema se arrisca quando acopla ao artista da palavra a voz crítica do intelectual. Unidos, escancaram em escrita o jogo político-social e econômico dominante na jovem nação. O povo brasileiro abre alas na poesia e pede passagem. Pelo seu tosco e autêntico modo de sentir e de pensar e pelo seu linguajar precário, é semelhante à criança. Um denominador comum sela o encontro – “a contribuição milionária de todos os erros”. O dado e tido como certo para o Brasil é errado. O dado e tido como errado é certo. O adulto poeta finge ser criança e o intelectual maduro finge ser povo. Ao apadrinhar (to patronise, em inglês) criança e povo, o poema se quer força de resgate da nova geração e da nova cidadania. Desenha utopias verde-amarelas. O paradoxo poético de Pessoa se expressa pelo erro correto, moeda que, desvalorizada pelo senso comum europeizado, financia a futura e boa cidadania brasileira. Leia-se Pronominais: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro”.
No cenário poético da infância, Manuel Bandeira sobrepõe ao erro correto o sabor e o saber da experiência proporcionada ao cidadão brasileiro pelo linguajar do povo. Lê-se na Evocação do Recife: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Na mesma cena infantil do sabor/saber popular, Carlos Drummond afina pelo afeto a voz da empregada doméstica e, acertada e contraditoriamente, a situa em etnia e classe diferentes. Leiamos trecho do poema intitulado Infância: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / A ninar nos longes da senzala – e nunca se esquece / Chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / Café gostoso / Café bom”.
Em todos os poemas citados a (quase total) ausência de pontuação reitera a necessidade de a sintaxe modernista ser fonética. Em Pontuação e Poesia, Drummond observa: “A pontuação regular, iluminando igualmente todos os ângulos da superfície poética, impede que se destaque algum de seus acidentes mais característicos”. Em outro texto da época, Drummond afirma que “o preconceituoso procura o acessório, que não interessa e foi removido”.
A alquimia poética do Modernismo é nitidamente pós-colonial, fingida e realisticamente utópica. Deveria ter sido relegada à década de 1920 em virtude das várias etapas de modernização política, social e econômica por que passou a nação brasileira depois dos anos 1930. A polêmica em torno do livro Por Uma Vida Melhor, de Heloísa Ramos, demonstra que, no Brasil, a educação das massas ainda é uma utopia verde-amarela. Diz o mundo e lamenta o projeto do pré-sal.
O Estado de S.Paulo
O escritor modernista brasileiro também tem o fingimento como alicerce da poesia. No entanto, de Fernando Pessoa se distancia por colocar como epicentro da escrita poética não a distorção da dor sentida, mas a desconfiança em relação ao nível de exigência formal requerido do adulto no uso da língua nacional e da linguagem poética. Em rebeldia contra o saber escolar que o constituiu como cidadão e contra a tradição literária eurocêntrica que o constituía como artista da palavra, o modernista finge observar o mundo com olhos de criança e finge imitá-la na redação. Contraditória e autenticamente, estaria escrevendo poesia de e para cidadão adulto brasileiro. Leia-se o livro Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade (1927), ou entenda-se a docência às avessas no poema 3 de Maio: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi”.
Ao distorcer o saber proporcionado pela formação educacional em vigor e ao rejeitar o ouvido poético afinado pela métrica e a rima, ao fingir-se de criança e escrever como ela, o poema modernista se cola ao autenticamente pensado e vivido. O fingimento evita que a escrita poética caia em outro e nefasto sistema de fingimento – o do artista comprometido com o artesanato de ourives e o da retórica, com a estética parnasiana.
O caderno do aluno Oswald não se assemelha ao carnê em que o viajante europeu anotou observações e pensamentos à espera da versão apurada e definitiva. Tampouco é metáfora para versos que traduzem a experiência subjetiva da desigualdade negra sentida pelo martinicano Aimé Césaire em terras metropolitanas (Cahier d”Un Retour au Pays Natal, 1939). O caderno escolar de Oswald tem em comum com os dois exemplos o trato com o desconhecido, que se expressa pelo desejo de “ver com olhos livres” e de sentir a “alegria dos que não sabem e descobrem” (como está no Manifesto da poesia pau-brasil). Bem acabada, a linguagem poética do caderno de Oswald é, no entanto, mal torneada por ser fingidamente inocente e ingênua, decidida a desconcertar o leitor pela varinha de condão do humor e da surpresa. O poeta não está onde você acredita que ele deveria estar.
O poema se arrisca quando acopla ao artista da palavra a voz crítica do intelectual. Unidos, escancaram em escrita o jogo político-social e econômico dominante na jovem nação. O povo brasileiro abre alas na poesia e pede passagem. Pelo seu tosco e autêntico modo de sentir e de pensar e pelo seu linguajar precário, é semelhante à criança. Um denominador comum sela o encontro – “a contribuição milionária de todos os erros”. O dado e tido como certo para o Brasil é errado. O dado e tido como errado é certo. O adulto poeta finge ser criança e o intelectual maduro finge ser povo. Ao apadrinhar (to patronise, em inglês) criança e povo, o poema se quer força de resgate da nova geração e da nova cidadania. Desenha utopias verde-amarelas. O paradoxo poético de Pessoa se expressa pelo erro correto, moeda que, desvalorizada pelo senso comum europeizado, financia a futura e boa cidadania brasileira. Leia-se Pronominais: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro”.
No cenário poético da infância, Manuel Bandeira sobrepõe ao erro correto o sabor e o saber da experiência proporcionada ao cidadão brasileiro pelo linguajar do povo. Lê-se na Evocação do Recife: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Na mesma cena infantil do sabor/saber popular, Carlos Drummond afina pelo afeto a voz da empregada doméstica e, acertada e contraditoriamente, a situa em etnia e classe diferentes. Leiamos trecho do poema intitulado Infância: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / A ninar nos longes da senzala – e nunca se esquece / Chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / Café gostoso / Café bom”.
Em todos os poemas citados a (quase total) ausência de pontuação reitera a necessidade de a sintaxe modernista ser fonética. Em Pontuação e Poesia, Drummond observa: “A pontuação regular, iluminando igualmente todos os ângulos da superfície poética, impede que se destaque algum de seus acidentes mais característicos”. Em outro texto da época, Drummond afirma que “o preconceituoso procura o acessório, que não interessa e foi removido”.
A alquimia poética do Modernismo é nitidamente pós-colonial, fingida e realisticamente utópica. Deveria ter sido relegada à década de 1920 em virtude das várias etapas de modernização política, social e econômica por que passou a nação brasileira depois dos anos 1930. A polêmica em torno do livro Por Uma Vida Melhor, de Heloísa Ramos, demonstra que, no Brasil, a educação das massas ainda é uma utopia verde-amarela. Diz o mundo e lamenta o projeto do pré-sal.
O Estado de S.Paulo
Os gays e a Bíblia (Frei Betto)
É no mínimo surpreendente constatar as pressões sobre o Senado para evitar a lei que criminaliza a homofobia. Sofrem de amnésia os que insistem em segregar, discriminar, satanizar e condenar os casais homoafetivos. No tempo de Jesus, os segregados eram os pagãos, os doentes, os que exerciam determinadas atividades profissionais, como açougueiros e fiscais de renda. Com todos esses Jesus teve uma atitude inclusiva. Mais tarde, vitimizaram indígenas, negros, hereges e judeus. Hoje, homossexuais, muçulmanos e migrantes pobres (incluídas as “pessoas diferenciadas”...).
Relações entre pessoas do mesmo sexo ainda são ilegais em mais de 80 nações. Em alguns países islâmicos elas são punidas com castigos físicos ou pena de morte (Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Nigéria etc). No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 2008, 27 países-membros da União Europeia assinaram resolução à ONU pela “despenalização universal da homossexualidade”.
A Igreja Católica deu um pequeno passo adiante ao incluir no seu catecismo a exigência de se evitar qualquer discriminação a homossexuais. No entanto, silenciam as autoridades eclesiásticas quando se trata de se pronunciar contra a homofobia. E, no entanto, se escutou sua discordância à decisão do STF ao aprovar o direito de união civil dos homoafetivos.
Ninguém escolhe ser homo ou heterossexual. A pessoa nasce assim. E, à luz do Evangelho, a Igreja não tem o direito de encarar ninguém como homo ou hetero, e sim como filho de Deus, chamado à comunhão com Ele e com o próximo, destinatário da graça divina.
São alarmantes os índices de agressões e assassinatos de homossexuais no Brasil. A urgência de uma lei contra a violência simbólica, que instaura procedimento social e fomenta a cultura da satanização.
A Igreja Católica já não condena homossexuais, mas impede que eles manifestem o seu amor por pessoas do mesmo sexo. Ora, todo amor não decorre de Deus? Não diz a Carta de João (I,7) que “quem ama conhece a Deus” (observe que João não diz que quem conhece a Deus ama...).
Por que fingir ignorar que o amor exige união e querer que essa união permaneça à margem da lei? No matrimônio são os noivos os verdadeiros ministros. E não o padre, como muitos imaginam. Pode a teologia negar a essencial sacramentalidade da união de duas pessoas que se amam, ainda que do mesmo sexo?
Ora, direis, ouvir a Bíblia! Sim, no contexto patriarcal em que foi escrita seria estranho aprovar o homossexualismo. Mas muitas passagens o subtendem, como o amor entre Davi por Jônatas (I Samuel 18), o centurião romano interessado na cura de seu servo (Lucas 7) e os “eunucos de nascença” (Mateus 19). E a tomar a Bíblia literalmente, teríamos que passar ao fio da espada todos que professam crenças diferentes da nossa e odiar pai e mãe para verdadeiramente seguir a Jesus.
Há que passar da hermenêutica singularizadora para a hermenêutica pluralizadora. Ontem, a Igreja Católica acusava os judeus de assassinos de Jesus; condenava ao limbo crianças mortas sem batismo; considerava legítima a escravidão;e censurava o empréstimo a juros. Por que excluir casais homoafetivos de direitos civis e religiosos?
Pecado é aceitar os mecanismos de exclusão e selecionar seres humanos por fatores biológicos, raciais, étnicos ou sexuais. Todos são filhos amados por Deus. Todos têm como vocação essencial amar e ser amados. A lei é feita para a pessoa, insiste Jesus, e não a pessoa para a lei.
FREI BETTO
Relações entre pessoas do mesmo sexo ainda são ilegais em mais de 80 nações. Em alguns países islâmicos elas são punidas com castigos físicos ou pena de morte (Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Nigéria etc). No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 2008, 27 países-membros da União Europeia assinaram resolução à ONU pela “despenalização universal da homossexualidade”.
A Igreja Católica deu um pequeno passo adiante ao incluir no seu catecismo a exigência de se evitar qualquer discriminação a homossexuais. No entanto, silenciam as autoridades eclesiásticas quando se trata de se pronunciar contra a homofobia. E, no entanto, se escutou sua discordância à decisão do STF ao aprovar o direito de união civil dos homoafetivos.
Ninguém escolhe ser homo ou heterossexual. A pessoa nasce assim. E, à luz do Evangelho, a Igreja não tem o direito de encarar ninguém como homo ou hetero, e sim como filho de Deus, chamado à comunhão com Ele e com o próximo, destinatário da graça divina.
São alarmantes os índices de agressões e assassinatos de homossexuais no Brasil. A urgência de uma lei contra a violência simbólica, que instaura procedimento social e fomenta a cultura da satanização.
A Igreja Católica já não condena homossexuais, mas impede que eles manifestem o seu amor por pessoas do mesmo sexo. Ora, todo amor não decorre de Deus? Não diz a Carta de João (I,7) que “quem ama conhece a Deus” (observe que João não diz que quem conhece a Deus ama...).
Por que fingir ignorar que o amor exige união e querer que essa união permaneça à margem da lei? No matrimônio são os noivos os verdadeiros ministros. E não o padre, como muitos imaginam. Pode a teologia negar a essencial sacramentalidade da união de duas pessoas que se amam, ainda que do mesmo sexo?
Ora, direis, ouvir a Bíblia! Sim, no contexto patriarcal em que foi escrita seria estranho aprovar o homossexualismo. Mas muitas passagens o subtendem, como o amor entre Davi por Jônatas (I Samuel 18), o centurião romano interessado na cura de seu servo (Lucas 7) e os “eunucos de nascença” (Mateus 19). E a tomar a Bíblia literalmente, teríamos que passar ao fio da espada todos que professam crenças diferentes da nossa e odiar pai e mãe para verdadeiramente seguir a Jesus.
Há que passar da hermenêutica singularizadora para a hermenêutica pluralizadora. Ontem, a Igreja Católica acusava os judeus de assassinos de Jesus; condenava ao limbo crianças mortas sem batismo; considerava legítima a escravidão;e censurava o empréstimo a juros. Por que excluir casais homoafetivos de direitos civis e religiosos?
Pecado é aceitar os mecanismos de exclusão e selecionar seres humanos por fatores biológicos, raciais, étnicos ou sexuais. Todos são filhos amados por Deus. Todos têm como vocação essencial amar e ser amados. A lei é feita para a pessoa, insiste Jesus, e não a pessoa para a lei.
FREI BETTO
Resistindo à chantagem (Suely Caldas)
A aparição do ex-presidente Lula em Brasília, tentando impor à sua pupila a volta da chantagem política na relação com o Congresso, foi péssima para Dilma Rousseff. Um lastimável retrocesso que fortaleceu os políticos que só querem cargos, e deles tirar proveito, e enfraqueceu o trabalho de cinco meses da presidente de a eles reagir e tentar dar ao País uma gestão técnica, profissional, séria e qualificada. Ainda há tempo, Dilma. Responda a ele que a caneta é sua, a responsabilidade perante os brasileiros é sua e este momento da história é seu. Portanto, Lula, vá beber água de coco em São Bernardo, vá engordar seu patrimônio com palestras milionárias e deixe o governo em paz.
O governo Lula foi marcado por oito anos de escândalos financeiros, fraudes e muito desvio de dinheiro público praticados em estatais e repartições federais loteadas por políticos aliados incompetentes para administrar e espertos para dali extrair vantagens para seus partidos, amigos e parentes. Na época ministra, Dilma a tudo assistia de longe. Por não ter perfil (nem estômago) para enfrentar o jogo sujo da barganha e da chantagem política, ao ser transferida para a Casa Civil, pediu para tirar das funções da pasta a relação com parlamentares, que seu antecessor José Dirceu abraçou com tal gula e avidez, que acabou demitido e com direitos políticos cassados. É verdade que Dilma não tem o menor traquejo, habilidade nem paciência para lidar com parlamentares que nos anos 80 Lula chamava de "picaretas". Todo o tempo fugiu de encontros com partidos e fez do ministro Antonio Palocci seu interlocutor para negociar cargos no governo. Em cada lista de dez nomes indicados pelos partidos, ela aceitava discutir dois ou três, no máximo - aqueles com algum conhecimento técnico especializado. Mas resistia em dar a palavra final e não os atendia.
Dá para entender, mas o silêncio de Dilma não foi a melhor estratégia para abolir a prática que Lula deixou impregnada e que fez o País pagar muito caro a cada proposta que o governo levava à votação no Congresso. O pior da chantagem é seu poder multiplicador de preço e exigências. Uma vez aceita, o chantagista quer sempre mais. A inflexibilidade de Dilma funcionou em fevereiro, na aprovação do salário mínimo, com adesão unânime dos partidos aliados. Mas cinco meses de silenciosa rejeição a pedidos por cargos levaram os partidos a retaliarem no episódio da crise de confiança do ministro Palocci e na votação do Código Florestal na Câmara.
Há 15 dias o governo está parado, a pneumonia da presidente a enclausurou ainda mais e o principal ministro se escondeu, acusado de enriquecimento ilícito. Empacaram assuntos que exigem ação rápida do governo, como a licitação de aeroportos para a Copa, tocada por Palocci, que, tocaiado, não se reúne com empresas interessadas. Os dois reapareceram na quinta-feira por determinação do interventor Lula.
Transparência, comunicação direta, diálogo sincero e aberto com a população são qualidades e o cacife político de bons governantes. Ao contrário da mentira camuflada, do jogo sujo e da chantagem. E, se os políticos são ou não os "picaretas" de Lula, é bom lembrar que foram eleitos pelo voto popular. Portanto, a presidente e seu primeiro-ministro não lhes podem negar o diálogo.
Nos próximos dias Dilma e Palocci se reunirão com os partidos aliados. É a oportunidade para os dois se explicarem. Ele, se nada tem a temer, se não praticou tráfico de influência, venha a público, identifique as empresas, o trabalho que realizou e quanto ganhou de cada uma. Ela deveria ouvir o que os políticos têm a dizer e reafirmar que seu estilo de governar não aceita o jogo da barganha, da chantagem, do toma lá dá cá de seu antecessor. E que o sistema de representação democrático-partidária já está contemplado na composição do primeiro escalão. O segundo escalão precisa ter perfil técnico para dar eficiência à gestão e frear interferências políticas que resultem em corrupção, favorecimentos e desvios de dinheiro público.
Dilma precisa falar, reagir, provar ao País que não é um poste nem está ali esquentando cadeira para Lula.
Jornalista, é professora da PUC-Rio
FONTE:O ESTADO DE S. PAULO
O governo Lula foi marcado por oito anos de escândalos financeiros, fraudes e muito desvio de dinheiro público praticados em estatais e repartições federais loteadas por políticos aliados incompetentes para administrar e espertos para dali extrair vantagens para seus partidos, amigos e parentes. Na época ministra, Dilma a tudo assistia de longe. Por não ter perfil (nem estômago) para enfrentar o jogo sujo da barganha e da chantagem política, ao ser transferida para a Casa Civil, pediu para tirar das funções da pasta a relação com parlamentares, que seu antecessor José Dirceu abraçou com tal gula e avidez, que acabou demitido e com direitos políticos cassados. É verdade que Dilma não tem o menor traquejo, habilidade nem paciência para lidar com parlamentares que nos anos 80 Lula chamava de "picaretas". Todo o tempo fugiu de encontros com partidos e fez do ministro Antonio Palocci seu interlocutor para negociar cargos no governo. Em cada lista de dez nomes indicados pelos partidos, ela aceitava discutir dois ou três, no máximo - aqueles com algum conhecimento técnico especializado. Mas resistia em dar a palavra final e não os atendia.
Dá para entender, mas o silêncio de Dilma não foi a melhor estratégia para abolir a prática que Lula deixou impregnada e que fez o País pagar muito caro a cada proposta que o governo levava à votação no Congresso. O pior da chantagem é seu poder multiplicador de preço e exigências. Uma vez aceita, o chantagista quer sempre mais. A inflexibilidade de Dilma funcionou em fevereiro, na aprovação do salário mínimo, com adesão unânime dos partidos aliados. Mas cinco meses de silenciosa rejeição a pedidos por cargos levaram os partidos a retaliarem no episódio da crise de confiança do ministro Palocci e na votação do Código Florestal na Câmara.
Há 15 dias o governo está parado, a pneumonia da presidente a enclausurou ainda mais e o principal ministro se escondeu, acusado de enriquecimento ilícito. Empacaram assuntos que exigem ação rápida do governo, como a licitação de aeroportos para a Copa, tocada por Palocci, que, tocaiado, não se reúne com empresas interessadas. Os dois reapareceram na quinta-feira por determinação do interventor Lula.
Transparência, comunicação direta, diálogo sincero e aberto com a população são qualidades e o cacife político de bons governantes. Ao contrário da mentira camuflada, do jogo sujo e da chantagem. E, se os políticos são ou não os "picaretas" de Lula, é bom lembrar que foram eleitos pelo voto popular. Portanto, a presidente e seu primeiro-ministro não lhes podem negar o diálogo.
Nos próximos dias Dilma e Palocci se reunirão com os partidos aliados. É a oportunidade para os dois se explicarem. Ele, se nada tem a temer, se não praticou tráfico de influência, venha a público, identifique as empresas, o trabalho que realizou e quanto ganhou de cada uma. Ela deveria ouvir o que os políticos têm a dizer e reafirmar que seu estilo de governar não aceita o jogo da barganha, da chantagem, do toma lá dá cá de seu antecessor. E que o sistema de representação democrático-partidária já está contemplado na composição do primeiro escalão. O segundo escalão precisa ter perfil técnico para dar eficiência à gestão e frear interferências políticas que resultem em corrupção, favorecimentos e desvios de dinheiro público.
Dilma precisa falar, reagir, provar ao País que não é um poste nem está ali esquentando cadeira para Lula.
Jornalista, é professora da PUC-Rio
FONTE:O ESTADO DE S. PAULO
sábado, 28 de maio de 2011
ONU critica imposição de ensino religioso em escolas públicas
Além de desrespeito à laicidade do Estado brasileiro, relatora denuncia "intolerância e racismo"
Jamil Chade
Centenas de escolas públicas em pelo menos 11 Estados do Brasil não seguem os preceitos do caráter laico do Estado e impõem o ensino religioso, alerta a Organização das Nações Unidas. Em relatório a ser apresentado na semana que vem ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, a situação do Brasil é criticada.
O documento foi preparado pela relatora da ONU para o direito à cultura, Farida Shaheed, que também alerta que intolerância religiosa e racismo "persistem" na sociedade brasileira. A relatora apela por uma posição mais forte por parte do governo para frear ataques realizados por "seguidores de religiões pentecostais" contra praticantes de religiões afro-brasileiras no País. Uma das maiores preocupações é o com o ensino religioso, assunto que pôs Vaticano e governo em descompasso diplomático.
Os Estados citados por Farida, que visitou o País no final do ano passado, são Alagoas, Amapá, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
A relatora diz ter recolhido pedidos para que o material usado em aulas de religião nas escolas públicas seja submetido a uma revisão por especialistas, como no caso de outros materiais de ensino. Além disso, "recursos de um Estado laico não devem ser usados para comprar livros religiosos para escolas", esclarece.
Para Farida, "deixar o conteúdo de cursos religiosos ser determinado pelo sistema de crença pessoal de professores ou administradores de escolas, usar o ensino religioso como proselitismo, ensino religioso compulsório e excluir religiões de origem africana do curriculum foram relatados como principais preocupações que impedem a implementação efetiva do que é previsto na Constituição".
Legislação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação diz que o ensino religioso deve ser oferecido em todas as escolas públicas de ensino fundamental, mas a matrícula é facultativa. A definição do conteúdo é feita pelos Estado e municípios, mas a legislação afirma que o conteúdo deve assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa e proíbe qualquer forma de proselitismo.
"Em tese, deveria haver um professor capaz de representar todas as religiões. Mas, como sabemos, é impossível", explica Roseli Fischmann, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). "Além disso, a aula não é tratada efetivamente como facultativa. O arranjo é feito de tal forma que o aluno é obrigado a assistir."
Roseli explica que o modelo brasileiro é pouco usual nos países em que há total separação entre Estado e religião. "Até Portugal, que no regime de Salazar tornou obrigatório o ensino religioso, aboliu as aulas. Educação religiosa deve ser restrita aos colégios confessionais. Lá, o pai matricula consciente."
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Jamil Chade
Centenas de escolas públicas em pelo menos 11 Estados do Brasil não seguem os preceitos do caráter laico do Estado e impõem o ensino religioso, alerta a Organização das Nações Unidas. Em relatório a ser apresentado na semana que vem ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, a situação do Brasil é criticada.
O documento foi preparado pela relatora da ONU para o direito à cultura, Farida Shaheed, que também alerta que intolerância religiosa e racismo "persistem" na sociedade brasileira. A relatora apela por uma posição mais forte por parte do governo para frear ataques realizados por "seguidores de religiões pentecostais" contra praticantes de religiões afro-brasileiras no País. Uma das maiores preocupações é o com o ensino religioso, assunto que pôs Vaticano e governo em descompasso diplomático.
Os Estados citados por Farida, que visitou o País no final do ano passado, são Alagoas, Amapá, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
A relatora diz ter recolhido pedidos para que o material usado em aulas de religião nas escolas públicas seja submetido a uma revisão por especialistas, como no caso de outros materiais de ensino. Além disso, "recursos de um Estado laico não devem ser usados para comprar livros religiosos para escolas", esclarece.
Para Farida, "deixar o conteúdo de cursos religiosos ser determinado pelo sistema de crença pessoal de professores ou administradores de escolas, usar o ensino religioso como proselitismo, ensino religioso compulsório e excluir religiões de origem africana do curriculum foram relatados como principais preocupações que impedem a implementação efetiva do que é previsto na Constituição".
Legislação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação diz que o ensino religioso deve ser oferecido em todas as escolas públicas de ensino fundamental, mas a matrícula é facultativa. A definição do conteúdo é feita pelos Estado e municípios, mas a legislação afirma que o conteúdo deve assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa e proíbe qualquer forma de proselitismo.
"Em tese, deveria haver um professor capaz de representar todas as religiões. Mas, como sabemos, é impossível", explica Roseli Fischmann, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). "Além disso, a aula não é tratada efetivamente como facultativa. O arranjo é feito de tal forma que o aluno é obrigado a assistir."
Roseli explica que o modelo brasileiro é pouco usual nos países em que há total separação entre Estado e religião. "Até Portugal, que no regime de Salazar tornou obrigatório o ensino religioso, aboliu as aulas. Educação religiosa deve ser restrita aos colégios confessionais. Lá, o pai matricula consciente."
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Fragilidade de Dilma
Cientistas políticos consideram que a presidente perdeu autoridade com a intervenção do ex-presidente Lula no casa Palocci, mas alguns acham que isso terá pouco efeito no eleitorado.
Interferência de Lula expõe fragilidade política de Dilma
Estudiosos veem riscos na ação de ex-presidente para aplacar crise política gerada pelas denúncias contra o ministro Palocci
Gabriel Manzano
A intervenção do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para superar a crise do governo, durante a semana, evidenciou as dificuldades de Dilma Rousseff para gerir conflitos, o que prejudica sua imagem de boa administradora. Essa é a avaliação de cientistas políticos ouvidos pelo Estado - ainda que, para alguns, o eleitorado possa considerar isso normal e até legitimar a ação de Lula.
"O benefício é de curtíssimo prazo. No longo, Dilma simplesmente perdeu a autoridade e o custo será gigantesco", resume Amaury de Souza, do Instituto de Estudos do Trabalho e da Sociedade, Iets, no Rio. "O fato é que Lula não tem nenhum mandato, é um elemento perturbador, que entrou falando em nome próprio", acrescenta.
Com ele concorda José Álvaro Moisés, da USP. A ação de Lula "foi algo inteiramente fora do ponto", define Moisés. "Ao ocupar o centro da cena, do modo como fez, ele projetou a debilidade da liderança da presidente."
Amaury de Souza acredita que Dilma "jogou pela janela" os cinco meses de benefício da dúvida que o País lhe concedeu. "O episódio bate em sua imagem como grande administradora", pondera, juntando os estragos causados pelo Código Florestal, os ganhos pessoais do ministro Antonio Palocci e a negociação da cartilha anti-homofóbica do MEC. "Agora há dúvidas quanto à sua capacidade de orientar o governo. E ela tem pela frente três anos e meio de governo".
Souza e Moisés também veem, na ação de Lula, uma certa intenção de "deixar o recado" de que, se ela não está preparada para governar, "ele está aí para retornar". Souza até arrisca afirmar que Lula "já descobriu que o povo esquece rápido, não gostou e quer ser lembrado".
"Normal". Para o cientista político Humberto Dantas, porém, "tudo depende de como o público vai olhar para isso". O eleitorado de Dilma "votou no prolongamento do governo Lula. Para esses cidadãos, o que ocorreu é o esperado". Falta saber, acrescenta, "como a oposição vai tratar o caso. Ela pode se calar se perceber que a sociedade legitima o episódio".
O diretor do Eurasia Group, Christopher Garman, fica a meio caminho. "A entrada de Lula revela, sim, certa fragilidade da base aliada do governo. Mas não é o mesmo que dizer que a atuação de Lula enfraquece Dilma". Ele admite, no entanto, que ela "precisa mostrar mais tato para se relacionar com sua base".
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Interferência de Lula expõe fragilidade política de Dilma
Estudiosos veem riscos na ação de ex-presidente para aplacar crise política gerada pelas denúncias contra o ministro Palocci
Gabriel Manzano
A intervenção do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para superar a crise do governo, durante a semana, evidenciou as dificuldades de Dilma Rousseff para gerir conflitos, o que prejudica sua imagem de boa administradora. Essa é a avaliação de cientistas políticos ouvidos pelo Estado - ainda que, para alguns, o eleitorado possa considerar isso normal e até legitimar a ação de Lula.
"O benefício é de curtíssimo prazo. No longo, Dilma simplesmente perdeu a autoridade e o custo será gigantesco", resume Amaury de Souza, do Instituto de Estudos do Trabalho e da Sociedade, Iets, no Rio. "O fato é que Lula não tem nenhum mandato, é um elemento perturbador, que entrou falando em nome próprio", acrescenta.
Com ele concorda José Álvaro Moisés, da USP. A ação de Lula "foi algo inteiramente fora do ponto", define Moisés. "Ao ocupar o centro da cena, do modo como fez, ele projetou a debilidade da liderança da presidente."
Amaury de Souza acredita que Dilma "jogou pela janela" os cinco meses de benefício da dúvida que o País lhe concedeu. "O episódio bate em sua imagem como grande administradora", pondera, juntando os estragos causados pelo Código Florestal, os ganhos pessoais do ministro Antonio Palocci e a negociação da cartilha anti-homofóbica do MEC. "Agora há dúvidas quanto à sua capacidade de orientar o governo. E ela tem pela frente três anos e meio de governo".
Souza e Moisés também veem, na ação de Lula, uma certa intenção de "deixar o recado" de que, se ela não está preparada para governar, "ele está aí para retornar". Souza até arrisca afirmar que Lula "já descobriu que o povo esquece rápido, não gostou e quer ser lembrado".
"Normal". Para o cientista político Humberto Dantas, porém, "tudo depende de como o público vai olhar para isso". O eleitorado de Dilma "votou no prolongamento do governo Lula. Para esses cidadãos, o que ocorreu é o esperado". Falta saber, acrescenta, "como a oposição vai tratar o caso. Ela pode se calar se perceber que a sociedade legitima o episódio".
O diretor do Eurasia Group, Christopher Garman, fica a meio caminho. "A entrada de Lula revela, sim, certa fragilidade da base aliada do governo. Mas não é o mesmo que dizer que a atuação de Lula enfraquece Dilma". Ele admite, no entanto, que ela "precisa mostrar mais tato para se relacionar com sua base".
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
sexta-feira, 27 de maio de 2011
O futuro a Lula pertence (Maria Cristina Fernandes)
Ameaça ruir o esforço da presidente Dilma Rousseff em imprimir uma marca e selar diferenças em relação ao governo de seu antecessor.
As denúncias que envolvem o ministro da Casa Civil, a votação do Código Florestal e a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília ameaçam a forma e o conteúdo da mudança.
Lula se valeu dos resultados de seu governo, de concessões e do seu carisma para equilibrar sua conflitante base política.
Dilma comanda uma equação de poder mais ampla e ainda é cedo para ter resultados a mostrar. Mas optou por algumas bandeiras como política externa afiançada em direitos humanos, postura de menos confronto com a imprensa e discrição no exercício do poder para conquistar parcelas da sociedade ariscas ao carisma lulista.
A resistência ao código obedece a esse figurino tanto na conquista da classe média urbana quanto na imagem do Brasil no exterior. As pontes lançadas à oposição, como a cordialidade na relação com ícones do PSDB, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também seguem neste prumo.
Ameaça ruir o esforço de Dilma em delimitar as diferenças
Ao recorrer a Lula para conter a crise desencadeada pela descoberta da atípica evolução patrimonial de Palocci, Dilma não passa recibo apenas da delicada situação política do ministro da Casa Civil, mas das fragilidades latentes de sua equação de poder.
A primeira missão de Lula foi mandar alardear o que o Planalto já tentava plantar nas redações: que a artilharia contra Palocci havia partido do ex-governador José Serra. Lula trouxe para a linha de frente da defesa de Dilma o bateu-levou dos palanques do ano passado que tanto contrastou com a amena imagem pública da nova presidente.
Independentemente dos benefícios para Serra em se fazer presente no jogo no momento em que seu próprio partido se prepara para defenestrá-lo, a tática do ex-presidente esbarra nas eloquentes evidências de que o volume de interesses contrariados na República é maior na base governista do que na oposição. No embate eleitoral um inimigo externo pode até ajudar a unir aliados. Numa conjuntura em que a oposição não tem número sequer para aprovar um requerimento, a iniciativa, além de desprovida de foco, é um acinte à inteligência dos aliados governistas.
Passaria por uma iniciativa patética não tivesse sido levada a cabo pelo secretário-geral da Presidência. Ao confiar a Gilberto Carvalho e não a um parlamentar a missão de acusar nominalmente Serra de mandar quebrar o sigilo fiscal da consultoria de Palocci, Lula quebra a liturgia da Presidência da República como se ainda a ocupasse e infantiliza a figura da titular, superior hierárquica do cargo aparelhado para a luta política.
Ao nomear para a Casa Civil aquele que gozava de mais prestígio junto ao ex-presidente entre os comandantes de sua campanha, Dilma não se valeu dos mesmos filtros que Lula usou para escolhê-la na substituição a José Dirceu.
Imaginava-se que o telhado de vidro de Palocci seria poupado pela completa subordinação do cargo à Presidência. A solução se mostrou precária não apenas pela fina espessura do vidro mas também pela natureza dos interesses que este governo se dispôs a conciliar em sua base, a começar pelas disputas internas do partido da presidente.
A votação do Código Florestal escancarou as dificuldades do governo com o que Marcos Nobre já chamou de "excesso de adesão".
O projeto do código tramita no Congresso há 12 anos em reação ao avanço da legislação ambiental. A Dilma, como àqueles que a precederam, nunca interessou votá-lo porque o texto colocaria um freio a políticas federais de proteção ambiental que têm avançado a despeito da representação parlamentar dos produtores rurais.
No governo Dilma, a resistência a colocar na letra da lei a anistia a desmatadores, somada à maior ênfase do Itamaraty em direitos humanos, compõe a imagem de Brasil que se quer projetar no exterior. A postura também ajuda a equilibrar, internamente, uma imagem de presidente irredutível no licenciamento de usinas. Se nesse quesito não há concessão porque se avalia que a geração de energia seria colocada em risco, é no freio ao desmatamento que precisa se fiar.
O código rumava para ser aprovado mesmo sem as denúncias contra Palocci. Mas a crise diminuiu o cacife do governo para conseguir um texto mais equilibrado e colocou o jogo no colo do PMDB, o partido sempre melhor equipado para tirar proveito de conjunturas afins.
Numa amostra da janela de oportunidades que a crise abriu para a sedenta base aliada de Dilma, o PR de Anthony Garotinho, aplicado aprendiz do pemedebismo, conseguiu fazer com que a cartilha anti-homofobia do Ministério da Educação fosse recolhida.
Se Lula já havia conseguido reeditar, com as acusações à oposição, o clima que Dilma, a muito custo havia conseguido esfriar, o PR levou o Executivo a retroagir num tema igualmente inflamado pela campanha.
A cartilha, chancelada pela Unesco, era uma catequese para a tolerância numa juventude frequentemente exposta a apelos violentos contra a homofobia. Até o Supremo, por unanimidade, já havia conseguido avançar na aceitação ao casamento gay a despeito de um Congresso que exerce sucessivamente seu poder de veto ao tema.
O Supremo, segundo seu presidente, tenderá cada vez mais a fazer sessões fechadas e prévias aos julgamentos públicos. Assim foi na questão da homofobia.
Assim vai-se redesenhando a repartição dos Poderes. Os onze magistrados tomam a iniciativa de colocar o país na era do Iluminismo em sessões fechadas, o Congresso joga abertamente na retranca para manter o regime das sesmarias e o Executivo, como definiu a presidente em seu primeiro pronunciamento desde a crise palociana, entrega seu futuro aos céus. Talvez tenha sido sua maneira de dizer que o futuro a Lula pertence.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
As denúncias que envolvem o ministro da Casa Civil, a votação do Código Florestal e a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília ameaçam a forma e o conteúdo da mudança.
Lula se valeu dos resultados de seu governo, de concessões e do seu carisma para equilibrar sua conflitante base política.
Dilma comanda uma equação de poder mais ampla e ainda é cedo para ter resultados a mostrar. Mas optou por algumas bandeiras como política externa afiançada em direitos humanos, postura de menos confronto com a imprensa e discrição no exercício do poder para conquistar parcelas da sociedade ariscas ao carisma lulista.
A resistência ao código obedece a esse figurino tanto na conquista da classe média urbana quanto na imagem do Brasil no exterior. As pontes lançadas à oposição, como a cordialidade na relação com ícones do PSDB, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também seguem neste prumo.
Ameaça ruir o esforço de Dilma em delimitar as diferenças
Ao recorrer a Lula para conter a crise desencadeada pela descoberta da atípica evolução patrimonial de Palocci, Dilma não passa recibo apenas da delicada situação política do ministro da Casa Civil, mas das fragilidades latentes de sua equação de poder.
A primeira missão de Lula foi mandar alardear o que o Planalto já tentava plantar nas redações: que a artilharia contra Palocci havia partido do ex-governador José Serra. Lula trouxe para a linha de frente da defesa de Dilma o bateu-levou dos palanques do ano passado que tanto contrastou com a amena imagem pública da nova presidente.
Independentemente dos benefícios para Serra em se fazer presente no jogo no momento em que seu próprio partido se prepara para defenestrá-lo, a tática do ex-presidente esbarra nas eloquentes evidências de que o volume de interesses contrariados na República é maior na base governista do que na oposição. No embate eleitoral um inimigo externo pode até ajudar a unir aliados. Numa conjuntura em que a oposição não tem número sequer para aprovar um requerimento, a iniciativa, além de desprovida de foco, é um acinte à inteligência dos aliados governistas.
Passaria por uma iniciativa patética não tivesse sido levada a cabo pelo secretário-geral da Presidência. Ao confiar a Gilberto Carvalho e não a um parlamentar a missão de acusar nominalmente Serra de mandar quebrar o sigilo fiscal da consultoria de Palocci, Lula quebra a liturgia da Presidência da República como se ainda a ocupasse e infantiliza a figura da titular, superior hierárquica do cargo aparelhado para a luta política.
Ao nomear para a Casa Civil aquele que gozava de mais prestígio junto ao ex-presidente entre os comandantes de sua campanha, Dilma não se valeu dos mesmos filtros que Lula usou para escolhê-la na substituição a José Dirceu.
Imaginava-se que o telhado de vidro de Palocci seria poupado pela completa subordinação do cargo à Presidência. A solução se mostrou precária não apenas pela fina espessura do vidro mas também pela natureza dos interesses que este governo se dispôs a conciliar em sua base, a começar pelas disputas internas do partido da presidente.
A votação do Código Florestal escancarou as dificuldades do governo com o que Marcos Nobre já chamou de "excesso de adesão".
O projeto do código tramita no Congresso há 12 anos em reação ao avanço da legislação ambiental. A Dilma, como àqueles que a precederam, nunca interessou votá-lo porque o texto colocaria um freio a políticas federais de proteção ambiental que têm avançado a despeito da representação parlamentar dos produtores rurais.
No governo Dilma, a resistência a colocar na letra da lei a anistia a desmatadores, somada à maior ênfase do Itamaraty em direitos humanos, compõe a imagem de Brasil que se quer projetar no exterior. A postura também ajuda a equilibrar, internamente, uma imagem de presidente irredutível no licenciamento de usinas. Se nesse quesito não há concessão porque se avalia que a geração de energia seria colocada em risco, é no freio ao desmatamento que precisa se fiar.
O código rumava para ser aprovado mesmo sem as denúncias contra Palocci. Mas a crise diminuiu o cacife do governo para conseguir um texto mais equilibrado e colocou o jogo no colo do PMDB, o partido sempre melhor equipado para tirar proveito de conjunturas afins.
Numa amostra da janela de oportunidades que a crise abriu para a sedenta base aliada de Dilma, o PR de Anthony Garotinho, aplicado aprendiz do pemedebismo, conseguiu fazer com que a cartilha anti-homofobia do Ministério da Educação fosse recolhida.
Se Lula já havia conseguido reeditar, com as acusações à oposição, o clima que Dilma, a muito custo havia conseguido esfriar, o PR levou o Executivo a retroagir num tema igualmente inflamado pela campanha.
A cartilha, chancelada pela Unesco, era uma catequese para a tolerância numa juventude frequentemente exposta a apelos violentos contra a homofobia. Até o Supremo, por unanimidade, já havia conseguido avançar na aceitação ao casamento gay a despeito de um Congresso que exerce sucessivamente seu poder de veto ao tema.
O Supremo, segundo seu presidente, tenderá cada vez mais a fazer sessões fechadas e prévias aos julgamentos públicos. Assim foi na questão da homofobia.
Assim vai-se redesenhando a repartição dos Poderes. Os onze magistrados tomam a iniciativa de colocar o país na era do Iluminismo em sessões fechadas, o Congresso joga abertamente na retranca para manter o regime das sesmarias e o Executivo, como definiu a presidente em seu primeiro pronunciamento desde a crise palociana, entrega seu futuro aos céus. Talvez tenha sido sua maneira de dizer que o futuro a Lula pertence.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
Palocci e o jogo do futuro (Fernando Gabeira)
A multiplicação do patrimônio do ministro Antônio Palocci por 20 inspirou um game na internet. Elementos para novos games existem no desenrolar do caso. Um deles poderia ser chamado de psicodrama nacional.
O governo decidiu blindar Palocci no Congresso, mobilizando os aliados para evitar investigações. O governo está acostumado a reagir com esse reflexo. Não parou para constatar que o tema agora é diferente. Perdeu algumas casas. Se há dúvida em torno da multiplicação do patrimônio, a única saída é uma explicação transparente. O movimento do governo e seus aliados fortaleceu a dúvida.
No livro sobre a China, Henry Kissinger cita um mestre oriental que dizia: a última palavra em excelência não é vencer as batalhas, mas derrotar o adversário sem luta. O governo colocou a oposição numa situação quase tão favorável ao nível de excelência proposto pelo sábio chinês. A oposição, neste caso particular, derrota o governo mesmo perdendo. Cada requerimento negado, cada CPI sepultada é um tijolo a mais no edifício da suspeita.
Quantas casas atrás não representa o apoio de José Sarney, Romero Jucá e Paulo Maluf, garantindo a integridade do ministro? A única saída no horizonte é contar com o esquecimento, resistir à pressão, esperar que outro escândalo se apresente na pipeline. Mas será que a fórmula de Sarney e Renan, ambos treinados a atravessar o vendaval, se aplica a este caso? Nenhum dos dois depende, nem eleitoralmente, da opinião pública.
Terá o escândalo das licitações fraudadas em Campinas o potencial de substituir o escândalo da multiplicação dos bens do ministro? Embora mencione amigo do ex-presidente Lula e tenha atraído José Dirceu para gerir a crise, o processo em Campinas tem potencial mais de agravar do que atenuar a pressão sobre Palocci.
O mundo vive momentos em que a indignação, com todas as suas limitações políticas, desempenha um grande papel. Esteve presente nos países árabes, na crise da Islândia e agora reaparece com força no M-15, movimento espanhol que encheu as praças de jovens no 15 de maio. Na Europa, a crise econômica e o modo conservador de superá-la são um pano de fundo para a inquietação. O índice de desemprego é de 21% na Espanha e quase dobra quando se avalia apenas a força de trabalho mais jovem. Nos países árabes, não só a luta pela democracia, mas os preços cada vez mais altos dos alimentos foram decisivos para encher as praças.
A maioria desses fatores de frustração não está presente no Brasil. Isso dá certo fôlego à gestão dos escândalos. Mas a soma deles, entretanto, funciona como um detonador no futuro.
O movimento dos jovens espanhóis ao sair às ruas não apontava um caso específico, mas a falência dos partidos políticos e alto nível de corrupção. O Brasil já vive essa clima nas redes sociais, que são um instrumento novo de debate. Mas os fatores econômicos negativos estão ausentes.
Às vezes, temos tendência a subestimar a inteligência do governo e seus formuladores. Pode ser que nesta crise a margem de manobra seja tão pequena que o force a uma reação, aparentemente irracional. Nesse caso, a conclusão lógica é que os fatos revelados teriam uma consequência mais catastrófica do que a recusa à transparência.
Ainda que tenha gasto muitos milhões na campanha presidencial, Dilma Rousseff atraiu eleitores idealistas que ainda veem no governo do PT uma luta dos pobres contra os ricos, da esquerda contra a direita, do futuro contra o passado. Esses resíduos de idealismo devem ir pelos ares, confrontados com o vigoroso enriquecimento de Palocci e com as fraudes nas licitações em Campinas. Lá as fraudes se deram no setor de saneamento básico. O vice-prefeito Demétrio Vilagra (PT) teve sua prisão decretada. A coalizão que governa Campinas intitula-se um governo popular. Desviar dinheiro de saneamento básico desconstrói qualquer imagem de um governo popular.
Alguém terá de salvar Dilma do impulso de resistir, por reflexo, com a tática, até certo ponto vitoriosa, de Maluf, Sarney, Renan e Jucá. Não que o escândalo Palocci tenha o potencial de indignar a população a ponto de jogá-la em manifestações de rua. Esse processo, como já vimos, só acontece combinado com fatores econômicos. Mas é preciso salvar o governo dos próprios aliados. Se a manobra de preservação de Palocci for feita nos moldes tradicionais, o sinal para todos os outros escalões estará dado. Nada vai segurar a voracidade de quem está nisso para enriquecer.
Jornalistas amigos do governo poderão argumentar que faltava uma lei, que Palocci não pode ser culpado de uma lacuna na estrutura legal brasileira. Mas não faltam razões morais e legais para respeitar o dinheiro do saneamento. E o esquema de Campinas nem isso perdoou. Será preciso inventar outra desculpa. Essa está esgotada, como está esgotada a tendência a escapar da responsabilidade afirmando que outros fizeram a mesma coisa. Se esse argumento tivesse alguma validade, pobres das camareiras de Nova York e dos hotéis do mundo inteiro. Um precedente ilustre absolveria todos os outros.
Não basta ao governo o talento para vencer eleições consecutivas e compor uma ampla base de apoio. Quando chegar o momento e as condições necessárias forem dadas, um cantor de rock, como na Islândia, pode acampar diante do Congresso e abrir seu microfone para o público. Aí começa, como na Islândia, uma profunda reforma, que alguns chamam de revolução, mas é apenas mudança radical no modo de fazer política no País.
Essas coisas não acontecem no Brasil - é uma frase que temos na ponta da língua para terremotos, desastres nucleares, tudo o queremos manter a distância. Mas em política as placas tectônicas são similares. Às vezes se acomodam ruidosamente. A solução para a crise da multiplicação do patrimônio e o escândalo das fraudes em saneamento terá papel decisivo no desenho do futuro político do País.
A longo prazo estaremos todos mortos. Mas, e se o prazo for mais curto do que prevemos?
Jornalista
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
O governo decidiu blindar Palocci no Congresso, mobilizando os aliados para evitar investigações. O governo está acostumado a reagir com esse reflexo. Não parou para constatar que o tema agora é diferente. Perdeu algumas casas. Se há dúvida em torno da multiplicação do patrimônio, a única saída é uma explicação transparente. O movimento do governo e seus aliados fortaleceu a dúvida.
No livro sobre a China, Henry Kissinger cita um mestre oriental que dizia: a última palavra em excelência não é vencer as batalhas, mas derrotar o adversário sem luta. O governo colocou a oposição numa situação quase tão favorável ao nível de excelência proposto pelo sábio chinês. A oposição, neste caso particular, derrota o governo mesmo perdendo. Cada requerimento negado, cada CPI sepultada é um tijolo a mais no edifício da suspeita.
Quantas casas atrás não representa o apoio de José Sarney, Romero Jucá e Paulo Maluf, garantindo a integridade do ministro? A única saída no horizonte é contar com o esquecimento, resistir à pressão, esperar que outro escândalo se apresente na pipeline. Mas será que a fórmula de Sarney e Renan, ambos treinados a atravessar o vendaval, se aplica a este caso? Nenhum dos dois depende, nem eleitoralmente, da opinião pública.
Terá o escândalo das licitações fraudadas em Campinas o potencial de substituir o escândalo da multiplicação dos bens do ministro? Embora mencione amigo do ex-presidente Lula e tenha atraído José Dirceu para gerir a crise, o processo em Campinas tem potencial mais de agravar do que atenuar a pressão sobre Palocci.
O mundo vive momentos em que a indignação, com todas as suas limitações políticas, desempenha um grande papel. Esteve presente nos países árabes, na crise da Islândia e agora reaparece com força no M-15, movimento espanhol que encheu as praças de jovens no 15 de maio. Na Europa, a crise econômica e o modo conservador de superá-la são um pano de fundo para a inquietação. O índice de desemprego é de 21% na Espanha e quase dobra quando se avalia apenas a força de trabalho mais jovem. Nos países árabes, não só a luta pela democracia, mas os preços cada vez mais altos dos alimentos foram decisivos para encher as praças.
A maioria desses fatores de frustração não está presente no Brasil. Isso dá certo fôlego à gestão dos escândalos. Mas a soma deles, entretanto, funciona como um detonador no futuro.
O movimento dos jovens espanhóis ao sair às ruas não apontava um caso específico, mas a falência dos partidos políticos e alto nível de corrupção. O Brasil já vive essa clima nas redes sociais, que são um instrumento novo de debate. Mas os fatores econômicos negativos estão ausentes.
Às vezes, temos tendência a subestimar a inteligência do governo e seus formuladores. Pode ser que nesta crise a margem de manobra seja tão pequena que o force a uma reação, aparentemente irracional. Nesse caso, a conclusão lógica é que os fatos revelados teriam uma consequência mais catastrófica do que a recusa à transparência.
Ainda que tenha gasto muitos milhões na campanha presidencial, Dilma Rousseff atraiu eleitores idealistas que ainda veem no governo do PT uma luta dos pobres contra os ricos, da esquerda contra a direita, do futuro contra o passado. Esses resíduos de idealismo devem ir pelos ares, confrontados com o vigoroso enriquecimento de Palocci e com as fraudes nas licitações em Campinas. Lá as fraudes se deram no setor de saneamento básico. O vice-prefeito Demétrio Vilagra (PT) teve sua prisão decretada. A coalizão que governa Campinas intitula-se um governo popular. Desviar dinheiro de saneamento básico desconstrói qualquer imagem de um governo popular.
Alguém terá de salvar Dilma do impulso de resistir, por reflexo, com a tática, até certo ponto vitoriosa, de Maluf, Sarney, Renan e Jucá. Não que o escândalo Palocci tenha o potencial de indignar a população a ponto de jogá-la em manifestações de rua. Esse processo, como já vimos, só acontece combinado com fatores econômicos. Mas é preciso salvar o governo dos próprios aliados. Se a manobra de preservação de Palocci for feita nos moldes tradicionais, o sinal para todos os outros escalões estará dado. Nada vai segurar a voracidade de quem está nisso para enriquecer.
Jornalistas amigos do governo poderão argumentar que faltava uma lei, que Palocci não pode ser culpado de uma lacuna na estrutura legal brasileira. Mas não faltam razões morais e legais para respeitar o dinheiro do saneamento. E o esquema de Campinas nem isso perdoou. Será preciso inventar outra desculpa. Essa está esgotada, como está esgotada a tendência a escapar da responsabilidade afirmando que outros fizeram a mesma coisa. Se esse argumento tivesse alguma validade, pobres das camareiras de Nova York e dos hotéis do mundo inteiro. Um precedente ilustre absolveria todos os outros.
Não basta ao governo o talento para vencer eleições consecutivas e compor uma ampla base de apoio. Quando chegar o momento e as condições necessárias forem dadas, um cantor de rock, como na Islândia, pode acampar diante do Congresso e abrir seu microfone para o público. Aí começa, como na Islândia, uma profunda reforma, que alguns chamam de revolução, mas é apenas mudança radical no modo de fazer política no País.
Essas coisas não acontecem no Brasil - é uma frase que temos na ponta da língua para terremotos, desastres nucleares, tudo o queremos manter a distância. Mas em política as placas tectônicas são similares. Às vezes se acomodam ruidosamente. A solução para a crise da multiplicação do patrimônio e o escândalo das fraudes em saneamento terá papel decisivo no desenho do futuro político do País.
A longo prazo estaremos todos mortos. Mas, e se o prazo for mais curto do que prevemos?
Jornalista
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
A implacável lógica da política brasileira (Fabiano Santos)
Imprevisibilidade quase sempre associada a uma lógica implacável, eis uma das verdades elementares da política. Vejam os casos da criação e sucesso imediato do PSD, levada a cabo por liderança sem expressão nacional; e a recente controvérsia legislativa em torno da votação do novo Código Florestal.
Não é tão difícil perceber que o novo partido conservador surge como resultado daquilo que os cientistas políticos costumam chamar de realinhamento. A centro-direita brasileira, representada pelos partidos que compuseram a coalizão de apoio à administração do presidente Fernando Henrique Cardoso, demonstra sinais visíveis de decomposição e exaustão. Boa parte do bloco deslocou-se para o centro, acomodando sua agenda e persuadindo apoios tradicionais, no sentido de aderir ao projeto governista de centro-esquerda, representado pelos oito anos de governo Lula e a bem sucedida campanha de eleição de Dilma Rousseff. A parte que ficou na oposição ou vê minguar de forma significativa seus quadros, no caso do DEM, ou, no caso do PSDB, se enreda em disputas de cúpula pelo controle das instâncias decisórias fundamentais do partido.
O surgimento do Partido Social Democrata (PSD) é revelador porque remete à implacável lógica da política em contextos de democracia representativa associada à economia de mercado. A proposição é simples: não existe opção partidária viável sem que suas lideranças estejam articuladas com as forças vivas da vida econômica. Estas, por ora, ou se encontram associadas ao projeto governista, ou não veem seus interesses representados na atual roupagem assumida pela oposição. Nesse sentido, o PSD aparece como experimento de um subconjunto das elites políticas conservadoras em busca de seus apoios e agrupamentos "naturais". "Ir" ao governo, nesse caso, não é mera capitulação ao canto de sereia governista. Trata-se de nítida tentativa de rearticulação de setores politicamente órfãos, como é exemplo típico o agribusiness, com as demais forças empresariais do país, movimento cujo sentido é exatamente o de permitir à direita política uma voz mais ativa no processo de expansão do capitalismo brasileiro.
Conflitos de cúpula afastam partidos de interesses econômicos
O caso do conflito em torno da votação do novo Código Florestal é ainda mais rico naquilo que expressa a lógica implacável da política brasileira contemporânea. O quadro é aparentemente confuso: o PCdoB, partido de esquerda, aliado histórico do PT e do governo, apresenta substitutivo que é apoiado pela oposição mais radical e setores econômicos avessos, nos símbolos e nos interesses, a tudo aquilo que a atual coalizão hegemônica vem realizando. O PT, de forma até certo ponto surpreendente, considera inaceitáveis a anistia de multas e a diminuição do tamanho das reservas legais, artigos essenciais ao relatório de Aldo Rebelo, pelo que representa em termos de acomodação dos interesses do agribusiness com as expectativas da agricultura familiar.
A essência da atuação do PCdoB é clara e evidente: preservar a soberania nacional sobre o solo pátrio, permitindo aos setores do capital e do trabalho boas condições de utilização de nossos recursos na geração de riqueza. A coalizão com os ruralistas vem daí. A rejeição do PT ao acordo, no entanto, é mais complexa e potencialmente explosiva.
O PT assume o governo em 2002 com votação parecida com a que vinha obtendo nos pleitos anteriores, acrescida de setores do capital e das classes médias descontentes com o fraco desempenho da centro-direita em final de mandato. Ao longo de seu primeiro governo e, com mais intensidade no segundo, Lula redefine a coalizão de apoio que historicamente propunha um governo petista ao país. Faz isso consolidando o apoio de segmentos expressivos do setor empresarial e nacionalizando o apoio ao trabalhismo através de políticas voltadas para a camada social excluída. Não é exagero dizer que o governo de Lula promove o encontro do PT com a questão nacional ao formular estratégia de expansão do capitalismo brasileiro em bases mais humanas e organizadas do que aquelas que observamos durante o período militar e até mesmo durante o desenvolvimentismo.
A perda da classe média, entretanto, visível nos mapas eleitorais das eleições de 2006 e 2010, não é absorvida pela cúpula partidária, localizada em São Paulo. Não há chance de vitória neste Estado sem seu apoio. Não há chance, sobretudo, de derrotar seu principal inimigo - o PSDB paulista. A questão nacional para o PT pós-Lula transforma-se unicamente na perspectiva de derrotar os tucanos em solo bandeirante. Aqui entra então o endurecimento na negociação do Código Florestal. O que vemos, na verdade, é a tentativa de resgatar para o seio do partido parcelas da classe média perdida e que dão o voto de minerva em eleitorados como o de São Paulo. Se o namoro com os verdes e com os eleitores de Marina Silva adquire agora inteligibilidade, nada mais longe dos interesses envoltos na expansão do capitalismo brasileiro e das possibilidades de aprofundamento de uma agenda trabalhista. Namoro que na ótica da esquerda nacionalista significa tão somente recepcionar uma agenda ecológica de inspiração exógena.
Dilemas e conflitos de cúpula afastam os principais partidos do cenário político atual dos reais interesses econômicos dos brasileiros. No caso da direita a doença é mais antiga e o realinhamento partidário é um experimento de solução. No caso da esquerda, seu principal partido fornece sinais visíveis de trocar o nacional pelo local, o curto pelo longo prazo. Talvez ainda não seja o caso de se prescindir da liderança lulista.
Fabiano Santos é cientista político e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
FONTE: VALOR ECONÔMICOA implacável lógica da política brasileira:: Fabiano Santos
Imprevisibilidade quase sempre associada a uma lógica implacável, eis uma das verdades elementares da política. Vejam os casos da criação e sucesso imediato do PSD, levada a cabo por liderança sem expressão nacional; e a recente controvérsia legislativa em torno da votação do novo Código Florestal.
Não é tão difícil perceber que o novo partido conservador surge como resultado daquilo que os cientistas políticos costumam chamar de realinhamento. A centro-direita brasileira, representada pelos partidos que compuseram a coalizão de apoio à administração do presidente Fernando Henrique Cardoso, demonstra sinais visíveis de decomposição e exaustão. Boa parte do bloco deslocou-se para o centro, acomodando sua agenda e persuadindo apoios tradicionais, no sentido de aderir ao projeto governista de centro-esquerda, representado pelos oito anos de governo Lula e a bem sucedida campanha de eleição de Dilma Rousseff. A parte que ficou na oposição ou vê minguar de forma significativa seus quadros, no caso do DEM, ou, no caso do PSDB, se enreda em disputas de cúpula pelo controle das instâncias decisórias fundamentais do partido.
O surgimento do Partido Social Democrata (PSD) é revelador porque remete à implacável lógica da política em contextos de democracia representativa associada à economia de mercado. A proposição é simples: não existe opção partidária viável sem que suas lideranças estejam articuladas com as forças vivas da vida econômica. Estas, por ora, ou se encontram associadas ao projeto governista, ou não veem seus interesses representados na atual roupagem assumida pela oposição. Nesse sentido, o PSD aparece como experimento de um subconjunto das elites políticas conservadoras em busca de seus apoios e agrupamentos "naturais". "Ir" ao governo, nesse caso, não é mera capitulação ao canto de sereia governista. Trata-se de nítida tentativa de rearticulação de setores politicamente órfãos, como é exemplo típico o agribusiness, com as demais forças empresariais do país, movimento cujo sentido é exatamente o de permitir à direita política uma voz mais ativa no processo de expansão do capitalismo brasileiro.
Conflitos de cúpula afastam partidos de interesses econômicos
O caso do conflito em torno da votação do novo Código Florestal é ainda mais rico naquilo que expressa a lógica implacável da política brasileira contemporânea. O quadro é aparentemente confuso: o PCdoB, partido de esquerda, aliado histórico do PT e do governo, apresenta substitutivo que é apoiado pela oposição mais radical e setores econômicos avessos, nos símbolos e nos interesses, a tudo aquilo que a atual coalizão hegemônica vem realizando. O PT, de forma até certo ponto surpreendente, considera inaceitáveis a anistia de multas e a diminuição do tamanho das reservas legais, artigos essenciais ao relatório de Aldo Rebelo, pelo que representa em termos de acomodação dos interesses do agribusiness com as expectativas da agricultura familiar.
A essência da atuação do PCdoB é clara e evidente: preservar a soberania nacional sobre o solo pátrio, permitindo aos setores do capital e do trabalho boas condições de utilização de nossos recursos na geração de riqueza. A coalizão com os ruralistas vem daí. A rejeição do PT ao acordo, no entanto, é mais complexa e potencialmente explosiva.
O PT assume o governo em 2002 com votação parecida com a que vinha obtendo nos pleitos anteriores, acrescida de setores do capital e das classes médias descontentes com o fraco desempenho da centro-direita em final de mandato. Ao longo de seu primeiro governo e, com mais intensidade no segundo, Lula redefine a coalizão de apoio que historicamente propunha um governo petista ao país. Faz isso consolidando o apoio de segmentos expressivos do setor empresarial e nacionalizando o apoio ao trabalhismo através de políticas voltadas para a camada social excluída. Não é exagero dizer que o governo de Lula promove o encontro do PT com a questão nacional ao formular estratégia de expansão do capitalismo brasileiro em bases mais humanas e organizadas do que aquelas que observamos durante o período militar e até mesmo durante o desenvolvimentismo.
A perda da classe média, entretanto, visível nos mapas eleitorais das eleições de 2006 e 2010, não é absorvida pela cúpula partidária, localizada em São Paulo. Não há chance de vitória neste Estado sem seu apoio. Não há chance, sobretudo, de derrotar seu principal inimigo - o PSDB paulista. A questão nacional para o PT pós-Lula transforma-se unicamente na perspectiva de derrotar os tucanos em solo bandeirante. Aqui entra então o endurecimento na negociação do Código Florestal. O que vemos, na verdade, é a tentativa de resgatar para o seio do partido parcelas da classe média perdida e que dão o voto de minerva em eleitorados como o de São Paulo. Se o namoro com os verdes e com os eleitores de Marina Silva adquire agora inteligibilidade, nada mais longe dos interesses envoltos na expansão do capitalismo brasileiro e das possibilidades de aprofundamento de uma agenda trabalhista. Namoro que na ótica da esquerda nacionalista significa tão somente recepcionar uma agenda ecológica de inspiração exógena.
Dilemas e conflitos de cúpula afastam os principais partidos do cenário político atual dos reais interesses econômicos dos brasileiros. No caso da direita a doença é mais antiga e o realinhamento partidário é um experimento de solução. No caso da esquerda, seu principal partido fornece sinais visíveis de trocar o nacional pelo local, o curto pelo longo prazo. Talvez ainda não seja o caso de se prescindir da liderança lulista.
Fabiano Santos é cientista político e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
Não é tão difícil perceber que o novo partido conservador surge como resultado daquilo que os cientistas políticos costumam chamar de realinhamento. A centro-direita brasileira, representada pelos partidos que compuseram a coalizão de apoio à administração do presidente Fernando Henrique Cardoso, demonstra sinais visíveis de decomposição e exaustão. Boa parte do bloco deslocou-se para o centro, acomodando sua agenda e persuadindo apoios tradicionais, no sentido de aderir ao projeto governista de centro-esquerda, representado pelos oito anos de governo Lula e a bem sucedida campanha de eleição de Dilma Rousseff. A parte que ficou na oposição ou vê minguar de forma significativa seus quadros, no caso do DEM, ou, no caso do PSDB, se enreda em disputas de cúpula pelo controle das instâncias decisórias fundamentais do partido.
O surgimento do Partido Social Democrata (PSD) é revelador porque remete à implacável lógica da política em contextos de democracia representativa associada à economia de mercado. A proposição é simples: não existe opção partidária viável sem que suas lideranças estejam articuladas com as forças vivas da vida econômica. Estas, por ora, ou se encontram associadas ao projeto governista, ou não veem seus interesses representados na atual roupagem assumida pela oposição. Nesse sentido, o PSD aparece como experimento de um subconjunto das elites políticas conservadoras em busca de seus apoios e agrupamentos "naturais". "Ir" ao governo, nesse caso, não é mera capitulação ao canto de sereia governista. Trata-se de nítida tentativa de rearticulação de setores politicamente órfãos, como é exemplo típico o agribusiness, com as demais forças empresariais do país, movimento cujo sentido é exatamente o de permitir à direita política uma voz mais ativa no processo de expansão do capitalismo brasileiro.
Conflitos de cúpula afastam partidos de interesses econômicos
O caso do conflito em torno da votação do novo Código Florestal é ainda mais rico naquilo que expressa a lógica implacável da política brasileira contemporânea. O quadro é aparentemente confuso: o PCdoB, partido de esquerda, aliado histórico do PT e do governo, apresenta substitutivo que é apoiado pela oposição mais radical e setores econômicos avessos, nos símbolos e nos interesses, a tudo aquilo que a atual coalizão hegemônica vem realizando. O PT, de forma até certo ponto surpreendente, considera inaceitáveis a anistia de multas e a diminuição do tamanho das reservas legais, artigos essenciais ao relatório de Aldo Rebelo, pelo que representa em termos de acomodação dos interesses do agribusiness com as expectativas da agricultura familiar.
A essência da atuação do PCdoB é clara e evidente: preservar a soberania nacional sobre o solo pátrio, permitindo aos setores do capital e do trabalho boas condições de utilização de nossos recursos na geração de riqueza. A coalizão com os ruralistas vem daí. A rejeição do PT ao acordo, no entanto, é mais complexa e potencialmente explosiva.
O PT assume o governo em 2002 com votação parecida com a que vinha obtendo nos pleitos anteriores, acrescida de setores do capital e das classes médias descontentes com o fraco desempenho da centro-direita em final de mandato. Ao longo de seu primeiro governo e, com mais intensidade no segundo, Lula redefine a coalizão de apoio que historicamente propunha um governo petista ao país. Faz isso consolidando o apoio de segmentos expressivos do setor empresarial e nacionalizando o apoio ao trabalhismo através de políticas voltadas para a camada social excluída. Não é exagero dizer que o governo de Lula promove o encontro do PT com a questão nacional ao formular estratégia de expansão do capitalismo brasileiro em bases mais humanas e organizadas do que aquelas que observamos durante o período militar e até mesmo durante o desenvolvimentismo.
A perda da classe média, entretanto, visível nos mapas eleitorais das eleições de 2006 e 2010, não é absorvida pela cúpula partidária, localizada em São Paulo. Não há chance de vitória neste Estado sem seu apoio. Não há chance, sobretudo, de derrotar seu principal inimigo - o PSDB paulista. A questão nacional para o PT pós-Lula transforma-se unicamente na perspectiva de derrotar os tucanos em solo bandeirante. Aqui entra então o endurecimento na negociação do Código Florestal. O que vemos, na verdade, é a tentativa de resgatar para o seio do partido parcelas da classe média perdida e que dão o voto de minerva em eleitorados como o de São Paulo. Se o namoro com os verdes e com os eleitores de Marina Silva adquire agora inteligibilidade, nada mais longe dos interesses envoltos na expansão do capitalismo brasileiro e das possibilidades de aprofundamento de uma agenda trabalhista. Namoro que na ótica da esquerda nacionalista significa tão somente recepcionar uma agenda ecológica de inspiração exógena.
Dilemas e conflitos de cúpula afastam os principais partidos do cenário político atual dos reais interesses econômicos dos brasileiros. No caso da direita a doença é mais antiga e o realinhamento partidário é um experimento de solução. No caso da esquerda, seu principal partido fornece sinais visíveis de trocar o nacional pelo local, o curto pelo longo prazo. Talvez ainda não seja o caso de se prescindir da liderança lulista.
Fabiano Santos é cientista político e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
FONTE: VALOR ECONÔMICOA implacável lógica da política brasileira:: Fabiano Santos
Imprevisibilidade quase sempre associada a uma lógica implacável, eis uma das verdades elementares da política. Vejam os casos da criação e sucesso imediato do PSD, levada a cabo por liderança sem expressão nacional; e a recente controvérsia legislativa em torno da votação do novo Código Florestal.
Não é tão difícil perceber que o novo partido conservador surge como resultado daquilo que os cientistas políticos costumam chamar de realinhamento. A centro-direita brasileira, representada pelos partidos que compuseram a coalizão de apoio à administração do presidente Fernando Henrique Cardoso, demonstra sinais visíveis de decomposição e exaustão. Boa parte do bloco deslocou-se para o centro, acomodando sua agenda e persuadindo apoios tradicionais, no sentido de aderir ao projeto governista de centro-esquerda, representado pelos oito anos de governo Lula e a bem sucedida campanha de eleição de Dilma Rousseff. A parte que ficou na oposição ou vê minguar de forma significativa seus quadros, no caso do DEM, ou, no caso do PSDB, se enreda em disputas de cúpula pelo controle das instâncias decisórias fundamentais do partido.
O surgimento do Partido Social Democrata (PSD) é revelador porque remete à implacável lógica da política em contextos de democracia representativa associada à economia de mercado. A proposição é simples: não existe opção partidária viável sem que suas lideranças estejam articuladas com as forças vivas da vida econômica. Estas, por ora, ou se encontram associadas ao projeto governista, ou não veem seus interesses representados na atual roupagem assumida pela oposição. Nesse sentido, o PSD aparece como experimento de um subconjunto das elites políticas conservadoras em busca de seus apoios e agrupamentos "naturais". "Ir" ao governo, nesse caso, não é mera capitulação ao canto de sereia governista. Trata-se de nítida tentativa de rearticulação de setores politicamente órfãos, como é exemplo típico o agribusiness, com as demais forças empresariais do país, movimento cujo sentido é exatamente o de permitir à direita política uma voz mais ativa no processo de expansão do capitalismo brasileiro.
Conflitos de cúpula afastam partidos de interesses econômicos
O caso do conflito em torno da votação do novo Código Florestal é ainda mais rico naquilo que expressa a lógica implacável da política brasileira contemporânea. O quadro é aparentemente confuso: o PCdoB, partido de esquerda, aliado histórico do PT e do governo, apresenta substitutivo que é apoiado pela oposição mais radical e setores econômicos avessos, nos símbolos e nos interesses, a tudo aquilo que a atual coalizão hegemônica vem realizando. O PT, de forma até certo ponto surpreendente, considera inaceitáveis a anistia de multas e a diminuição do tamanho das reservas legais, artigos essenciais ao relatório de Aldo Rebelo, pelo que representa em termos de acomodação dos interesses do agribusiness com as expectativas da agricultura familiar.
A essência da atuação do PCdoB é clara e evidente: preservar a soberania nacional sobre o solo pátrio, permitindo aos setores do capital e do trabalho boas condições de utilização de nossos recursos na geração de riqueza. A coalizão com os ruralistas vem daí. A rejeição do PT ao acordo, no entanto, é mais complexa e potencialmente explosiva.
O PT assume o governo em 2002 com votação parecida com a que vinha obtendo nos pleitos anteriores, acrescida de setores do capital e das classes médias descontentes com o fraco desempenho da centro-direita em final de mandato. Ao longo de seu primeiro governo e, com mais intensidade no segundo, Lula redefine a coalizão de apoio que historicamente propunha um governo petista ao país. Faz isso consolidando o apoio de segmentos expressivos do setor empresarial e nacionalizando o apoio ao trabalhismo através de políticas voltadas para a camada social excluída. Não é exagero dizer que o governo de Lula promove o encontro do PT com a questão nacional ao formular estratégia de expansão do capitalismo brasileiro em bases mais humanas e organizadas do que aquelas que observamos durante o período militar e até mesmo durante o desenvolvimentismo.
A perda da classe média, entretanto, visível nos mapas eleitorais das eleições de 2006 e 2010, não é absorvida pela cúpula partidária, localizada em São Paulo. Não há chance de vitória neste Estado sem seu apoio. Não há chance, sobretudo, de derrotar seu principal inimigo - o PSDB paulista. A questão nacional para o PT pós-Lula transforma-se unicamente na perspectiva de derrotar os tucanos em solo bandeirante. Aqui entra então o endurecimento na negociação do Código Florestal. O que vemos, na verdade, é a tentativa de resgatar para o seio do partido parcelas da classe média perdida e que dão o voto de minerva em eleitorados como o de São Paulo. Se o namoro com os verdes e com os eleitores de Marina Silva adquire agora inteligibilidade, nada mais longe dos interesses envoltos na expansão do capitalismo brasileiro e das possibilidades de aprofundamento de uma agenda trabalhista. Namoro que na ótica da esquerda nacionalista significa tão somente recepcionar uma agenda ecológica de inspiração exógena.
Dilemas e conflitos de cúpula afastam os principais partidos do cenário político atual dos reais interesses econômicos dos brasileiros. No caso da direita a doença é mais antiga e o realinhamento partidário é um experimento de solução. No caso da esquerda, seu principal partido fornece sinais visíveis de trocar o nacional pelo local, o curto pelo longo prazo. Talvez ainda não seja o caso de se prescindir da liderança lulista.
Fabiano Santos é cientista político e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
segunda-feira, 23 de maio de 2011
Palocci e a nova casta dirigente (Rudá Ricci)
Tempos atrás, Chico de Oliveira sugeriu que se formava no Brasil um agrupamento social Nov que governava o país. Para o autor, os fundos constitucionais e de pensão deram origem a uma nova classe social formada basicamente por ex-dirigentes sindicais e ex-intelectuais que se encastelavam na administração de um poderoso capital de investimento. Em suas palavras:
"Criou-se no Brasil uma nova casta ou uma nova classe social. Esta casta ou classe social é, teoricamente, formada, de um lado, por ex-sindicalistas, e de outro por ex-intelectuais, e esse conjunto dirigiu as privatizações das grandes empresas estatais nos últimos anos, sobretudo nos oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso. Por isso é difícil se fazer uma oposição ao PT".
Não se trata, evidentemente, de uma nova classe social. Mas a possibilidade de uma nova casta é até razoável e instigante. Lembremos que o conceito de estamento, de onde se originam as castas, relaciona-se com prestígio social conferido pela sociedade. A sociedade legitima distinção a partir do nascimento. Dificilmente há mobilidade de um membro de um estamento para outro. O mais comum é queda, em virtude de quebra de comportamento esperado.
As castas são ainda mais rígidas em seu comportamento e é comum que os casamentos ocorram somente entre pares. Como se percebe, se adotamos o rigor conceitual até mesmo este conceito de casta parece exagerado para retratar a estrutura dirigente que se destaca no bloco no poder montado a partir do lulismo. Não há, evidentemente, uma distinção cultural que se origina na sociedade e que possui lastro histórico, que legitima este segmento dirigente aludido por Chico de Oliveira. Antes, trata-se de uma escolha de governo ou de uma fração dirigente do partido que governa.
Assim, embora com menos charme que a proposição teórica de Chico de Oliveira, estamos citando uma elite ou um grupo dirigente de Estado não oriundo dos quadros de carreira da burocracia estatal. Um grupo dirigente que se forja como gestor de mercado e que ideologicamente assume como foco o resultado esperado da renda que seus investimentos devem gerar. Ao focalizar a eficácia e eficiência das suas ações, torna-se conservador, moderado e especulador. A política desvia-se para o mundo dos negócios e mescla-se de tal maneira que reedita a confusa lógica do lusco-fusco entre as dimensões privadas e públicas em nosso país.
Um descaminho dos mais instigantes para um analista social. Porque esta elite dirigente se apóia na conciliação de interesses e na conquista dos setores sociais desorganizados de nossa sociedade. Assim, sua legitimação se dá, de um lado, pela escolha política do bloco no poder que dirige o Estado que, por sua vez, é avalista do neo-fordismo tupiniquim. Um fordismo que se sustenta num Estado-demiurgo que abre as comportas dos recursos do BNDES para financiar o alto empresariado e transfere renda entre assalariados (porque a adoção de tributação progressiva romperia com a conciliação de interesses) e amplia consideravelmente o mercado consumidor nacional.
Ora, esta era a lógica sugerida por Henry Ford para catapultar a economia norte-americana e que foi complementada com toques keynesianos a partir do New Deal. Aliás, o keynesianismo adotado pelo New Deal parece ser uma abstração teórica, já que sua origem não foi tão intelectualizada. Havia um lastro nítido em relação às práticas já existentes em New York. O New Deal propôs um rol de políticas de promoção social e fomento ao desenvolvimento: Emergency Banking Act (fundos públicos para bancos privados em crise), Federal Deposit Insurance Corporation, Securities Act (regulando o mercado de ações), o Civil Works Administration (programs de obras públicas), o Agricultural Adjustment Act e o National Indstrial Recovery Act (para citar os mais conhecidos). A rede de assistência social (auxílio imediato, nos moldes do Bolsa Família) foi baseada no Federal Emergency Relief Act e o importante Civilian Conservation Corps (CCC). O CCC tentou diminuir a erosão do solo e gerar ocupação para jovens desempregados. Este programa foi responsável pelo plantio de 2 bilhões de árvores (200 milhões em solos recuperados), alfabetizou 35 mil jovens e profissionalizou outros 3 milhões.
Em 1935, uma pesquisa nacional organizada pela Fortune revelava que 90% dos americanos achavam que o governo federal deveria garantir trabalho aos necessitados. Algo assim parece estar na base desta nova elite dirigente da qual Antonio Palocci parece ser uma espécie de garantidor. A trajetória do ministro compõe este cenário de transformação. Filho de funcionário público e costureira, o caçula da família formou-se médico sanitarista pela USP de Ribeirão Preto. Como liderança estudantil, fez parte dos quadros da organização Liberdade e Luta, a LIBELU, vinculada à Quarta Internacional trotskista. Em 1988 Palocci foi eleito o primeiro vereador petista de Ribeirão Preto. Não terminou o mandato. Em 1990, candidatou-se a deputado estadual e venceu. Mas também não terminou o mandato porque se candidatou, em 1992, prefeito de sua cidade. E venceu. Depois, elegeu-se deputado federal.
Conheci Palocci em 1990, quando eu coordenava a campanha de Plínio de Arruda Sampaio para o governo paulista. Lembro de uma viagem que fiz com Plínio e Eduardo Suplicy pelo interior de São Paulo. A parada principal era Ribeirão Preto. Palocci era vereador. O que lembro daquela época era de uma pessoa muito quieta, atento ouvinte. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Porque aquele silêncio não parecia um mero estudo. Parecia dizer que apenas tolerava, mas não apoiava.
Minha desconfiança vinha de algo que ocorreu pouco antes. No final de 1980, parte das lideranças da LIBELU forjaram um acordo com uma ala da corrente majoritária do PT paulista, a famosa Articulação. Ingressaram por cima na cúpula do partido na seção paulista. Lembremos que a LIBELU tinha quadros de destaque, bons articuladores e polemistas, como Luiz Gushiken, Tita Dias, Reinaldo Azevedo, Laura Capriglione, Paulo Moreira Leite, Eugênio Bucci, Luis Favre, José Arbex Jr., Clara Ant, Demétrio Magnoli, Glauco Arbix e Lúcia Pinheiro. O mais interessante é que no mesmo momento em que se fazia este acordo de ampliação da base da Articulação (e incorporação de parte significativa da LIBELU à corrente majoritária que ascendia ao comando da seção paulista), parte da direção da Articulação desfechava uma agressiva campanha de enquadramento da corrente de Genoíno e da então Convergência Socialista (mais tarde, PSTU).
Minha desconfiança vinha daí. Porque este acordo redefinia a então lógica de construção das direções partidárias. Acordos entre correntes era previsível, mas diversionismo não era uma prática comum no jogo interno do PT, assim como acordos envolvendo cargos dirigentes. Lembremos que era fundamental que os dirigentes petistas tivessem sido provados nas ruas e avaliados por uma espécie de tribunal popular que se constituía nas convenções do partido.
Quantos candidatos a deputado foram rejeitados publicamente nesses eventos do PT! Até o final dos anos 1980 a democracia direta e o assembleísmo definiam a lógica de escolhas e deliberações do partido. O que exigia muitas reuniões, motivo de chacota de lideranças de outros partidos. Aliás, um dos momentos mais hilários de minha passagem pelo governo de Luiza Erundina foi quando ouvi, numa reunião em um bairro, uma senhora afirmar que os petistas faziam reunião sem parar e tascou: “vocês fazem reunião para discutir a anterior e preparar a próxima”. Contive uma sonora gargalhada. O fato é que as reuniões eram fundamentais para selar acordos entre dezenas de mini-grupos que se formavam no interior das correntes partidárias, o que conferia um poder significativo às lideranças médias e pequenas que nem sempre tinham voto, mas faziam muito barulho nas reuniões e convenções partidárias.
Mas, até então, não era comum na disputa entre petistas se fazer acordo que não fosse público e muito menos que este acordo significasse algo mais que voto. Porque a partir deste acordo entre Articulação e LIBELU (ou parte desta organização) o ataque às outras organizações de esquerda foi implacável. O discurso oficial era para que o partido se consolidasse e terminasse de vez com a federação de organizações/partidos que se utilizavam da sigla para eleger seus dirigentes. A intenção nobre encobria outros objetivos: o de enquadramento geral e fortalecimento de uma cúpula dirigente que solaparia a metodologia de tomada de decisões estratégicas do partido.
Palocci, enfim, me deixou intrigado com aquele silêncio e sorriso tímido e contido naquela fria manhã de 1990. Era uma forma mais sutil que parecia dizer o que ouvi, pouco antes, de Glauco Arbix, numa reunião com a executiva estadual do PT para preparar a campanha de Plínio de Arruda Sampaio. Glauco disse, cuspindo fogo, para nós (eu, Plínio Sampaio e Plinio Morais): “vocês sabem que Plínio não é a candidatura dos nossos sonhos. Mas como ganharam a convenção, fazer o que?”
Palocci sempre foi mais sutil. Um sorriso tímido e o silêncio. Mas foi um artífice importante da implantação do realismo político no interior do petismo. E de uma lógica que me lembra em muito um conceito criado por Fernando Henrique Cardoso: o dos anéis burocráticos. Na teoria de FHC, os anéis articulavam interesses empresariais com setores da tecnocracia estatal, esvaziando a prática política típica (de acordos e negociações). Os anéis formavam uma triagem, uma lógica de decisão própria, quase que exclusivamente privada (entre tecnocratas e empresários). Talvez era esta a referência de Chico de Oliveira quando afirmou que se forjava uma nova classe social a partir do governo Lula. Na verdade, não se trata de uma nova classe. E nem é algo tão novo. É algo que vem do final dos anos 1980. Algo como a história do ovo da serpente.
Rudá Ricci é sociólogo
"Criou-se no Brasil uma nova casta ou uma nova classe social. Esta casta ou classe social é, teoricamente, formada, de um lado, por ex-sindicalistas, e de outro por ex-intelectuais, e esse conjunto dirigiu as privatizações das grandes empresas estatais nos últimos anos, sobretudo nos oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso. Por isso é difícil se fazer uma oposição ao PT".
Não se trata, evidentemente, de uma nova classe social. Mas a possibilidade de uma nova casta é até razoável e instigante. Lembremos que o conceito de estamento, de onde se originam as castas, relaciona-se com prestígio social conferido pela sociedade. A sociedade legitima distinção a partir do nascimento. Dificilmente há mobilidade de um membro de um estamento para outro. O mais comum é queda, em virtude de quebra de comportamento esperado.
As castas são ainda mais rígidas em seu comportamento e é comum que os casamentos ocorram somente entre pares. Como se percebe, se adotamos o rigor conceitual até mesmo este conceito de casta parece exagerado para retratar a estrutura dirigente que se destaca no bloco no poder montado a partir do lulismo. Não há, evidentemente, uma distinção cultural que se origina na sociedade e que possui lastro histórico, que legitima este segmento dirigente aludido por Chico de Oliveira. Antes, trata-se de uma escolha de governo ou de uma fração dirigente do partido que governa.
Assim, embora com menos charme que a proposição teórica de Chico de Oliveira, estamos citando uma elite ou um grupo dirigente de Estado não oriundo dos quadros de carreira da burocracia estatal. Um grupo dirigente que se forja como gestor de mercado e que ideologicamente assume como foco o resultado esperado da renda que seus investimentos devem gerar. Ao focalizar a eficácia e eficiência das suas ações, torna-se conservador, moderado e especulador. A política desvia-se para o mundo dos negócios e mescla-se de tal maneira que reedita a confusa lógica do lusco-fusco entre as dimensões privadas e públicas em nosso país.
Um descaminho dos mais instigantes para um analista social. Porque esta elite dirigente se apóia na conciliação de interesses e na conquista dos setores sociais desorganizados de nossa sociedade. Assim, sua legitimação se dá, de um lado, pela escolha política do bloco no poder que dirige o Estado que, por sua vez, é avalista do neo-fordismo tupiniquim. Um fordismo que se sustenta num Estado-demiurgo que abre as comportas dos recursos do BNDES para financiar o alto empresariado e transfere renda entre assalariados (porque a adoção de tributação progressiva romperia com a conciliação de interesses) e amplia consideravelmente o mercado consumidor nacional.
Ora, esta era a lógica sugerida por Henry Ford para catapultar a economia norte-americana e que foi complementada com toques keynesianos a partir do New Deal. Aliás, o keynesianismo adotado pelo New Deal parece ser uma abstração teórica, já que sua origem não foi tão intelectualizada. Havia um lastro nítido em relação às práticas já existentes em New York. O New Deal propôs um rol de políticas de promoção social e fomento ao desenvolvimento: Emergency Banking Act (fundos públicos para bancos privados em crise), Federal Deposit Insurance Corporation, Securities Act (regulando o mercado de ações), o Civil Works Administration (programs de obras públicas), o Agricultural Adjustment Act e o National Indstrial Recovery Act (para citar os mais conhecidos). A rede de assistência social (auxílio imediato, nos moldes do Bolsa Família) foi baseada no Federal Emergency Relief Act e o importante Civilian Conservation Corps (CCC). O CCC tentou diminuir a erosão do solo e gerar ocupação para jovens desempregados. Este programa foi responsável pelo plantio de 2 bilhões de árvores (200 milhões em solos recuperados), alfabetizou 35 mil jovens e profissionalizou outros 3 milhões.
Em 1935, uma pesquisa nacional organizada pela Fortune revelava que 90% dos americanos achavam que o governo federal deveria garantir trabalho aos necessitados. Algo assim parece estar na base desta nova elite dirigente da qual Antonio Palocci parece ser uma espécie de garantidor. A trajetória do ministro compõe este cenário de transformação. Filho de funcionário público e costureira, o caçula da família formou-se médico sanitarista pela USP de Ribeirão Preto. Como liderança estudantil, fez parte dos quadros da organização Liberdade e Luta, a LIBELU, vinculada à Quarta Internacional trotskista. Em 1988 Palocci foi eleito o primeiro vereador petista de Ribeirão Preto. Não terminou o mandato. Em 1990, candidatou-se a deputado estadual e venceu. Mas também não terminou o mandato porque se candidatou, em 1992, prefeito de sua cidade. E venceu. Depois, elegeu-se deputado federal.
Conheci Palocci em 1990, quando eu coordenava a campanha de Plínio de Arruda Sampaio para o governo paulista. Lembro de uma viagem que fiz com Plínio e Eduardo Suplicy pelo interior de São Paulo. A parada principal era Ribeirão Preto. Palocci era vereador. O que lembro daquela época era de uma pessoa muito quieta, atento ouvinte. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Porque aquele silêncio não parecia um mero estudo. Parecia dizer que apenas tolerava, mas não apoiava.
Minha desconfiança vinha de algo que ocorreu pouco antes. No final de 1980, parte das lideranças da LIBELU forjaram um acordo com uma ala da corrente majoritária do PT paulista, a famosa Articulação. Ingressaram por cima na cúpula do partido na seção paulista. Lembremos que a LIBELU tinha quadros de destaque, bons articuladores e polemistas, como Luiz Gushiken, Tita Dias, Reinaldo Azevedo, Laura Capriglione, Paulo Moreira Leite, Eugênio Bucci, Luis Favre, José Arbex Jr., Clara Ant, Demétrio Magnoli, Glauco Arbix e Lúcia Pinheiro. O mais interessante é que no mesmo momento em que se fazia este acordo de ampliação da base da Articulação (e incorporação de parte significativa da LIBELU à corrente majoritária que ascendia ao comando da seção paulista), parte da direção da Articulação desfechava uma agressiva campanha de enquadramento da corrente de Genoíno e da então Convergência Socialista (mais tarde, PSTU).
Minha desconfiança vinha daí. Porque este acordo redefinia a então lógica de construção das direções partidárias. Acordos entre correntes era previsível, mas diversionismo não era uma prática comum no jogo interno do PT, assim como acordos envolvendo cargos dirigentes. Lembremos que era fundamental que os dirigentes petistas tivessem sido provados nas ruas e avaliados por uma espécie de tribunal popular que se constituía nas convenções do partido.
Quantos candidatos a deputado foram rejeitados publicamente nesses eventos do PT! Até o final dos anos 1980 a democracia direta e o assembleísmo definiam a lógica de escolhas e deliberações do partido. O que exigia muitas reuniões, motivo de chacota de lideranças de outros partidos. Aliás, um dos momentos mais hilários de minha passagem pelo governo de Luiza Erundina foi quando ouvi, numa reunião em um bairro, uma senhora afirmar que os petistas faziam reunião sem parar e tascou: “vocês fazem reunião para discutir a anterior e preparar a próxima”. Contive uma sonora gargalhada. O fato é que as reuniões eram fundamentais para selar acordos entre dezenas de mini-grupos que se formavam no interior das correntes partidárias, o que conferia um poder significativo às lideranças médias e pequenas que nem sempre tinham voto, mas faziam muito barulho nas reuniões e convenções partidárias.
Mas, até então, não era comum na disputa entre petistas se fazer acordo que não fosse público e muito menos que este acordo significasse algo mais que voto. Porque a partir deste acordo entre Articulação e LIBELU (ou parte desta organização) o ataque às outras organizações de esquerda foi implacável. O discurso oficial era para que o partido se consolidasse e terminasse de vez com a federação de organizações/partidos que se utilizavam da sigla para eleger seus dirigentes. A intenção nobre encobria outros objetivos: o de enquadramento geral e fortalecimento de uma cúpula dirigente que solaparia a metodologia de tomada de decisões estratégicas do partido.
Palocci, enfim, me deixou intrigado com aquele silêncio e sorriso tímido e contido naquela fria manhã de 1990. Era uma forma mais sutil que parecia dizer o que ouvi, pouco antes, de Glauco Arbix, numa reunião com a executiva estadual do PT para preparar a campanha de Plínio de Arruda Sampaio. Glauco disse, cuspindo fogo, para nós (eu, Plínio Sampaio e Plinio Morais): “vocês sabem que Plínio não é a candidatura dos nossos sonhos. Mas como ganharam a convenção, fazer o que?”
Palocci sempre foi mais sutil. Um sorriso tímido e o silêncio. Mas foi um artífice importante da implantação do realismo político no interior do petismo. E de uma lógica que me lembra em muito um conceito criado por Fernando Henrique Cardoso: o dos anéis burocráticos. Na teoria de FHC, os anéis articulavam interesses empresariais com setores da tecnocracia estatal, esvaziando a prática política típica (de acordos e negociações). Os anéis formavam uma triagem, uma lógica de decisão própria, quase que exclusivamente privada (entre tecnocratas e empresários). Talvez era esta a referência de Chico de Oliveira quando afirmou que se forjava uma nova classe social a partir do governo Lula. Na verdade, não se trata de uma nova classe. E nem é algo tão novo. É algo que vem do final dos anos 1980. Algo como a história do ovo da serpente.
Rudá Ricci é sociólogo
Carta Aberta à Presidente da República e ao Congresso Nacional
Dez ex-ministros vão a Dilma contra mudanças no Código
Carta Aberta à Presidente da República e ao Congresso Nacional
Os signatários desta Carta Aberta, ao exercerem as funções de Ministros de Estado ou de Secretário Especial do Meio Ambiente, tiveram a oportunidade e a responsabilidade de promover, no âmbito do Governo Federal, e em prol das futuras gerações, medidas orientadas para a proteção do patrimônio ambiental do Brasil, e com destaque para suas florestas. Embora com recursos humanos e financeiros limitados, foram obtidos resultados expressivos graças ao apoio decisivo proporcionado pela sociedade, de todos os presidentes da Republica que se sucederam na condução do país e do Congresso Nacional. Mencione-se como exemplos: a Política Nacional do Meio Ambiente (1981), o artigo 225 da Constituição Federal de 1988, a Lei de Gestão de Recursos Hídricos (97), Lei de Crimes e Infrações contra o Meio Ambiente (98), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (2000), a Lei de Informações Ambientais (2003), a Lei de Gestão de Florestas Públicas (2006), a Lei da Mata Atlântica (2006), a Lei de Mudanças Climáticas (2009) e a Lei de Gestão de Resíduos Sólidos (2010).
Antes que o mundo despertasse para a importância das florestas, o Brasil foi pioneiro em estabelecer, por lei, a necessidade de sua conservação, mais adiante confirmada no texto da Constituição Federal e sucessivas regulamentações. Essas providências asseguraram a proteção e a prática do uso sustentável do capital natural brasileiro, a partir do Código Florestal de 1965. Marco fundante e inspiração nesse particular, o Código representa desde então a base institucional mais relevante para a proteção das florestas e demais formas de vegetação nativa brasileiras, da biodiversidade a elas associada, dos recursos hídricos que as protegem e dos serviços ambientais por elas prestados.
O processo de construção do aparato legal transcorreu com transparência e a decisiva participação da sociedade, em todas as suas instâncias. E nesse sentido, é importante destacar que o CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente já se constituia em excepcional fórum de decisão participativa, antecipando tendências que viriam a caracterizar a administração pública, no Brasil, e mais tarde em outros países. Graças a essa trajetória de responsabilidade ambiental, o Brasil adquiriu legitimidade para se tornar um dos participantes mais destacados nos foros internacionais sobre meio ambiente, além de hoje dispor de um patrimônio essencial para sua inserção competitiva no século XXI.
Para honrar e dar continuidade a essa trajetória de progresso, cabe agora aos líderes políticos desta nação dar o próximo passo. A fim de que o Código Florestal possa cumprir sua função de proteger os recursos naturais, é urgente instituir uma nova geração de políticas públicas. A política agrícola pode se beneficiar dos serviços oferecidos pelas florestas e alcançar patamares de qualidade, produtividade e competitividade ainda mais avançados.
Tal processo, no entanto, deve ser desenvolvido com responsabilidade, transparência e efetiva participação de todos os setores da sociedade, a fim de consolidar as conquistas obtidas. Foram muitos os êxitos e anos de trabalho de que se orgulham os brasileiros, e portanto tais progressos não devem estar expostos aos riscos de eventuais mudança abruptas, sem a necessária avaliação prévia e o conveniente debate. Por outro lado, não consideramos recomendável ou oportuno retirar do CONAMA quaisquer de suas competências regulatórias no momento em que o país é regido pelo principio da democracia participativa, consagrado na nossa Carta Magna.
Não vemos, portanto, na proposta de mudanças do Código Florestal aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados em junho de 2010, nem nas versões posteriormente circuladas, coerência com nosso processo histórico, marcado por avanços na busca da consolidação do desenvolvimento sustentável. Ao contrário, se aprovada qualquer uma dessas versões, o país agirá na contramão de nossa história e em detrimento de nosso capital natural.
Não podemos, tampouco, ignorar o chamado que a comunidade científica brasileira dirigiu recentemente à Nação, assim como as sucessivas manifestações de empresários, representantes da agricultura familiar, da juventude e de tantos outros segmentos da sociedade. Foram suficientes as expectativas de enfraquecimento do Código Florestal para reavivar tendências preocupantes de retomada do desmatamento na Amazônia, conforme demonstram de forma inequívoca os dados recentemente divulgados pelo INPE.
Entendemos, Senhora Presidente e Senhores congressistas, que a história reservou ao nosso tempo e, sobretudo, àqueles que ocupam os mais importantes postos de liderança em nosso país, não só a preservação desse precioso legado de proteção ambiental, mas, sobretudo, a oportunidade de liderar um grande esforço coletivo para que o Brasil prossiga em seu caminho de nação que se desenvolve com justiça social e sustentabilidade ambiental.
O esforço global para enfrentar a crise climática precisa do ativo engajamento do Brasil. A decisão de assumir metas de redução da emissão dos gases de efeito estufa, anunciadas em Copenhagen, foi um desafio ousado e paradigmático que o Brasil aceitou. No próximo ano, sediaremos a Conferencia das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, e o Brasil poderá continuar liderando pelo exemplo e inspirando os demais países a avançar com a urgência e a responsabilidade que a realidade nos impõe.
É por compreender a importância do papel na luta por um mundo melhor para todos e por carregar esta responsabilidade histórica que nos sentimos hoje na obrigação de dirigirmos a Vossa Excelência e ao Congresso Nacional nosso pedido de providências. Em conjunto com uma Política Nacional de Florestas, o Código deve ser atualizado para facilitar e viabilizar os necessários esforços de restauração e de uso das florestas, além que de sua conservação. É necessário apoiar a restauração, não dispensá-la. O Código pode e deve criar um arcabouço para os incentivos necessários para tanto. O próprio CONAMA poderia providenciar a oportunidade para que tais assuntos sejam incorporados com a devida participação dos estados, da sociedade civil e do mundo empresarial. De nossa parte, nos colocamos à disposição para contribuir a este processo e confiamos que sejam evitados quaisquer retrocessos nesta longa e desafiadora jornada.
Brasília, 23 de maio de 2011
Carlos Minc (2008-2010)
Marina Silva (2003-2008)
José Carlos Carvalho (2002-2003)
José Sarney Filho (1999-2002)
Gustavo Krause (1995-1999)
Henrique Brandão Cavalcanti (1994-1995)
Rubens Ricupero (1993-1994)
Fernando Coutinho Jorge (1992-1993)
José Goldemberg (1992)
Paulo Nogueira Neto (1973-1985)
Carta Aberta à Presidente da República e ao Congresso Nacional
Os signatários desta Carta Aberta, ao exercerem as funções de Ministros de Estado ou de Secretário Especial do Meio Ambiente, tiveram a oportunidade e a responsabilidade de promover, no âmbito do Governo Federal, e em prol das futuras gerações, medidas orientadas para a proteção do patrimônio ambiental do Brasil, e com destaque para suas florestas. Embora com recursos humanos e financeiros limitados, foram obtidos resultados expressivos graças ao apoio decisivo proporcionado pela sociedade, de todos os presidentes da Republica que se sucederam na condução do país e do Congresso Nacional. Mencione-se como exemplos: a Política Nacional do Meio Ambiente (1981), o artigo 225 da Constituição Federal de 1988, a Lei de Gestão de Recursos Hídricos (97), Lei de Crimes e Infrações contra o Meio Ambiente (98), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (2000), a Lei de Informações Ambientais (2003), a Lei de Gestão de Florestas Públicas (2006), a Lei da Mata Atlântica (2006), a Lei de Mudanças Climáticas (2009) e a Lei de Gestão de Resíduos Sólidos (2010).
Antes que o mundo despertasse para a importância das florestas, o Brasil foi pioneiro em estabelecer, por lei, a necessidade de sua conservação, mais adiante confirmada no texto da Constituição Federal e sucessivas regulamentações. Essas providências asseguraram a proteção e a prática do uso sustentável do capital natural brasileiro, a partir do Código Florestal de 1965. Marco fundante e inspiração nesse particular, o Código representa desde então a base institucional mais relevante para a proteção das florestas e demais formas de vegetação nativa brasileiras, da biodiversidade a elas associada, dos recursos hídricos que as protegem e dos serviços ambientais por elas prestados.
O processo de construção do aparato legal transcorreu com transparência e a decisiva participação da sociedade, em todas as suas instâncias. E nesse sentido, é importante destacar que o CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente já se constituia em excepcional fórum de decisão participativa, antecipando tendências que viriam a caracterizar a administração pública, no Brasil, e mais tarde em outros países. Graças a essa trajetória de responsabilidade ambiental, o Brasil adquiriu legitimidade para se tornar um dos participantes mais destacados nos foros internacionais sobre meio ambiente, além de hoje dispor de um patrimônio essencial para sua inserção competitiva no século XXI.
Para honrar e dar continuidade a essa trajetória de progresso, cabe agora aos líderes políticos desta nação dar o próximo passo. A fim de que o Código Florestal possa cumprir sua função de proteger os recursos naturais, é urgente instituir uma nova geração de políticas públicas. A política agrícola pode se beneficiar dos serviços oferecidos pelas florestas e alcançar patamares de qualidade, produtividade e competitividade ainda mais avançados.
Tal processo, no entanto, deve ser desenvolvido com responsabilidade, transparência e efetiva participação de todos os setores da sociedade, a fim de consolidar as conquistas obtidas. Foram muitos os êxitos e anos de trabalho de que se orgulham os brasileiros, e portanto tais progressos não devem estar expostos aos riscos de eventuais mudança abruptas, sem a necessária avaliação prévia e o conveniente debate. Por outro lado, não consideramos recomendável ou oportuno retirar do CONAMA quaisquer de suas competências regulatórias no momento em que o país é regido pelo principio da democracia participativa, consagrado na nossa Carta Magna.
Não vemos, portanto, na proposta de mudanças do Código Florestal aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados em junho de 2010, nem nas versões posteriormente circuladas, coerência com nosso processo histórico, marcado por avanços na busca da consolidação do desenvolvimento sustentável. Ao contrário, se aprovada qualquer uma dessas versões, o país agirá na contramão de nossa história e em detrimento de nosso capital natural.
Não podemos, tampouco, ignorar o chamado que a comunidade científica brasileira dirigiu recentemente à Nação, assim como as sucessivas manifestações de empresários, representantes da agricultura familiar, da juventude e de tantos outros segmentos da sociedade. Foram suficientes as expectativas de enfraquecimento do Código Florestal para reavivar tendências preocupantes de retomada do desmatamento na Amazônia, conforme demonstram de forma inequívoca os dados recentemente divulgados pelo INPE.
Entendemos, Senhora Presidente e Senhores congressistas, que a história reservou ao nosso tempo e, sobretudo, àqueles que ocupam os mais importantes postos de liderança em nosso país, não só a preservação desse precioso legado de proteção ambiental, mas, sobretudo, a oportunidade de liderar um grande esforço coletivo para que o Brasil prossiga em seu caminho de nação que se desenvolve com justiça social e sustentabilidade ambiental.
O esforço global para enfrentar a crise climática precisa do ativo engajamento do Brasil. A decisão de assumir metas de redução da emissão dos gases de efeito estufa, anunciadas em Copenhagen, foi um desafio ousado e paradigmático que o Brasil aceitou. No próximo ano, sediaremos a Conferencia das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, e o Brasil poderá continuar liderando pelo exemplo e inspirando os demais países a avançar com a urgência e a responsabilidade que a realidade nos impõe.
É por compreender a importância do papel na luta por um mundo melhor para todos e por carregar esta responsabilidade histórica que nos sentimos hoje na obrigação de dirigirmos a Vossa Excelência e ao Congresso Nacional nosso pedido de providências. Em conjunto com uma Política Nacional de Florestas, o Código deve ser atualizado para facilitar e viabilizar os necessários esforços de restauração e de uso das florestas, além que de sua conservação. É necessário apoiar a restauração, não dispensá-la. O Código pode e deve criar um arcabouço para os incentivos necessários para tanto. O próprio CONAMA poderia providenciar a oportunidade para que tais assuntos sejam incorporados com a devida participação dos estados, da sociedade civil e do mundo empresarial. De nossa parte, nos colocamos à disposição para contribuir a este processo e confiamos que sejam evitados quaisquer retrocessos nesta longa e desafiadora jornada.
Brasília, 23 de maio de 2011
Carlos Minc (2008-2010)
Marina Silva (2003-2008)
José Carlos Carvalho (2002-2003)
José Sarney Filho (1999-2002)
Gustavo Krause (1995-1999)
Henrique Brandão Cavalcanti (1994-1995)
Rubens Ricupero (1993-1994)
Fernando Coutinho Jorge (1992-1993)
José Goldemberg (1992)
Paulo Nogueira Neto (1973-1985)
Quatro frases que fazem o nariz do Pinóquio crescer (Eduardo Galeano)
1 - Somos todos culpados pela ruína do planeta.
A saúde do mundo está feito um caco. "Somos todos responsáveis", clamam as vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos todos responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os experts geram experts e mais experts que se ocupam de envolver o tema com o papel celofane da ambiguidade. Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao "sacrifício de todos" nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras - inundação que ameaça se converter em uma catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada de ozônio - não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial asfixia a realidade para outorgar impunidade à sociedade de consumo, que é imposta como modelo em nome do desenvolvimento, e às grandes empresas que tiram proveito dele. Mas, as estatísticas confessam. Os dados ocultos sob o palavreado revelam que 20% da humanidade comete 80% das agressões contra a natureza, crime que os assassinos chamam de suicídio, e é a humanidade inteira que paga as consequências da degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não-renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da Noruega, comprovou recentemente que, se os 7 bilhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente, "faltariam 10 planetas como o nosso para satisfazerem todas as suas necessidades. " Uma experiência impossível.
Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e felizes, não deveriam ser só processados por calote. Não estão só pegando em nosso pé, não: esses governantes estão, além disso, cometendo o delito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se oferece como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso corpo, está envenenando nossa alma e está deixando-nos sem mundo.
2 - É verde aquilo que se pinta de verde.
Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor verde, e o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada página de seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. "Nas condições de nossos empréstimos há normas ambientais estritas", esclarece o presidente da suprema instituição bancária do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma medida concreta limite a liberdade de contaminação.
Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa do meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas sacaram, subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua verdade em termos que poderiam ser resumidos assim: "os defensores da natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotarem o desenvolvimento econômico e a espantarem o investimento estrangeiro." O Banco Mundial, ao contrário, é o principal promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez, por reunir tantas virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado Fundo para o Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de pouco dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para financiar projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável, conclusão inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está admitindo, de fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao meio-ambiente.
O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se chama Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em Washington. Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come. Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial governa nossos escravizados países que, a título de serviço da dívida, pagam a seus credores externos 250 mil dólares por minuto, e lhes impõe sua política econômica, em função do dinheiro que concede ou promete. A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite abarrotar de mágicas bugigangas as grandes cidades do sul do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, poluem-se as águas que os alimentam, e uma crosta seca cobre os desertos que antes foram bosques.
3 - Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.
Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas... As empresas gigantes da indústria química, petroleira e automobilística pagaram boa parte dos gastos da Eco 92: a conferência internacional que se ocupou, no Rio de Janeiro, da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula da Terra, não condenou as transnacionais que produzem contaminação e vivem dela, e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que torna possível a venda de veneno.
No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria química se veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores laboratórios do mundo que, para ajudarem a natureza, estão inventando novos cultivos biotecnológicos. Mas, esses desvelos científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, mas sim buscam novas plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas do mundo produtoras de sementes, seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas.
A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles. Chico Mendes, trabalhador da borracha, tombou assassinado em fins de 1988, na Amazônia brasileira, por acreditar no que acreditava: que a militância ecológica não pode divorciar-se da luta social. Chico acreditava que a floresta amazônica não será salva enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil. Cinco anos depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela terra, e calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às cidades deixando as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada país, a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades latino-americanas, inchadas até arrebentarem pela incessante invasão de exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender nem alterar dentro dos limites da ecologia, surda ante o clamor social e cega ante o compromisso político.
4 - A natureza está fora de nós.
Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, por exemplo: "Honrarás a natureza, da qual tu és parte." Mas, isso não lhe ocorreu. Há cinco séculos, quando a América foi aprisionada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu ecologia com idolatria. A comunhão com a natureza era pecado. E merecia castigo. Segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam cascas para se vestirem jamais esfolavam o tronco inteiro, para não aniquilarem a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansarem a terra. A civilização, que vinha impor os devastadores monocultivos de exportação, não podia entender as culturas integradas à natureza, e as confundiu com a vocação demoníaca ou com a ignorância. Para a civilização que diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que tinha que ser domada e castigada para que funcionasse como uma máquina, posta a nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, nos devia escravidão. Muito recentemente, inteiramo-nos de que a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e sabemos que, tal como nós, pode morrer assassinada. Já não se fala de submeter a natureza. Agora, até os seus verdugos dizem que é necessário protegê-la. Mas, num ou noutro caso, natureza submetida e natureza protegida, ela está fora de nós. A civilização, que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem, enquanto o mundo, labirinto sem centro, dedica-se a romper seu próprio céu.
Montevideo, maio de 2011.
Eduardo Galeano é escritor e jornalista uruguaio
A saúde do mundo está feito um caco. "Somos todos responsáveis", clamam as vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos todos responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os experts geram experts e mais experts que se ocupam de envolver o tema com o papel celofane da ambiguidade. Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao "sacrifício de todos" nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras - inundação que ameaça se converter em uma catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada de ozônio - não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial asfixia a realidade para outorgar impunidade à sociedade de consumo, que é imposta como modelo em nome do desenvolvimento, e às grandes empresas que tiram proveito dele. Mas, as estatísticas confessam. Os dados ocultos sob o palavreado revelam que 20% da humanidade comete 80% das agressões contra a natureza, crime que os assassinos chamam de suicídio, e é a humanidade inteira que paga as consequências da degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não-renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da Noruega, comprovou recentemente que, se os 7 bilhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente, "faltariam 10 planetas como o nosso para satisfazerem todas as suas necessidades. " Uma experiência impossível.
Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e felizes, não deveriam ser só processados por calote. Não estão só pegando em nosso pé, não: esses governantes estão, além disso, cometendo o delito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se oferece como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso corpo, está envenenando nossa alma e está deixando-nos sem mundo.
2 - É verde aquilo que se pinta de verde.
Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor verde, e o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada página de seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. "Nas condições de nossos empréstimos há normas ambientais estritas", esclarece o presidente da suprema instituição bancária do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma medida concreta limite a liberdade de contaminação.
Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa do meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas sacaram, subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua verdade em termos que poderiam ser resumidos assim: "os defensores da natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotarem o desenvolvimento econômico e a espantarem o investimento estrangeiro." O Banco Mundial, ao contrário, é o principal promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez, por reunir tantas virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado Fundo para o Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de pouco dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para financiar projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável, conclusão inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está admitindo, de fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao meio-ambiente.
O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se chama Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em Washington. Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come. Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial governa nossos escravizados países que, a título de serviço da dívida, pagam a seus credores externos 250 mil dólares por minuto, e lhes impõe sua política econômica, em função do dinheiro que concede ou promete. A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite abarrotar de mágicas bugigangas as grandes cidades do sul do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, poluem-se as águas que os alimentam, e uma crosta seca cobre os desertos que antes foram bosques.
3 - Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.
Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas... As empresas gigantes da indústria química, petroleira e automobilística pagaram boa parte dos gastos da Eco 92: a conferência internacional que se ocupou, no Rio de Janeiro, da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula da Terra, não condenou as transnacionais que produzem contaminação e vivem dela, e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que torna possível a venda de veneno.
No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria química se veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores laboratórios do mundo que, para ajudarem a natureza, estão inventando novos cultivos biotecnológicos. Mas, esses desvelos científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, mas sim buscam novas plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas do mundo produtoras de sementes, seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas.
A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles. Chico Mendes, trabalhador da borracha, tombou assassinado em fins de 1988, na Amazônia brasileira, por acreditar no que acreditava: que a militância ecológica não pode divorciar-se da luta social. Chico acreditava que a floresta amazônica não será salva enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil. Cinco anos depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela terra, e calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às cidades deixando as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada país, a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades latino-americanas, inchadas até arrebentarem pela incessante invasão de exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender nem alterar dentro dos limites da ecologia, surda ante o clamor social e cega ante o compromisso político.
4 - A natureza está fora de nós.
Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, por exemplo: "Honrarás a natureza, da qual tu és parte." Mas, isso não lhe ocorreu. Há cinco séculos, quando a América foi aprisionada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu ecologia com idolatria. A comunhão com a natureza era pecado. E merecia castigo. Segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam cascas para se vestirem jamais esfolavam o tronco inteiro, para não aniquilarem a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansarem a terra. A civilização, que vinha impor os devastadores monocultivos de exportação, não podia entender as culturas integradas à natureza, e as confundiu com a vocação demoníaca ou com a ignorância. Para a civilização que diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que tinha que ser domada e castigada para que funcionasse como uma máquina, posta a nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, nos devia escravidão. Muito recentemente, inteiramo-nos de que a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e sabemos que, tal como nós, pode morrer assassinada. Já não se fala de submeter a natureza. Agora, até os seus verdugos dizem que é necessário protegê-la. Mas, num ou noutro caso, natureza submetida e natureza protegida, ela está fora de nós. A civilização, que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem, enquanto o mundo, labirinto sem centro, dedica-se a romper seu próprio céu.
Montevideo, maio de 2011.
Eduardo Galeano é escritor e jornalista uruguaio
"O movimento 'Democracia Real Ya' (Espanha)
A indignação sai às ruas na Espanha
"O movimento 'Democracia Real Ya' nasceu da indignação de 50 pessoas. Começou pequeno. Os tempos são outros, Twitter e Facebook à frente, a grande rede fez com que a indignação dos jovens desbordasse para mais de 300 cidades espanholas. Hoje são milhares de espanhóis que estão na rua gritando 'Basta Ya!'"
O dia 15 de março de 2011 ficará marcado na história da Espanha. No domingo passado, um pequeno grupo de cidadãos espanhóis resolveu protestar contra tudo e contra todos, contra a situação política e econômica, a corrupção e os políticos em geral. Eles ocuparam "la Puerta del Sol" de Madrid e passaram a noite acampados na praça da capital espanhola. Na segunda-feira foram desalojados pela polícia. Voltaram na terça e ainda estão lá até hoje. Mesmo com a proibição da Justiça, prometem fincar pé e permanecer na praça até este domingo, dia das eleições municipais na Espanha.
A classe política espanhola prestou pouca atenção ao protesto, imaginava que era coisa de um grupinho e que a indignação não prosperaria. Se enganou, e muito.
O movimento "Democracia Real Ya" nasceu da indignação de 50 pessoas. Começou pequeno. Os tempos são outros, Twitter e Facebook à frente, a grande rede fez com que a indignação dos jovens desbordasse para mais de 300 cidades espanholas. Hoje são milhares de espanhóis que estão na rua gritando "BastaYa!". Os jovens ainda são a maioria, mas há gente de todas as idades nas praças da Espanha. Indignação não pressupõe juventude.
Já há sinais de mais gente indignada se movendo por outros países da comunidade européia.
Para compreender melhor o propósito do movimento, leia trechos do Manifesto da "Democracia Real Ya":
"Somos personas normales y corrientes. Somos como tú: gente que se levanta por las mañanas para estudiar, para trabajar o para buscar trabajo, gente que tiene familia y amigos. Gente que trabaja duro todos los días para vivir y dar un futuro mejor a los que nos rodean."
"Unos nos consideramos más progresistas, otros más conservadores. Unos creyentes, otros no. Unos tenemos ideologías bien definidas, otros nos consideramos apolíticos… Pero todos estamos preocupados e indignados por el panorama político, económico y social que vemos a nuestro alrededor. Por la corrupción de los políticos, empresarios, banqueros…"
"Los ciudadanos formamos parte del engranaje de una máquina destinada a enriquecer a una minoría que no sabe ni de nuestras necesidades. Somos anónimos, pero sin nosotros nada de esto existiría, pues nosotros movemos el mundo."
No Twitter, a Hashtag #acampadasol detonou o processo. Evoluiu para #spanishrevolution e se tornou o 2º "Trending Topic" mundial. Há quem considere o título "Spanish Revolution" um exagero. As revoltas árabes e os protestos islandeses são a inspiração, sem dúvida. Se o movimento espanhol é ou não uma verdadeira revolução, não importa muito. O importante é que a Espanha mudou nesta semana. Os políticos estão preocupados, o movimento alterou a conjuntura e o que ninguém duvida mais é que a voz das ruas deve ser escutada.
O primeiro-ministro José Luis Zapatero, aqui chamado de “presidente del Gobierno”, disse que é sua obrigação escutar os indignados. Perguntado se tivesse 25 anos, ele estaria na Porta do Sol, respondeu: "Sí, seguramente estaria". E acrescentou, "¿Cómo no voy a entender que la gente que no encuentra trabajo proteste?"
Melhor escutar Cristina, uma ouvinte da rádio pública espanhola, explicando por que está indignada… vale a pena.
http://www.youtube.com/watch?v=3yQxixRBCls&feature=youtu.be
Em Barcelona, não foi diferente. Seguem algumas imagens da Plaza Catalunya, centro de Barcelona.
"O movimento 'Democracia Real Ya' nasceu da indignação de 50 pessoas. Começou pequeno. Os tempos são outros, Twitter e Facebook à frente, a grande rede fez com que a indignação dos jovens desbordasse para mais de 300 cidades espanholas. Hoje são milhares de espanhóis que estão na rua gritando 'Basta Ya!'"
O dia 15 de março de 2011 ficará marcado na história da Espanha. No domingo passado, um pequeno grupo de cidadãos espanhóis resolveu protestar contra tudo e contra todos, contra a situação política e econômica, a corrupção e os políticos em geral. Eles ocuparam "la Puerta del Sol" de Madrid e passaram a noite acampados na praça da capital espanhola. Na segunda-feira foram desalojados pela polícia. Voltaram na terça e ainda estão lá até hoje. Mesmo com a proibição da Justiça, prometem fincar pé e permanecer na praça até este domingo, dia das eleições municipais na Espanha.
A classe política espanhola prestou pouca atenção ao protesto, imaginava que era coisa de um grupinho e que a indignação não prosperaria. Se enganou, e muito.
O movimento "Democracia Real Ya" nasceu da indignação de 50 pessoas. Começou pequeno. Os tempos são outros, Twitter e Facebook à frente, a grande rede fez com que a indignação dos jovens desbordasse para mais de 300 cidades espanholas. Hoje são milhares de espanhóis que estão na rua gritando "BastaYa!". Os jovens ainda são a maioria, mas há gente de todas as idades nas praças da Espanha. Indignação não pressupõe juventude.
Já há sinais de mais gente indignada se movendo por outros países da comunidade européia.
Para compreender melhor o propósito do movimento, leia trechos do Manifesto da "Democracia Real Ya":
"Somos personas normales y corrientes. Somos como tú: gente que se levanta por las mañanas para estudiar, para trabajar o para buscar trabajo, gente que tiene familia y amigos. Gente que trabaja duro todos los días para vivir y dar un futuro mejor a los que nos rodean."
"Unos nos consideramos más progresistas, otros más conservadores. Unos creyentes, otros no. Unos tenemos ideologías bien definidas, otros nos consideramos apolíticos… Pero todos estamos preocupados e indignados por el panorama político, económico y social que vemos a nuestro alrededor. Por la corrupción de los políticos, empresarios, banqueros…"
"Los ciudadanos formamos parte del engranaje de una máquina destinada a enriquecer a una minoría que no sabe ni de nuestras necesidades. Somos anónimos, pero sin nosotros nada de esto existiría, pues nosotros movemos el mundo."
No Twitter, a Hashtag #acampadasol detonou o processo. Evoluiu para #spanishrevolution e se tornou o 2º "Trending Topic" mundial. Há quem considere o título "Spanish Revolution" um exagero. As revoltas árabes e os protestos islandeses são a inspiração, sem dúvida. Se o movimento espanhol é ou não uma verdadeira revolução, não importa muito. O importante é que a Espanha mudou nesta semana. Os políticos estão preocupados, o movimento alterou a conjuntura e o que ninguém duvida mais é que a voz das ruas deve ser escutada.
O primeiro-ministro José Luis Zapatero, aqui chamado de “presidente del Gobierno”, disse que é sua obrigação escutar os indignados. Perguntado se tivesse 25 anos, ele estaria na Porta do Sol, respondeu: "Sí, seguramente estaria". E acrescentou, "¿Cómo no voy a entender que la gente que no encuentra trabajo proteste?"
Melhor escutar Cristina, uma ouvinte da rádio pública espanhola, explicando por que está indignada… vale a pena.
http://www.youtube.com/watch?v=3yQxixRBCls&feature=youtu.be
Em Barcelona, não foi diferente. Seguem algumas imagens da Plaza Catalunya, centro de Barcelona.
domingo, 22 de maio de 2011
Sobre a vida após a morte (Marcelo Gleiser)
Do ponto de vista científico, vida após a morte não faz sentido,embora a esperança de que ela exista seja muito compreensível
Já que no domingo passado escrevi sobre o fim do mundo (era para ter sido ontem), é natural continuar nossa discussão refletindo sobre vida após a morte. especialmente nesta semana, quando o famoso físico Stephen Hawking falou do assunto em entrevista ao jornal inglês "The Guardian". "um conto de fadas para pessoas que têm medo do escuro", disse.
Mantendo a discussão ao nível "científico", o que podemos falar sobre experimentos que visam detectar vida após a morte?
eis o que escrevi sobre o tópico em meu livro "Criação Imperfeita": "quando ingressei no curso de física da PUC do Rio em1979, era a encarnação perfeita do cientista romântico, com barba, cachimbo e tudo.
Lembro-me, com um certo embaraço, do meu experimento para 'investigar a existência da alma'. Se a alma existia, pensei, tem que ter uma natureza ao menos em parte eletromagnética, de modo a poder animar o cérebro. e se eu convencesse um hospital a dar-me acesso a um paciente em coma, já prestes a morrer? Assim, poderia circundá lo com instrumentos capazes de detectar atividade eletromagnética.
Talvez pudesse detectar a cessação do desequilíbrio elétrico que caracteriza a vida [...] Por via das dúvidas, o paciente deveria também estar deitado sobre uma balança bem precisa, caso a alma tivesse peso." Continuo:"Na verdade,minha incursão no terreno da "teologia experimental" era mais brincadeira do que algo que levei a sério. Porem, minha metade vitoriana charlatã, devo dizer, tinha ao menos um predecessor.
em 1907, um certo Dr. Duncan MagDougall de Haverhill, em Massachusetts, conduziu uma série de experimentos para medir o peso da alma.emborasua metodologia fosse altamente duvidosa, seus resultados foram mencionados no prestigioso "New York Times":"Médico crê que alma tem peso", afirmou a manchete. O peso era em torno de 21,3 gramas, embora tenha havido algumas variações entre os poucos pacientes investigados. Como grupo de controle, ele pesou 15 cães, mostrando que eles não sofriam qualquer mudança de peso. O resultado não o surpreendeu, pois suspeitava que só humanos têm almas."
Os experimentos de Mag Dougall inspiraram o filme "21 Gramas", com Sean Penn fazendo o papel de um matemático à beira da morte.
De volta a Hawking, devo dizer que concordo com ele. Tudo o que sabemos sobre como a natureza opera indica que a vida é um fenômeno bioquímico emergente que tem um início e um fim.
Do ponto de vista científico, vida após a morte não faz sentido: existe a vida, um estado complexo da matéria em que um organismo interage ativamente com o ambiente, e existe a morte, um estado em que essas interações tornam-se passivas.
Morte é ausência de vida. (Mesmo o vírus só pode ser considerado0 vivo dentro de uma célula anfitriã.) É perfeitamente compreensível querer mais do que algumas décadas de vida, ter esperança de que existe algo mais.
Porém, nosso foco deve ser no aqui e no agora, e não no além. O que importa é o que fazemos coma vida que temos, curta que seja.Após ela, o que persiste são as memórias naqueles que continuam vivos.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro Criação Imperfeita
Já que no domingo passado escrevi sobre o fim do mundo (era para ter sido ontem), é natural continuar nossa discussão refletindo sobre vida após a morte. especialmente nesta semana, quando o famoso físico Stephen Hawking falou do assunto em entrevista ao jornal inglês "The Guardian". "um conto de fadas para pessoas que têm medo do escuro", disse.
Mantendo a discussão ao nível "científico", o que podemos falar sobre experimentos que visam detectar vida após a morte?
eis o que escrevi sobre o tópico em meu livro "Criação Imperfeita": "quando ingressei no curso de física da PUC do Rio em1979, era a encarnação perfeita do cientista romântico, com barba, cachimbo e tudo.
Lembro-me, com um certo embaraço, do meu experimento para 'investigar a existência da alma'. Se a alma existia, pensei, tem que ter uma natureza ao menos em parte eletromagnética, de modo a poder animar o cérebro. e se eu convencesse um hospital a dar-me acesso a um paciente em coma, já prestes a morrer? Assim, poderia circundá lo com instrumentos capazes de detectar atividade eletromagnética.
Talvez pudesse detectar a cessação do desequilíbrio elétrico que caracteriza a vida [...] Por via das dúvidas, o paciente deveria também estar deitado sobre uma balança bem precisa, caso a alma tivesse peso." Continuo:"Na verdade,minha incursão no terreno da "teologia experimental" era mais brincadeira do que algo que levei a sério. Porem, minha metade vitoriana charlatã, devo dizer, tinha ao menos um predecessor.
em 1907, um certo Dr. Duncan MagDougall de Haverhill, em Massachusetts, conduziu uma série de experimentos para medir o peso da alma.emborasua metodologia fosse altamente duvidosa, seus resultados foram mencionados no prestigioso "New York Times":"Médico crê que alma tem peso", afirmou a manchete. O peso era em torno de 21,3 gramas, embora tenha havido algumas variações entre os poucos pacientes investigados. Como grupo de controle, ele pesou 15 cães, mostrando que eles não sofriam qualquer mudança de peso. O resultado não o surpreendeu, pois suspeitava que só humanos têm almas."
Os experimentos de Mag Dougall inspiraram o filme "21 Gramas", com Sean Penn fazendo o papel de um matemático à beira da morte.
De volta a Hawking, devo dizer que concordo com ele. Tudo o que sabemos sobre como a natureza opera indica que a vida é um fenômeno bioquímico emergente que tem um início e um fim.
Do ponto de vista científico, vida após a morte não faz sentido: existe a vida, um estado complexo da matéria em que um organismo interage ativamente com o ambiente, e existe a morte, um estado em que essas interações tornam-se passivas.
Morte é ausência de vida. (Mesmo o vírus só pode ser considerado0 vivo dentro de uma célula anfitriã.) É perfeitamente compreensível querer mais do que algumas décadas de vida, ter esperança de que existe algo mais.
Porém, nosso foco deve ser no aqui e no agora, e não no além. O que importa é o que fazemos coma vida que temos, curta que seja.Após ela, o que persiste são as memórias naqueles que continuam vivos.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro Criação Imperfeita
As viagens de Foucault ao Brasil
Reações:
As viagens de Foucault ao Brasil
FILOSOFIA
Sócrates no calçadão
RESUMO
Nos anos 1960 e 70, Michel Foucault veio diversas vezes ao Brasil, tendo exercido forte influência em jovens filósofos e psicanalistas, não sem questionar em debates as convicções ideológicas locais. Embora tenha feito laços afetivos e tenha se divertido na Lapa carioca, não manteve uma relação duradoura com o país.
RAFAEL CARIELLO
"FOUCAULT CORROMPE a juventude?", pergunta o título de um dos capítulos do livro de Paul Veyne sobre Michel Foucault, ecoando, não sem ironia, a acusação feita pela cidade-Estado de Atenas ao pensador grego Sócrates, quatro séculos antes de Cristo. No auge de sua produção intelectual, Michel Foucault esteve por cinco vezes no Brasil. Entre 1965 e 1976, "corrompeu a juventude" do país com suas ideias, em cursos e palestras nas universidades brasileiras.
Sobretudo nas visitas a partir de 1973, quando já era uma estrela da vida intelectual francesa, o impacto de sua presença no Brasil ultrapassou a simples exposição de ideias em sala de aula. Ele próprio se disse impressionado, mais tarde, pelos estudantes brasileiros, "famintos por aprender". As discussões prosseguiam nas festas, nos almoços, na praia.
Ao filósofo Roberto Machado, que se tornou seu amigo nas visitas ao Rio e o acompanhou em sua viagem ao Nordeste do país, Foucault dizia nunca ter trabalhado tanto, falado tanto, nunca ter sido tão requisitado.
Ao mesmo tempo, tanto quanto Sócrates nos diálogos de Platão, era por vezes implacável com seus interlocutores brasileiros, derrubando impiedosamente certezas pré-estabelecidas. Isso não impediu que, assim como o protagonista do "Banquete", despertasse paixões, motivadas tanto por suas ideias quanto por sua personalidade.
DESCONFORTO
O ceticismo de Foucault provocou desconforto num país em que se discutia "Freud e Marx ao infinito", como constatou o próprio filósofo, em carta ao companheiro Daniel Defert. Durante suas palestras na PUC-Rio, em 1973, o pensador francês chegou a ouvir acusações, proferidas da plateia, de "ingenuidade" e "idealismo". Estudantes, pesquisadores e professores lotavam um dos auditórios do campus da Gávea.
Roberto Machado, hoje professor aposentado de filosofia da UFRJ, lecionava à época na universidade católica. "O auditório ficava cheiíssimo. Não me lembro bem, mas parece que era pago. Houve até uma manifestação de estudantes para poderem entrar de graça. Mesmo assim, as palestras ficavam abarrotadas de gente."
Na mesma semana, Foucault participou de uma mesa redonda com professores da PUC e alguns convidados, entre eles o psicanalista Hélio Peregrino (1924-88), com quem debateu sobre o complexo de Édipo. Para Pellegrino, a relação da criança com os pais é determinante para toda experiência de desejo posterior daquele indivíduo. O palestrante principal argumentava que não há um fundamento único do desejo, que a mãe é um "objeto primeiro" para a criança apenas no sentido cronológico, mas nem por isso "primordial, essencial, fundamental".
O psicanalista brasileiro citou então a pesquisa de um colega. "Ele mostra o fenômeno 'hospitalício'", disse Pellegrino, em referência a bebês criados em hospitais, desde o nascimento. "As crianças que não têm maternização simplesmente perecem, morrem por falta de mãe".
"Compreendo", respondeu Foucault. "Mas isso só prova uma coisa: não que a mãe seja indispensável, mas que o hospital não é bom."
DITADURA
Há poucos registros de críticas públicas do autor de "Vigiar e Punir" à ditadura militar brasileira, que vigorou por todo o período em que Foucault fez visitas ao Brasil. "Ele nunca foi um provocador inconsequente", argumenta o psicanalista Jurandir Freire Costa, que acompanhou o filósofo no Rio de Janeiro na década de 70. "Sabia que estava sob uma ditadura, cercado de pessoas que eram vulneráveis. Havia um acordo tácito de que só falaríamos do que era possível."
Mas, em outubro de 1975, enquanto dava um curso na USP, uma onda de prisões foi deflagrada pelos agentes do regime militar na cidade. A Folha do dia 24 daquele mês relata um protesto de estudantes da universidade "contra a prisão, ocorrida nas últimas semanas, de estudantes, professores e jornalistas". A reportagem registra que o "professor Michel Foucault, psicólogo francês" compareceu à assembleia e fez "um pronunciamento de solidariedade aos estudantes". Anunciou, em seguida, que suspenderia seu curso antes do fim.
Dois dias depois, o país tomava conhecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog, preso e torturado por agentes da repressão.
Foucault também fez, ainda em São Paulo, declarações de repúdio à ditadura brasileira para a imprensa internacional, lembra Heliana Conde, professora do departamento de psicologia social da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), que realiza pesquisa sobre as visitas do filósofo ao Brasil.
PROVOCAR
Roberto Machado afirma que o objetivo das declarações era provocar os militares, tentar ser expulso do país e assim chamar a atenção da opinião pública internacional para o que se passava no Brasil. Como não conseguiu, acreditou que poderia ser barrado ao tentar entrar novamente em território brasileiro, no ano seguinte, mas sua visita, organizada pela Aliança Francesa, foi autorizada. Em 1976, proferiu palestras em Salvador, Recife e Belém. Acreditava estar sendo seguido pelos militares enquanto viajava pelo país.
Em Belém, deu um curso a estudantes e pesquisadores da Universidade Federal do Pará, a pedido do filósofo Benedito Nunes (1929-2011). "Menos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, cujo nome não vou mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos frequentadores" das aulas, relatou Nunes em 2008 à revista "Transformação", da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
"Eu disse: 'Não dou a relação'. Saí de lá e fui diretamente falar com o reitor, que foi muito correto, e até corajoso. Ele me disse para não dar a lista. Havia uma vigilância até nesse ponto. Não era uma invenção dizer que o SNI estava infiltrado".
À VONTADE
Uma relação de "afinidade eletiva" ligava Foucault ao Brasil, segundo estudantes e professores que o acompanharam em suas visitas, como os psicanalistas Chaim Samuel Katz e Jurandir Freire Costa. Avesso à formalidade francesa, o filósofo se sentia à vontade no Rio de Janeiro, conta Machado.
O professor brasileiro se lembra de uma carona que ofereceu, logo na primeira visita, em 1973, ao colega francês. O destino era a Lapa, bairro "para onde a garotada da zona sul ainda não ia", no início dos anos 70, conta Machado. Recém-chegado à cidade, após os anos de doutorado na Bélgica, o professor brasileiro parou seu Fusca ao lado de um táxi, ao sair de Copacabana, e pediu informações sobre o caminho. Foucault brincou: "Você mora no Rio de Janeiro e não conhece o bairro mais interessante da cidade?".
As visitas ao centro da cidade se repetiram em todas as suas estadas no Rio. Ia sempre se encontrar com um certo Hamilton, enfermeiro brasileiro que morara em Paris.
Chaim Katz conta que, certa vez, a pedido de Foucault, foi levar uma encomenda ao amigo do filósofo francês. Era o pagamento de uma palestra feita no Brasil, que deveria ser entregue a Hamilton. Num edifício enorme e pobre, com centenas de apartamentos, Katz se encontrou rapidamente com um sujeito que descreve como "mulato, relativamente bonito".
Pouco antes de deixar o Brasil pela última vez, Foucault chamou Machado e Katz para uma conversa. Disse que seu amigo estava doente e que iria procurá-los. Pediu que o ajudassem da melhor forma possível. Hamilton nunca pediu a ajuda dos amigos de Foucault.
CALIFÓRNIA
E o filósofo nunca mais voltou ao Brasil. No final dos anos 70, foi descoberto, com relativo atraso, pela universidade norte-americana. Ao mesmo tempo em que ele próprio descobriu a Califórnia, ou melhor, San Francisco.
Mesmo as conversas por carta com seus admiradores mais próximos no Brasil cessaram. Novos convites de visita foram feitos, mas Foucault não se mostrou interessado. "Acho que foi o encontro com os Estados Unidos", explica Machado.
"Ele ficou deslumbrado. Encontrou por lá um debate mais afinado com as pesquisas que estava fazendo no momento, as trocas intelectuais foram intensas. Também encontrou nos Estados Unidos movimentos organizados, como o dos homossexuais e dos negros, que já usavam ideias que ele valorizava muito. Uma coisa é ser admirado no Brasil. Outra é ser acolhido nas grandes universidades americanas."
As viagens de Foucault ao Brasil
FILOSOFIA
Sócrates no calçadão
RESUMO
Nos anos 1960 e 70, Michel Foucault veio diversas vezes ao Brasil, tendo exercido forte influência em jovens filósofos e psicanalistas, não sem questionar em debates as convicções ideológicas locais. Embora tenha feito laços afetivos e tenha se divertido na Lapa carioca, não manteve uma relação duradoura com o país.
RAFAEL CARIELLO
"FOUCAULT CORROMPE a juventude?", pergunta o título de um dos capítulos do livro de Paul Veyne sobre Michel Foucault, ecoando, não sem ironia, a acusação feita pela cidade-Estado de Atenas ao pensador grego Sócrates, quatro séculos antes de Cristo. No auge de sua produção intelectual, Michel Foucault esteve por cinco vezes no Brasil. Entre 1965 e 1976, "corrompeu a juventude" do país com suas ideias, em cursos e palestras nas universidades brasileiras.
Sobretudo nas visitas a partir de 1973, quando já era uma estrela da vida intelectual francesa, o impacto de sua presença no Brasil ultrapassou a simples exposição de ideias em sala de aula. Ele próprio se disse impressionado, mais tarde, pelos estudantes brasileiros, "famintos por aprender". As discussões prosseguiam nas festas, nos almoços, na praia.
Ao filósofo Roberto Machado, que se tornou seu amigo nas visitas ao Rio e o acompanhou em sua viagem ao Nordeste do país, Foucault dizia nunca ter trabalhado tanto, falado tanto, nunca ter sido tão requisitado.
Ao mesmo tempo, tanto quanto Sócrates nos diálogos de Platão, era por vezes implacável com seus interlocutores brasileiros, derrubando impiedosamente certezas pré-estabelecidas. Isso não impediu que, assim como o protagonista do "Banquete", despertasse paixões, motivadas tanto por suas ideias quanto por sua personalidade.
DESCONFORTO
O ceticismo de Foucault provocou desconforto num país em que se discutia "Freud e Marx ao infinito", como constatou o próprio filósofo, em carta ao companheiro Daniel Defert. Durante suas palestras na PUC-Rio, em 1973, o pensador francês chegou a ouvir acusações, proferidas da plateia, de "ingenuidade" e "idealismo". Estudantes, pesquisadores e professores lotavam um dos auditórios do campus da Gávea.
Roberto Machado, hoje professor aposentado de filosofia da UFRJ, lecionava à época na universidade católica. "O auditório ficava cheiíssimo. Não me lembro bem, mas parece que era pago. Houve até uma manifestação de estudantes para poderem entrar de graça. Mesmo assim, as palestras ficavam abarrotadas de gente."
Na mesma semana, Foucault participou de uma mesa redonda com professores da PUC e alguns convidados, entre eles o psicanalista Hélio Peregrino (1924-88), com quem debateu sobre o complexo de Édipo. Para Pellegrino, a relação da criança com os pais é determinante para toda experiência de desejo posterior daquele indivíduo. O palestrante principal argumentava que não há um fundamento único do desejo, que a mãe é um "objeto primeiro" para a criança apenas no sentido cronológico, mas nem por isso "primordial, essencial, fundamental".
O psicanalista brasileiro citou então a pesquisa de um colega. "Ele mostra o fenômeno 'hospitalício'", disse Pellegrino, em referência a bebês criados em hospitais, desde o nascimento. "As crianças que não têm maternização simplesmente perecem, morrem por falta de mãe".
"Compreendo", respondeu Foucault. "Mas isso só prova uma coisa: não que a mãe seja indispensável, mas que o hospital não é bom."
DITADURA
Há poucos registros de críticas públicas do autor de "Vigiar e Punir" à ditadura militar brasileira, que vigorou por todo o período em que Foucault fez visitas ao Brasil. "Ele nunca foi um provocador inconsequente", argumenta o psicanalista Jurandir Freire Costa, que acompanhou o filósofo no Rio de Janeiro na década de 70. "Sabia que estava sob uma ditadura, cercado de pessoas que eram vulneráveis. Havia um acordo tácito de que só falaríamos do que era possível."
Mas, em outubro de 1975, enquanto dava um curso na USP, uma onda de prisões foi deflagrada pelos agentes do regime militar na cidade. A Folha do dia 24 daquele mês relata um protesto de estudantes da universidade "contra a prisão, ocorrida nas últimas semanas, de estudantes, professores e jornalistas". A reportagem registra que o "professor Michel Foucault, psicólogo francês" compareceu à assembleia e fez "um pronunciamento de solidariedade aos estudantes". Anunciou, em seguida, que suspenderia seu curso antes do fim.
Dois dias depois, o país tomava conhecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog, preso e torturado por agentes da repressão.
Foucault também fez, ainda em São Paulo, declarações de repúdio à ditadura brasileira para a imprensa internacional, lembra Heliana Conde, professora do departamento de psicologia social da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), que realiza pesquisa sobre as visitas do filósofo ao Brasil.
PROVOCAR
Roberto Machado afirma que o objetivo das declarações era provocar os militares, tentar ser expulso do país e assim chamar a atenção da opinião pública internacional para o que se passava no Brasil. Como não conseguiu, acreditou que poderia ser barrado ao tentar entrar novamente em território brasileiro, no ano seguinte, mas sua visita, organizada pela Aliança Francesa, foi autorizada. Em 1976, proferiu palestras em Salvador, Recife e Belém. Acreditava estar sendo seguido pelos militares enquanto viajava pelo país.
Em Belém, deu um curso a estudantes e pesquisadores da Universidade Federal do Pará, a pedido do filósofo Benedito Nunes (1929-2011). "Menos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, cujo nome não vou mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos frequentadores" das aulas, relatou Nunes em 2008 à revista "Transformação", da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
"Eu disse: 'Não dou a relação'. Saí de lá e fui diretamente falar com o reitor, que foi muito correto, e até corajoso. Ele me disse para não dar a lista. Havia uma vigilância até nesse ponto. Não era uma invenção dizer que o SNI estava infiltrado".
À VONTADE
Uma relação de "afinidade eletiva" ligava Foucault ao Brasil, segundo estudantes e professores que o acompanharam em suas visitas, como os psicanalistas Chaim Samuel Katz e Jurandir Freire Costa. Avesso à formalidade francesa, o filósofo se sentia à vontade no Rio de Janeiro, conta Machado.
O professor brasileiro se lembra de uma carona que ofereceu, logo na primeira visita, em 1973, ao colega francês. O destino era a Lapa, bairro "para onde a garotada da zona sul ainda não ia", no início dos anos 70, conta Machado. Recém-chegado à cidade, após os anos de doutorado na Bélgica, o professor brasileiro parou seu Fusca ao lado de um táxi, ao sair de Copacabana, e pediu informações sobre o caminho. Foucault brincou: "Você mora no Rio de Janeiro e não conhece o bairro mais interessante da cidade?".
As visitas ao centro da cidade se repetiram em todas as suas estadas no Rio. Ia sempre se encontrar com um certo Hamilton, enfermeiro brasileiro que morara em Paris.
Chaim Katz conta que, certa vez, a pedido de Foucault, foi levar uma encomenda ao amigo do filósofo francês. Era o pagamento de uma palestra feita no Brasil, que deveria ser entregue a Hamilton. Num edifício enorme e pobre, com centenas de apartamentos, Katz se encontrou rapidamente com um sujeito que descreve como "mulato, relativamente bonito".
Pouco antes de deixar o Brasil pela última vez, Foucault chamou Machado e Katz para uma conversa. Disse que seu amigo estava doente e que iria procurá-los. Pediu que o ajudassem da melhor forma possível. Hamilton nunca pediu a ajuda dos amigos de Foucault.
CALIFÓRNIA
E o filósofo nunca mais voltou ao Brasil. No final dos anos 70, foi descoberto, com relativo atraso, pela universidade norte-americana. Ao mesmo tempo em que ele próprio descobriu a Califórnia, ou melhor, San Francisco.
Mesmo as conversas por carta com seus admiradores mais próximos no Brasil cessaram. Novos convites de visita foram feitos, mas Foucault não se mostrou interessado. "Acho que foi o encontro com os Estados Unidos", explica Machado.
"Ele ficou deslumbrado. Encontrou por lá um debate mais afinado com as pesquisas que estava fazendo no momento, as trocas intelectuais foram intensas. Também encontrou nos Estados Unidos movimentos organizados, como o dos homossexuais e dos negros, que já usavam ideias que ele valorizava muito. Uma coisa é ser admirado no Brasil. Outra é ser acolhido nas grandes universidades americanas."
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