Em política, a incompetência é quase sempre criminosa, e pelo menos em um ponto, aos gritos ou sussurros, praticamente todos concordam: o governo Dilma Rousseff foi muito ruim. É claro: se depois de seis anos de poder uma Presidência é incapaz de encontrar 172 deputados que lhe defendam, o problema maior não está nos deputados.
A ideia de que houve um golpe não é só absurda -é ofensiva. Para quem viveu 1964, 1968 e acompanhou a ditadura militar nos anos 1970, chamar de golpe um mecanismo constitucional de que, aliás, nas últimas décadas o Partido dos Trabalhadores lançava mão gozosamente por qualquer "dá aqui aquela palha", agride a inteligência.
Também não houve nenhuma revolução: o Brasil continua do mesmo tamanho, que é, infelizmente, pequeno. Estamos diante da placa da Confeitaria do Custódio, da cena de Machado de Assis no romance "Esaú e Jacó"(1904).
Com a queda da Monarquia, troca-se a inscrição "Confeitaria do Império" por "Confeitaria da República" -mas vamos que dê uma reviravolta?! Um Maranhão qualquer? Melhor colocar "Confeitaria do Custódio", este cidadão brasileiro. Não vou me meter nessa história, ele diria -o país não é meu.
Passei meses tentando escapar da histeria que se instalou no vácuo simbólico da Presidência, um vazio que se arrastava penoso. Como ficcionista, o que me interessa são muito mais as pessoas do que as ideias, tomadas abstratamente. Na abstração, com boa retórica, todos têm razão, e quando todos têm razão, é melhor ficar calado.
Pouco se fala do caráter simbólico do poder político, e do quanto ele é importante -sua ausência produz histeria. O vazio estava demasiado e gritou-se muito para preenchê-lo. Tudo bem: virou-se a página -muito parecida com a anterior, o mesmo elenco de sempre, mas pode reservar surpresas, e isso, à falta de tudo, parece provisoriamente bom.
A questão que me interessa agora é mais retrospectiva do que prospectiva: por que Dilma Rousseff, por um mágico estalo de dedos -"fiat Dilma!"- foi eleita duas vezes? Por que uma pessoa tão inextricavelmente inepta para a dimensão do cargo, por todas as evidências mais gritantes, foi ungida à condição de tocar o país?
Duas vezes -na primeira, com sobra de votos; na segunda, raspando o travessão e às custas de uma campanha grotesca. Derrotada na vitória, tentou colocar em prática a política econômica de "direita" (para ficar nesses termos já sem sentido), porque, afinal, um país quebrado precisa com urgência produzir riqueza e a esquerda, infelizmente, ainda não descobriu a fórmula.
Nada deu certo, e uma inesgotável maré de corrupção continua a exalar um invencível mau cheiro em torno do governo que saiu, onde quer que se aponte o nariz.
O chavão diz que o Bolsa Família elegeu Dilma, como se fôssemos uma Suazilândia constituída de hordas de miseráveis atrás de um prato de sopa. Obviamente, não -quem elege presidente no Brasil é a nossa imensa e bruta classe média urbana, rebatedora de opinião, sob o sopro onipresente do que se pode chamar de moderna consciência social.
É uma nuvem difusa, um poderoso Brasil nefelibata que, desde Cabral, de alto a baixo, ama o Estado. Nos auditórios acadêmicos de prestígio, o país vive renitentemente o sonho de Platão. No fundo da caverna de sombras, a realidade é só uma lembrança paradisíaca a ser resgatada, de acordo com um sagrado modelo em sépia.
Boa parte da inteligência brasileira, como o filósofo em Siracusa, achou que havia tomado o poder, doravante seu irmão e seu companheiro, e o fim da história estava próximo, pela confortável força das ideias. O intelectual talvez tenha-se imaginado governo, e viu que aquilo era bom.
O pobre do Custódio da Confeitaria nem precisava se afligir com a mudança -para nossa felicidade, mais uma vez houve apenas o simples triunfo da política sobre o vazio.
(*) Cristovão Tezza, 63, é escritor. Publicou, entre outros, os romances "Trapo"(1988), "O Fotógrafo" (2004),"O Filho Eterno" (2007) e "O Professor" (2014)
Fonte: Folha de São Paulo (15/05/16)
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