quinta-feira, 19 de maio de 2016

Um até logo às utopias? (Roberto DaMatta)

As utopias nos perseguem. Quem não gostaria de viver num mundo perfeito ou semelhante ao Paraíso? Quem não se sente traído por ideologias e credos que respondam a todas as suas dúvidas? Apesar dessas ansiedades, deve-se compreender que um país só pode dar o que pode. E tal princípio é imprescindível como um guia para o momento.
O dramático impedimento de um chefe de Estado num regime presidencialista — cuja presidente sai do papel sem, entretanto, deixar o palácio — teve uma trajetória singular. Começou com as promessas igualitárias de um metalúrgico pobre e terminou marcada pela ladroagem no melhor estilo patrimonialista, mas com seus cabeças e mediadores bilionários presos por corrupção. O patrimonialismo não acabou, mas entrou em conflito com a esfera burocrática representada pela Justiça e pela pressão das redes sociais. O populismo que prometia honestidade e transformação igualitária acabou tirando do prumo o elo entre governo e sociedade na medida em que a mensagem do petismo foi ficando lulista.
Se esse enredo fosse escrito no fim dos anos 90, diria-se que tal reviravolta seria impossível. Subestimamos a força do personalismo no Brasil, lido mais como um país do que como um sistema de costumes e valores. Nele, as “superpessoas” canibalizam programas. Lula englobou o PT. Pela mesma moeda, deixamos de lado o poder das formas impessoais e anônimas de atuação política vigentes num Brasil globalizado. Continuamos pensando em “povo” numa sociedade de massa e de opinião.
O mais espantoso não foi prender os ricos, mas realizar um afastamento muito mais ético (absolutamente contra a corrupção e a ausência de sinceridade a certos papéis) do que meramente político. Afastamento feito sem soldados, bravatas e tanques nas ruas. Esse é o sinal de uma maturidade institucional que chega justamente quando o governo aparelha o Estado e tenta dirigir a economia, quebrando o país.
A verdade é que estes tempos de distopia e de desgraça financeira obrigaram a entender como a vida republicana, que iguala, contém tanto o utópico quanto o seu contrário. Virtude e vício não vão embora, eles se alternam. O que, entrementes, um “governo de salvação” não pode fazer é ser conivente com o vício, já que salvar é, por definição, uma virtude.
Quando se fala em “utopia perdida”, é preciso indagar se as utopias não são também dispositivos antiemancipatórios que impingem amarras à autonomia e à responsabilidade pública e particular em nome de um regime acabado. Um sistema que, ao fim e ao cabo, revoga o humano, pois liquida a história, como diz aquele famoso manifesto de esperança e onipotência evolucionista de uma dada época.
O republicanismo tem como novidade o diálogo entre utopias e distopias, as quais duvidam do canto de sereia das fórmulas que resolveriam, de uma vez por todas, os nossos problemas. Nesse sentido, Kafka e Orwell contêm Platão. As distopias lembram que sociedades não são “consertadas” como os relógios, pois levamos os relógios para relojoeiros, e não para políticos!
No nosso caso, a ruína real da economia apresenta uma barreira intransponível para a tal “vontade política”. Sejamos marxistas: se a infraestrutura vai à falência motivada por uma ideologia enganadora, a saída é a reformulação da superestrutura.
Este governo é de salvação por um motivo simples: ele é obviamente hiperpolítico, mas é também um governo que pode dizer não aos amigos. E dizer não aos amigos é o que se precisa para mudar o Brasil. Com o não aos amigos, se faz a tão pretendida revolução e a tão procurada utopia. Nas emergências, salvam-se todos pela “ética da negação” — esse oposto da nossa tradicional “ética de condescendência” incapaz, como remarca Oliveira Viana, de negar tudo, menos o pedido de um amigo.
PS: O professor Moneygrand chama minha atenção para a edição do dia 14 do “New York Times”. Ele diz: “DaMatta, não deixe de ler a matéria na qual o Parlamento brasileiro é descrito como tendente à corrupção e comparado a um circo com palhaço e tudo. Mas não perca o texto sobre Donald Trump e as mulheres. Pois se o Parlamento brasileiro é um circo — complementa Moneygrand —, o pré-candidato do partido de Lincoln e Eisenhower tem potencial de ser um vaudeville muito mais interessante do que os vossos bem pagos representantes. Se uma reportagem semelhante fosse feita no Brasil — ai sim! —‚ teríamos um circo. Trump, candidato a presidente desta minha maior potência mundial, vale tanto ou mais do que todos os vossos palhaços reunidos.”
Fonte: O Globo (18/05/16)

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