Quatro anos após a Constituição de 1988, o Executivo entrou em colapso, levando à remoção do presidente Collor. Agora, passados 24 anos, a Presidência voltou a entrar em colapso, provocando o afastamento da presidente Dilma pelo Senado.
Seríamos uma sociedade intrinsecamente corrupta, como querem os que pretendem justificar seus próprios crimes contra a ordem democrática de direito? Seríamos vítimas de uma elite cevada num patrimonialismo atávico? Longe disso.
A substância de nosso sistema político evoluiu para melhor. A sociedade tornou-se mais igualitária, mais diversa, mais instruída. Sua representação política se apequenou e o colapso da Presidência se acelerou, mas o povo tornou-se mais cônscio de seus direitos e mais exigente. A máquina do Executivo, a Justiça e a polícia cresceram, modernizaram-se e se profissionalizaram.
A classe política incorporou, em poucos anos, uma nova elite ligada ao movimento sindical, como bem demonstraram as pesquisas de Leôncio Martins Rodrigues. O sistema partidário abriu espaço à criação, ao crescimento e ao exercício do poder, para uma representação partidária autônoma de parcelas da sociedade, com participação até então limitada, na elite dirigente do País.
A semente da corrupção do regime político está naquilo que não acompanhou a crescente modernização e complexidade de seus atores, tornando-se disfuncional: o regime de governo e o regime eleitoral.
O que corrói nosso presidencialismo é a criação de duas representações legítimas e independentes da soberania popular. Nada impede que a maioria presidencial e a maioria legislativa sejam divergentes.
A legitimidade do Executivo é dada pelo voto popular, mas sua capacidade para governar depende de delegações específicas do Legislativo. Legítima ou não, sua capacidade de governar depende da qualidade do relacionamento da Presidência com o Legislativo e a elite política em geral. Nada exclui o que os americanos chamam de governo dividido, quando uma ou ambas as Casas podem ser dominadas pela oposição.
O único remédio do Executivo para evitar sua paralisação, quando em minoria no Parlamento, é confiar num arranjo tácito, ou negociar coalizões interpartidárias ocasionais. Quando faltam à Presidência, como no caso dos governos petistas, incentivos inescapáveis para trilhar o caminho da negociação, resta apenas a solução de revogar o veredicto das urnas, isto é, o impeachment.
O parlamentarismo não resolve todos os problemas, mas elimina esse impasse potencialmente fatal, porque extingue a dupla soberania: esta se expressa unicamente numa instância, a maioria parlamentar. O chefe de Estado, como quer que seja investido, não representa os cidadãos. Os impasses que venham a surgir se originam no Parlamento e nele são resolvidos.
O potencial de conflitos do presidencialismo brasileiro é exponenciado pelo regime eleitoral. O voto proporcional tira do eleitor o direito de controlar para quem se destinou o seu voto. Estima-se entre 60% e 75% o total de votos proporcionais dados a candidatos que não conseguem eleger-se, votos que são computados para eleger sabe lá Deus quem. É o paraíso da irresponsabilidade do eleito perante o eleitor. É o que confere ao eleito a prerrogativa de representar exclusivamente seus próprios interesses.
O voto proporcional foi criado há séculos para favorecer minorias, dispersas em grandes áreas territoriais, contra as maiorias crescentemente concentradas em agrupamentos urbanos. No Brasil foi introduzido com a intenção oposta, de reduzir a representação dos coronéis, cujo poder de encabrestar votos seria diluído diante da massa de votos urbanos. Deu nos grotões e na infestação de nanicos.
O sistema proporcional favorece os que colhem poucos votos num grande número de urnas. Tende a eleger celebridades, expoentes do radicalismo e da intolerância e alguns líderes religiosos que jamais obteriam a maioria dos votos num território delimitado. Certo, também favorece minorias religiosas, étnicas, nacionais, de gênero. Mas tende a favorecer os candidatos que mais se destacam pelo discurso extremado, em detrimento dos interesses mais gerais dessas minorias.
Combinado com os subsídios do Fundo Partidário e a distribuição de tempo de televisão, o voto proporcional exponencia o número de agremiações sem representatividade nacional e sem convergência programática, mas eficazes na construção de coalizões de veto, que obrigam o Executivo a negociar favores a cada votação mais relevante.
Muitos o comparam ao seu extremo oposto, o regime majoritário simples, em que se elege o candidato mais votado em cada circunscrição, o que representa artificialmente as maiorias. Outro regime lembrado é o misto, em que o eleitor tem dois votos: um proporcional, em lista partidária, e outro majoritário. É uma arquitetura intelectualmente elegante, mas os alemães levaram bem mais de uma década para entender como funciona.
Uma alternativa mais simples é o semipresidencialismo francês, com eleição distrital em dois turnos. O segundo turno obriga os partidos e os eleitores a se decidirem por afinidade programática para obterem a maioria, diminuindo o número de partidos competitivos, mas sem eliminar a representação minoritária da esquerda e da direita radicais. No semipresidencialismo francês, ele tende à formação de alianças programáticas entre os dois partidos mais alinhados e capazes de formar uma maioria.
O semipresidencialismo elimina o conflito inerente ao presidencialismo e evita crises institucionais quando o Executivo perde a maioria. E a eleição distrital do Legislativo em dois turnos restringe fortemente a irresponsabilidade dos eleitos perante o seu eleitorado.
(*)José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular de Ciência Política da USP e autor do Kindle Book 'Memorial do Medo. Os primeiros passos da ditadura'
Fonte: O Estado de São Paulo (14/05/16)
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