Michel Temer assume interinamente a Presidência da República em meio à mais grave crise enfrentada pelo país desde a sua democratização. A crise é multidimensional, afeta a economia, a política e o sistema de valores da vida pública.
Ela se caracteriza pelo fato de que cada uma dessas dimensões retroalimenta as demais, em processo contínuo de agravamento.
A principal implicação é que quem se dispõe a resolver a crise não pode isolar apenas uma das dimensões para agir, mas tem de considerar os efeitos combinados dessa dinâmica sobre o conjunto, algo a que Dilma Rousseff não deu a devida atenção.
Essas características tornam gigantesco o desafio de quem, por exigência constitucional, deve solucionar os problemas. Temer estará preparado para enfrentar a oportunidade posta diante dele?
Dilma e os seus defensores nem aceitam que a pergunta seja formulada nesses termos, pois contestam a legitimidade do vice para exercer o poder, mesmo interinamente.
Parecem ignorar que a legislação eleitoral exige que um candidato a presidente e seu vice se apresentem juntos aos eleitores, em chapa única, cuja definição radica no entendimento prévio de seus partidos.
Omitem assim o fato de que os 54 milhões de votos dados a Dilma em 2014 também foram dados ao vice que ela escolheu.
Uma objeção diferente se refere a uma consideração teórica sobre o conceito de legitimidade. Não bastaria a definição formal desta, segundo alguns, pois o que consolida a legitimidade dos atores políticos é o seu desempenho. É nesse terreno, portanto, que se situariam as questões mais cruciais a desafiar o novo presidente.
O Brasil vive uma recessão aguda. O nó fiscal e o rombo de contas públicas alimentam a inflação e um desemprego alarmante, tudo agravado pelo conflito entre o Legislativo e o Executivo e por um sistema partidário hiperfragmentado.
Dirigente de um partido identificado com as práticas de fisiologismo, conseguirá o presidente interino fazer a economia voltar a crescer e, ao mesmo tempo, atender a demanda por mais serviços de saúde, educação e segurança com qualidade, reconquistando a confiança dos brasileiros nos políticos e nas instituições democráticas?
A montagem do ministério deu indicações de como Temer pretende enfrentar o desafio da governabilidade. Montou uma sólida coalizão de centro, apoiada no PMDB, PSDB, DEM e PP, entre outros, indicando querer governar com o Congresso e priorizando medidas esperadas pelo mercado, como a reforma da Previdência.
Cortou ministérios, em decisão mais simbólica do que efetiva, e anunciou que pode diminuir o número de cargos comissionados, mas, mesmo tendo defendido a Operação Lava Jato, ignorou a grita para que não incluísse no governo políticos denunciados por malfeitos.
Tampouco se definiu sobre a necessária reforma política, embora tenha falado em pacificação das forças políticas e em "salvação nacional".
Os rumos da crise abriram uma janela de oportunidade para a democracia brasileira se aperfeiçoar, e isso não diz respeito apenas à retomada da economia e ao combate à corrupção.
Temer está diante de enorme chance de marcar sua passagem pelo poder como um governante inovador, algo para o que a sua habilidade de negociador político o credencia, mas não pode errar e separar as iniciativas econômicas das que dizem respeito ao necessário aperfeiçoamento do sistema político.
(*) José Álvaro Moisés, 70, professor de ciência política da USP, é editor do site Qualidade da Democracia e autor de "A Desconfiança Política e seus Impactos na Qualidade da Democracia" (Edusp)
fonte: Folha de São Paulo (14/05/16)
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