A narrativa do golpe se desdobra agora numa visão cataclísmica do governo Temer. Há quem veja no ar o espectro de uma reação conservadora que lançará por terra todas as conquistas democráticas do povo brasileiro. Alguns não hesitam em comparar o quadro atual ao da instalação do primeiro governo autoritário depois do golpe militar de 1964.
Não se sabe até que ponto a paranoia é real, até que ponto é mera fabulação política para alimentar o discurso do PT na oposição. O certo é que essa visão é um despropósito: onde estão os tanques na rua, os Inquéritos Policiais Militares, a cassação de políticos e funcionários públicos, ou seja, o rol de arbitrariedades que a ditadura não tardou a adotar? Não há no quadro atual um traço sequer de semelhança com o daquele outono, 52 anos atrás. Hoje o que se tem é um governo interino que assumiu o poder em conformidade com a Constituição e o rito definido pelo STF para o processo de impeachment, sem um arranhão às liberdades democráticas.
Seria o governo Temer o mais conservador desde o retorno do País à democracia? Tenho minhas dúvidas. Não tenho nenhuma, porém, quanto a ter sido o governo Dilma o mais desastroso não apenas nesse período, mas em toda a História da democracia no Brasil, com a possível exceção da breve gestão de Jânio Quadros, cuja renúncia irresponsável empurrou o País ladeira abaixo em direção ao golpe de 1964.
Conservador, assim como progressista, é um termo que se emprega no Brasil com grande licença poética. Seria conservadora a constatação de que a rigidez do orçamento, nos três níveis de governo, chegou a tal extremo que o gasto da União, dos Estados e municípios se tornou virtualmente incontrolável, pondo o País na rota da insolvência fiscal, com colapso de serviços públicos, como já se vê em alguns lugares? Caberia igual adjetivo à disposição política para enfrentar essa situação com reformas que reequilibrem as contas da Previdência Social, assegurando o pagamento das aposentadorias no futuro, e afastem os riscos de o País retornar à inflação cronicamente alta e/ou à rotina de calotes da dívida pública? De igual maneira, mereceria essa qualificação a ênfase num programa de privatizações de ativos e concessões de serviços públicos capaz de reduzir o endividamento do Estado e impulsionar o investimento privado em infraestrutura? Em todas essas questões o governo Temer representa grande avanço em relação ao antecessor. E os primeiros sinais são animadores, pela clareza de objetivos e pela qualidade da equipe escolhida para realizá-los.
O mesmo se pode dizer da política externa, agora sob o comando do senador José Serra. Seria conservadora uma linha de clara independência em relação aos regimes bolivarianos e de repúdio às violações à democracia e aos direitos humanos nos países onde eles sobrevivem? Também nessa área o governo Temer começou marcando diferença, para melhor, dos governos lulopetistas, haja vista a nota emitida pelo Itamaraty, em 13 de maio, condenando o relato dos governos de Venezuela, Cuba, Equador, Bolívia e Nicarágua e do secretário-geral da Unasul sobre impeachment da presidente Dilma. Relato ofensivo não a este ou àquele governo, mas às instituições da democracia brasileira. A nomeação do deputado Raul Jungmann para o Ministério da Defesa é outro sinal positivo. Entre outras razões, porque a presença de um ex-militante do Partido Comunista Brasileiro naquele ministério, em substituição a um membro do PCdoB, mostra o quanto amadureceram as relações entre militares e civis, cabendo a estes o comando das Forças Armadas.
Também infundada é a visão de que a área social seria submetida a uma política de terra arrasada. Ela decorre da premissa errada de que a expansão dos direitos sociais no Brasil é obra exclusiva do PT. Revela profunda incompreensão da própria dinâmica de uma democracia de massas num país com muitos pobres, onde a competição política impulsiona os governos a gastar na área social. A diferença maior reside em fazê-lo de forma clientelista ou não, populista ou não, sustentável ou não, menos ou mais eficaz para superar a pobreza e reduzir as desigualdades. O deputado Osmar Terra, nomeado ministro do Desenvolvimento Social, ocupou a secretaria executiva do programa Comunidade Solidária no governo FHC. Nem de longe é um conservador que come criancinhas.
Porém, como diz a velha piada, o fato de alguém ser paranoico não significa que não haja alguém o perseguindo. No Congresso, muito especialmente na Câmara, existe uma maioria conservadora, de tamanho variável em função do tema em pauta, mas forte o suficiente para promover retrocessos na legislação ambiental, nos direitos reprodutivos da mulher, no direito de família, no Estatuto do Desarmamento e mesmo na pesquisa científica. Essa maioria conservadora, que tem como alvo a geração mais recente dos direitos individuais e coletivos, pode cobrar um preço alto para aprovar as reformas fiscais de que o Brasil necessita.
A constatação do risco de retrocesso no campo dos direitos acima mencionados não deve levar a uma visão cataclísmica do governo Temer, muito menos à nostalgia pelo desastroso governo de Dilma Rousseff. Para defendê-los as forças políticas com valores afins nesse campo, não importa a posição em relação ao impeachment, devem atuar em conjunto nas esferas jurídica e política. Será um passo importante na configuração de alianças suprapartidárias. Elas podem revelar-se especialmente produtivas se caminharmos para um sistema de governo semipresidencialista, com maior protagonismo e responsabilidade do Congresso, em que a representação parlamentar ganhe maior densidade temática.
Uma coisa é certa: a disputa em torno dos “novos” direitos será cada vez mais dura. É preciso preparar-se para enfrentá-la.
(*) Sérgio Fausto é superintendente executivo do IFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of public policy da Rice University, é membro do Gacint-USP.
Fonte: O Estado de São Paulo (22/05/16)
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