De início, gostaria de deixar bem claro um entendimento: cada um emprega as palavras como bem quer, e a essa liberdade semântica pode-se, inclusive, chamar licença poética. O meu objetivo aqui, portanto, não é censurar aqueles usos modulados por intenções retóricas ou apelos publicitários próprios ao marketing político. Particularmente, entretanto, sempre desconfiei da intervenção de uma tecnologia da persuasão própria ao mundo do mercado capitalista no terreno da formação das convicções políticas, mormente no contexto de uma cidadania como a nossa, de baixo esclarecimento e contumaz falta de acesso à educação formal – coisas por si só suficientes para transformar a propaganda política sobre um suposto “golpe de Estado” em motivo de alarme e insegurança reais. Assim, muito antes de buscar polêmica, esse artigo declara-se respeitoso de opiniões divergentes e procura, sobretudo, fixar uma posição de princípio em defesa da constitucionalidade do impedimento, e procura fazê-lo independentemente dos resultados da votação que hoje ocorrerá.
No mundo do marketing político, o recurso ao exagero, à proposital imprecisão e aos sentidos mais capciosos e trocadilhescos cumprem perfeitamente suas funções de busca da captura afetiva, processo sobre o qual se afirma certa “esquerda” que abandonou suas antigas bases para viver as delícias da eficiente máquina publicitária capitalista, remunerando-a regiamente com dinheiro público e contando com ela até para lavar valores ilícitos no circuito das mais hediondas máfias político-financeiras internacionais.
Contudo, o uso propositalmente deformante de conceitos em tal registro propagandístico produz atropelos que envolvem um custo imenso quando passamos a falar na preservação da cultura institucional de nosso Estado Democrático de Direito. E isso em especial quando tais empregos insistem em jogos de linguagem (Wittgenstein) cujo contexto pragmático, orientado por planos políticos de ocasião, ignoram sucessivas refinações semânticas suportadas pelos conceitos ao longo de seus usos mais estritos, precisos e científicos. Vejamos, pois, como tais considerações ajudam a compreender o terrorismo institucional que se deflagrou para que um governo, implicado até o pescoço em diversos casos de corrupção, conseguisse deixar de lado tais questões e passasse a difundir o pânico de que estaríamos à beira de um colapso de nossas instituições, configurado por uma agressão ao “Estado Democrático de Direito” e pela iminência de um “golpe de Estado”.
Para uma semântica da palavra "Golpe"
A palavra golpe nos chega pelo latim vulgar colpus, anteriormente grafada colaphus, “bofetada, soco, murro”, originando-se, por sua vez, do grego kálaphos (κάλαφος), “tapa na cara, golpe na face”. Ou seja: a partir da analogia que se procura nesse gesto, compreende-se o golpe como uma medida enérgica e repentina contra uma ordem institucional. E ninguém precisa ser um grande cientista político para constatar que Dilma Rousseff não sofreu nenhum solapamento súbito. Muito antes pelo contrário: a sua sustentação popular e parlamentar veio paulatinamente erodindo-se até o limite da ingovernabilidade desde as manifestações de junho de 2013, coisa perceptível em estrondosas vaias (como a da Copa do Mundo), sonoros panelaços e múltiplas defecções da sua “base aliada”, outrora fidelizada à custa do Mensalão que produziu as condenações da Ação Penal 470 no STF.
Assim, observado até sem maior atenção, nada do que se orquestra contra a Presidente Rousseff ocorreu de súbito ou às escuras, diferentemente do que se passava na prática dos sórdidos operadores do Mensalão e do sistema de subornos da Petrobras, tantas vezes aclamados como heróis nos encontros de seu partido. Vivemos portanto o ápice de uma perda da credibilidade com tristes consequências na deterioração da economia e que fora combatida à custa (1) de caríssimas campanhas publicitárias, inclusive pagas com dinheiro oriundo de corrupção (lembremos da prisão do marqueteiro João Santana e sua esposa); (2) de uma obscena distribuição de cargos aos segmentos mais abjetos da política brasileira; e (3) de uma violentíssima repressão das manifestações populares, que há muito se vale das forças da ordem e dos serviços de inteligência.
Golpe de mestre, golpe do baú, golpe de misericórdia, golpe de sorte são algumas expressões de uso corrente formadas a partir da palavra golpe. Outros idiomas, como é o caso da língua de Moliére, emprestam de modo muito mais prolífero esse vocábulo (coup) na gênese de centenas de ocorrências vernaculares. Falando há pouco com um colega tradutor e linguista, ele me assegurou que, em francês, as expressões que envolvem a palavra golpe (coup) seguramente ultrapassam as 200 ocorrências.
Pois bem, foi justamente de lá, da língua francesa, que se disseminou pelo Ocidente a atual expressão coup d’État, (golpe de Estado). Isso deveu-se ao pioneiro livro Considérations politiques sur les coups d’État (Considerações políticas sobre os golpes de Estado), publicado pelo bibliotecário Gabriel Naudé em 1639 e dedicado ao cardeal romano Bagni. Distante dos gabinetes dos príncipes, a proximidade dos poderosos granjeada por Naudé perseguia a mesma estratégia de Maquiavel: a bajulação em defesa da violência e as prontas justificativas da dissimulação de um Soberano que buscava preservar seu poder a todo custo. Dessa maneira, àquela época, antes do advento do constitucionalismo moderno, o tal golpe de Estado (coup d’État) era justamente aquilo que o próprio Soberano deveria praticar para se conservar no poder. Confundindo-se até mesmo com as razões de Estado (raisons d’État), esse golpe, em um contexto absolutista, era dado pelo próprio Soberano – e não sofrido por ele –, como ocorre na doutrina moderna. Interessante, não? Pois bem, são exemplos de golpe de Estado, para Gabriel Naudé, o massacre dos huguenotes na Noite de São Bartolomeu, ordenado por Charles IX; as carnificinas perpetradas pelas legiões romanas sob o comando de César e até a chacina dos indígenas pelos espanhóis na tomada do Novo Mundo. Contudo, o golpe de Estado e a justificação da barbárie a serviço da manutenção do poder pelo Príncipe encontram ainda outras vias, bem mais suaves e diretamente voltadas ao ludibrio do povo: “manipulá-lo e persuadi-lo com palavras bonitas, seduzi-lo e enganá-lo pelas aparências, ganhá-lo e desviar os seus desejos por pregadores e milagres sob o pretexto da santidade ou por meio de bons escritos, fazendo libelos clandestinos, manifestos, apologias e declarações artisticamente compostas para conduzi-lo pelo nariz e lhe fazer aprovar ou condenar, sob a mera etiqueta da bolsa, tudo o que nela se contenha” (Naudé 1639: 56, tradução minha). Em outras palavras, a noção mais antiga de coup d’État concebia também a mentira e a burla como meios plenamente eficazes de recrutamento da opinião pública, pois quando o povo sofresse esse tipo de golpe, era recomendável que não notasse.
A rigor, a noção de ruptura institucional já era valiosa e bem conhecida pelos antigos. Ela remonta à História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, e A Constituição de Atenas, de Aristóteles. Ambas comentam como revolução o golpe de Estado de 411 a.C., promovido em Atenas após a sua fragorosa derrota na campanha de Siracusa, concebida por Alcebíades, uma espécie de Delcídio do Amaral da Antiguidade. Em pleno declínio na Guerra do Peloponeso, uma junta oligárquica paralisa a assembleia popular ateniense, demite todos os magistrados, suspende a jurisdição e modifica a Constituição. Já estava-se aí nitidamente diante de um golpe de Estado. À vista disso, a doutrina contemporânea do golpe de Estado sofreria uma importante inflexão: aquela que tiraria do Monarca a prerrogativa de soberano absoluto, passando-a para o povo e seus representantes, de tal modo que qualquer atentado contra um soberano legitimamente investido tornava-se um ataque contra o próprio povo (a esse respeito, veja-se Gossez, 2001). Mas, para tal clareza, teríamos de esperar mais de 2.000 anos, até que Karl Marx publicasse, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, a sua célebre abordagem de um golpe de Estado em sentido atual, aquele promovido por Napoleão III em 1851, e que, por seu turno, recordava justamente um feito semelhante e anterior de seu tio, Napoleão Bonaparte, que, em 1799, fechara a Assembleia do Diretório e instituíra o Consulado do qual se fez chefe supremo.
Dilma e o alarmismo institucional-publicitário
Quem hoje adere à propaganda governista do “golpe de Estado”, anuncia a iminência de uma clara ruptura institucional, politicamente ilegítima e juridicamente afrontosa à Constituição. Preocupa-me assim que logo a Presidente da República pronuncie-se com tanta ênfase afirmando que está em curso “um golpe de Estado” contra o seu Governo, determinando inclusive ao corpo diplomático brasileiro que soe o alarme no exterior a fim de que as nações amigas acudam à tentativa supostamente ilegal de seu apeamento, o que gerou um silêncio obsequioso e constrangedor da parte dos chefes de Estado mundo afora. Cabe até indagar, em outro eixo de análise, qual seria, no plano dos investimentos internacionais, a repercussão deletéria dessa campanha que alardeia aos quatro ventos um “golpe de Estado” no maior país da América Latina. Quantos bilhões de dólares a nossa economia perderá ao inibir a atração de importantes negócios com essa anunciada instabilidade jurídico-política? Quanto custará à nossa credibilidade mundial uma aventura publicitária dessa proporção?
De outro lado, intelectuais e artistas fiéis ao Governo desencadeiam “campanhas pela democracia” que se reivindicam “contra o golpe”, enquanto silenciam convenientemente a respeito dos acintosos desastres éticos de uma gestão catastrófica e associada às mais elaboradas cadeias de corrupção, as quais, inclusive, a sustentam eleitoralmente. Dessa forma, rapidamente, tais “ameaças à estabilidade institucional” reclamam movimentos de “união nacional pela democracia”, “comitês pelo Estado Democrático de Direito” e “contra o golpe”, sob a liderança da figura carismática de Lula.
Entretanto, desde uma perspectiva constitucional, o processamento do impeachment – cujo rito vem sendo estritamente fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com toda a clareza e publicidade (as sessões chegam a ser transmitidas pela televisão), assegurada ainda a ampla defesa –, não há nunca de ser chamado de “golpe” e, muito menos, de “golpe de Estado”. Golpe de Estado é, isso sim, um atentado à ordem instituída caracterizado por procedimento rápido, vigoroso e perpetrado ao arrepio da lei e da Constituição, via de regra mercê do emprego da força militar coativa. Assim, é próprio à dinâmica do golpe de Estado um tipo de agilidade que, impondo surpresa aos seus adversários, cuida de se precaver contra eventuais resistências.
Soberania e julgamento político: Notas sobre o caso Vargas
De Jean Bodin (Six livres de la République, 1576) aos dias de hoje, a concepção geral da soberania modificou-se profundamente no Ocidente. Deixou de ser uma prerrogativa divina (Bossuet) ou só do monarca e passou para o povo, que a exerce diretamente ou por seus representantes. É necessário então lembrar que, em nosso sistema jurídico-político, o titular da soberania (isto é: o detentor do poder supremo de dizer o Direito) não é o Presidente da República, mas sim o próprio povo, que a exerce diretamente ou se faz representar no Parlamento. É essa a concepção adotada por nossa Carta de 1988: e esse poder supremo, representado pelo Congresso Nacional, é tão imenso que não é usado apenas para fazer leis, mas inclusive para mudar a própria Constituição (Poder Constituinte Derivado). É dizer: a legitimidade constitucional para o processamento e julgamento do impeachment deflui diretamente do parágrafo único do art. 1o da Constituição: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”. E os tais “termos da Constituição” estão logo presentes no seu artigo 14 e incisos: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular.”.
Das eleições diretas à iniciativa popular, passando-se pelo plebiscito e o referendo, a soberania do povo detém o poder supremo de mudar a Constituição, de redefinir o sistema e o regime de governo e até de interferir na estrutura do Supremo Tribunal Federal. Do ponto de vista do Poder Executivo, tal concepção de soberania popular ainda envolve o controle judicial da constitucionalidade e da legalidade dos atos da Administração, a qual, por sua vez, deve ainda se sujeitar à accountability, palavra de origem inglesa que exprime o dever de os mais altos mandatários políticos prestarem contas de seus atos em um regime ético de máxima transparência, capaz de possibilitar a efetiva fiscalização pela cidadania e de ensejar a mais rápida responsabilização dos agentes públicos. Todavia, em vez de exaltarem essa soberania como princípio constitucional máximo e capaz de sugerir um caminho democrático para a saída dessa crise (através, por exemplo, da convocação de eleições gerais), o que têm feito muitos intelectuais governistas? Apostam no pânico gerado pela estigmatização publicitária de “um golpe de Estado”, quando, em verdade, se está diante de um procedimento no qual uma Presidente (eleita com 54,5 milhões de votos) é julgada pela própria representação parlamentar dessa mesma soberania constitucionalmente enunciada (que ao todo concentra a vontade expressa em mais de 93 milhões votos, segundo o Tribunal Superior Eleitoral).
Dirão muitos que a corrupção também entranha-se visceralmente no Poder Legislativo, dirigindo-se aí um justíssimo j’accuse ao pérfido Eduardo Cunha. Ao que responderei: politicamente, estou de pleno acordo com isso. No entanto, estamos diante de um órgão colegiado que se integra pelos mandatos de 513 parlamentares, dentre os quais todos que não forem cassados estão plenamente aptos a proferir os juízos e a votarem no processo de impedimento. É essa a regra nomogênica de um Estado de Direito: normas e atos não são nulos ou autorizações não são cassadas até que o poder competente para sustá-los assim o faça. Desse modo, inconstitucionalidade e nulidade não são, em um Estado de Direito, meras questões de opinião jurídica ou perspectiva ideológica, mas sim o fruto do exercício efetivo de certas competências invalidantes, delegadas pela própria Constituição a autoridades específicas.
A questão aqui, portanto, não é ser contra ou a favor do impeachment por razões políticas ou morais, mas sublinhar que ele é uma saída plenamente constitucional e indiscutivelmente decorrente de nossa soberania popular de expressão parlamentar, em cujo interior se dão as tomadas de posições partidárias em “amplíssimo grau de liberdade discricionária”, como é preconizado pelo próprio constituinte e confirmado por nossa Corte Constitucional, isso apesar de todas fragilidades e limitações intrínsecas ao instituto do impedimento, como discutirei mais adiante.
Peço então vênia aos meus amigos juristas e cientistas políticos por estar lembrando, e de modo talvez excessivamente sumário, essas lições que fazem parte da formação mais elementar de cada um de nós que aprendeu tais tópicos desde os primeiros cursos de Teoria Geral do Estado, Ciência Política e Direito Constitucional. Entretanto, são justamente essas lições cruciais que vêm sendo esquecidas em nome de alinhamentos de ocasião que buscam salvar um Governo decadente enquanto sacrificam o direito ao esclarecimento de uma opinião pública capturada pela publicidade disposta a ocultar interesses espúrios sob a gramática grandiloquente do Estado de Direito.
No verbete “golpe de Estado”, da lavra de Carlos Barbé, no Dicionário de Política de Norberto Bobbio, há a seguinte passagem: “Na grande maioria dos casos, o Golpe de Estado moderno consiste em apoderar-se, por parte de um grupo de militares ou das forças armadas em seu conjunto, dos órgãos e das atribuições do poder político, mediante uma ação repentina, que tenha uma certa margem de surpresa e reduza, de maneira geral, a violência intrínseca do ato com o mínimo emprego possível de violência física.” (Bobbio, 1998). Concepção semelhante é esposada pela doutrina da validade e da eficácia global de uma Nova Constituição Histórica que, segundo Hans Kelsen, pode envolver tanto o golpe de Estado como “toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as determinações da mesma Constituição” (Kelsen, 1998: 146). Assim, o objetivo de qualquer golpe de Estado seria a instauração de uma nova ordem jurídica, o que está muitíssimo longe de acontecer entre nós, à diferença completa do que outrora se passou, por exemplo, com o golpe militar de 1964, ou com a sua primeira tentativa, de 1961, abortada pela heroica insurgência popular-militar organizada pela Cadeia da Legalidade comandada por Leonel Brizola desde Porto Alegre.
Com efeito, é importante também recordar que, antes mesmo do caso Collor, o Brasil já teve outras tentativas de impeachment, como as de Getúlio Vargas em 1953 e 1954. Vargas foi formalmente acusado, perante o Congresso Nacional, em 1953, de favorecer o empresário Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, na obtenção de um empréstimo junto ao Banco do Brasil. Essa denúncia foi logo arquivada, mas, em 1954, acusado de ser o mandante do atentado da Rua Toneleros e de outros desmandos de sua chamada “república sindicalista”, Vargas novamente sofreu um processo por crime de responsabilidade perante o Congresso Nacional. Ele então exerceu o seu direito de defesa e enfrentou a tentativa de impeachment exatamente no seu terreno mais delicado: o político. Para tanto, exonerou o parlamentarista Gustavo Capanema, há muitos anos o seu Ministro da Educação, para que este assumisse sua vaga como deputado e comandasse a defesa do Governo no Parlamento. Foi assim que, no dia 16 de junho de 1954, o seu impeachment foi votado e fragorosamente derrotado por 136 votos a 35 e 40 abstenções. Na mesma tarde, Vargas daria expediente normal no Palácio do Catete.
Importa notar que a Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079 de 1950), segundo a qual Getúlio Vargas foi julgado, é exatamente a mesma – hoje constitucionalmente recepcionada pelo STF – usada para o processamento de Collor e que também julgará Dilma. Aprovada no esteio do fracasso do projeto parlamentarista na Constituição de 1946, a Lei 1.079/50 teve como um de seus grandes articuladores Raul Pilla, um médico e político gaúcho do Partido Libertador, que viveu entre 1892 e 1973 (Lemos, 2000). Entusiasta ferrenho do parlamentarismo, ele seria um dos inspiradores diretos de Paulo Brossard no mesmo Partido, cultivando ainda toda uma geração de simpatizantes de tal sistema político. Pilla inicialmente apoiou Getúlio Vargas na Revolução de 1930, acabando mais tarde por romper com o líder gaúcho e somar-se aos paulistas no levante constitucionalista de 1932. Pois bem, foi justamente Raul Pilla, autor do famoso Catecismo Parlamentarista, um dos idealizadores da Lei de 1.079 de 1950 – a Lei dos Crimes de Reponsabilidade –, demonstrando-se por aí a sua inegável matriz parlamentarista na concepção de um tipo de controle político da boa gestão do Executivo pelo Legislativo. E, fato ainda mais surpreendente, é que seria o mesmo Pilla um dos articuladores do “golpe parlamentarista” que assegurou, mediante pressão militar, a posse de Jango com poderes reduzidos em 1961. Lacerdista e favorável ao golpe de 1964, Pilla acabaria os seus dias protestando contra o superpresidencialismo das eleições indiretas levado a termo pela Ação Renovadora Nacional (Arena), braço civil dos militares, esses sim, golpistas.
Eis aí o indício de um grave defeito estrutural do nosso impeachment: o dispositivo dos artigos 85 e 86 da Constituição de 1988, presidencialista, remete a uma vetusta lei de 1950, aprovada sob franca sugestão de uma ideia de controle dos atos do governo que, no fundo, compreende o julgamento do Chefe do Executivo muito mais como uma reprovação política de seu desempenho administrativo (provocando a perda do mandato) do que como um ilícito típico no sentido estritamente penal (ao qual se cominariam penas em sentido próximo ao modelo inglês). E agora, para agravamento de um caso já por si delicado, todo esse choque de concepções entre um julgamento político de inspiração destituinte-parlamentarista e a longa duração do mandato presidencialista, simplesmente desaparece sob o furor publicitário do “golpismo”, que, de mais a mais, ainda eclipsa (1) o esclarecimento da opinião pública a respeito do uso de manobras contábeis para se maquiar o estado real das finanças federais e (2) a situação das relações da entourage da Presidente com diversos empresários que até já confessaram as suas práticas de corrupção.
Alguns aspectos técnicos do impedimento
Para além das disputas de versões que recorrem aos mais rocambolescos exageros retóricos, temos ainda um outro problema: o tal “crime de responsabilidade”, cuja configuração e apreciação envolve um julgamento jurídico-político por parlamentares. A pergunta que aí se impõe é a seguinte: podem (vejam bem: indago se podem, não se devem) as tais “pedaladas fiscais” configurar os indícios de um “crime de responsabilidade”? E a resposta jurídico-constitucional, inclusive chancelada pelo STF, parece ser afirmativa, mesmo porque necessita-se da abertura do processo para que tal “crime de responsabilidade” possa ser apurado, vez que ele envolve uma terminologia tecnicamente infeliz para tratar de infração de natureza administrativa julgada politicamente a partir de um rol legal de ilícitos bastante amplo e sobretudo constituído por um elenco de bens a serem protegidos. Ou seja: não estamos apenas diante de um crime no sentido estritamente penal, com uma perfeita definição de condutas fixada por verbos nucleares incontroversos. Então repito: no último dia 15 de abril, em Sessão Extraordinária, o Presidente do STF Ricardo Lewandowski afirmou, e por reiteradas vezes, que a natureza dos “crimes” de responsabilidade previstos nos artigos 85 e 86 da Constituição e na Lei 1.079/50 envolvem uma cognição com “amplíssima margem de discricionariedade” do órgão julgador, coisa que há de ser compreendida como um tipo de liberdade interpretativa movida pelos mais variados interesses e as mais heterogêneas cargas idiossincráticas. Outrossim, foi também este o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso que, ao discutir o rito do impeachment, assevera em seu voto que, “Apresentada denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, compete à Câmara dos Deputados autorizar a instauração de processo (art. 51, I, da CF/1988). A Câmara exerce, assim, um juízo eminentemente político sobre os fatos narrados, que constitui condição para o prosseguimento da denúncia.” (ADPF 378). Dessarte, em um julgamento “essencialmente político”, não há de se falar em impedimento ou sequer em imparcialidade dos julgadores, pois, como ainda aduz Barroso na mesma ADPF, a “diferença de disciplina se justifica, de todo modo, pela distinção entre magistrados, dos quais se deve exigir plena imparcialidade, e parlamentares, que podem exercer suas funções, inclusive de fiscalização e julgamento, com base em suas convicções político-partidárias, devendo buscar realizar a vontade dos representados.”.
É fundamental então recordar que a admissibilidade do impeachment pela Câmara dos Deputados pode envolver um juízo político sobre “as pedaladas fiscais” que compreenda constituírem elas um crime de responsabilidade sobretudo pelo volume estrondoso de recursos que movimentaram, concluindo-se por aí que haja indícios de uma desproporção jamais vista em contraste com outros governos, como os de FHC ou de Lula, os quais também se serviram desse mesmo expediente. Em outro sentido, as tais “pedaladas” ainda podem simplesmente não ser consideradas crimes de responsabilidade, e existem inclusive bons argumentos técnicos para que sejam entendidas como atos relativamente normais da administração federal, o que dependerá, ao fim e ao cabo, da liberalidade discricionária dos julgadores-parlamentares e de suas maiorias eventuais em um ato de autorização para o qual a competência constitucional da Câmara dos Deputados é indiscutível. Eis aí aquela que talvez seja a principal fragilidade do impeachment como instituto: ele se presta a operar como um estratagema interruptor de mandatos muito menos adequado que o recall (inexistente em nosso sistema) ou a moção de censura (também chamada voto de desconfiança) que há no parlamentarismo. Aliás, foi essa a tônica de uma observação que Paulo Brossard fez a seu respeito em um célebre artigo sobre o caso Collor, no qual aponta os muitos senões do impeachment ao mesmo tempo em que reconhece a efetividade de sua vocação destituinte: “[…] aquilo que no regime parlamentar se alcança em horas, sem cicatrizes e sem traumas, só foi obtido ao cabo de três longos meses de inquietação e incertezas.” (Brossard, 1993).
Ademais, a insistência do Governo em defender-se apenas da acusação das “pedaladas fiscais” adotou uma estratégia que pretende ignorar por completo as acusações de corrupção que envolvem a Presidente, o seu partido e o seu círculo ministerial mais próximo e por ela definido e demissível ad nutum. É dizer: a narrativa do “golpe” afirma insistentemente que as “pedaladas fiscais” são a única (e muito frágil) acusação do pedido de impeachment, o que é completamente falso, vez que a Operação Lava Jato, bem como seus desdobramentos que alcançariam inclusive a delação de Delcídio do Amaral (ex-líder do Governo no Senado), são mencionados por mais de dez vezes na peça de denúncia. Outrossim, respeitado o devido processo legal e as garantias de defesa, chega a ser mesmo irrelevante se essa delação premiada de Delcídio do Amaral, de conhecimento público, deveria constar no relatório da Comissão Especial, pois a ampla cognição e o livre convencimento dos julgadores-parlamentares simplesmente não deverá ignorá-la na formação de seus entendimentos favoráveis ou não à autorização de processamento pelo Senado dos crimes de responsabilidade.
Datada de 31 de agosto de 2015, a denúncia do impeachment efetivamente descreve um intrincado projeto de perenização no poder, capaz de ligar as “pedaladas fiscais” (praticadas às vésperas das eleições) a outros eventos e figuras direta ou indiretamente vinculados à Presidente da República. Portanto, para um debate minimamente honesto, é preciso assinalar, sobretudo para quem não teve a pachorra de ler tais documentos, que, na notitia criminis do pedido de impeachment, também constam explicitamente a acusação por crime eleitoral de Dilma Rousseff perante o TSE, bem como a conexão da Presidente com os esquemas de desvio de recursos da Petrobras por empreiteiras, tesoureiros do PT e inúmeras personagens obscuras que passaram a ser chamadas de “operadores do esquema do Petrolão”, muitos até mesmo arrolados como testemunhas de acusação por terem já suas delações premiadas homologadas pela Justiça (Paulo Roberto Costa, AlbertoYoussef, Ricardo Pessoa, Milton Pascowitch, Nestor Cerveró e Caio Gorentzvaig). Essa mesma petição solicitou – e sigo aqui apenas a descrevê-la – do Tribunal de Contas da União, do Tribunal Superior Eleitoral, do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região e da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, o envio da íntegra dos documentos relacionados às “pedaladas fiscais”, às contas de campanha de Dilma Rousseff e à Operação Lava Jato. Doravante, tais montanhas de papel, apensadas aos autos pela Comissão Especial do Impeachment, passaram a integrar uma parte essencial do universo probatório desse complexo processo. Reconhecendo então a natureza penal dos crimes de responsabilidade, a denúncia do impeachment igualmente abraça o hibridismo de tais ilícitos ao admitir a índole administrativa presente no juízo jurídico-político a ser proferido de modo irrecorrível pelo Senado, o qual deverá, ainda segundo seus argumentos, envidar esforços para uma ampla apuração da verdade material subjacente à narrativa apresentada. Subscrita por Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, em linhas gerais é essa a acusação original que, uma vez autorizada pela Câmara dos Deputados, será enviada ao Senado Federal.
Ao silenciar sobre os episódios da Operação Lava Jato que envolvem o desvio de dinheiro da Petrobras para alimentação de caixas eleitorais, e ao censurar como “seletiva” a prisão de diversos membros de seu partido (reitero: aplaudidos internamente de modo efusivo como “heróis” e até “mártires”), o Governo preferiu simplificar todo esse estado sutilíssimo de coisas, como se a denúncia se referisse apenas às mais inocentes e bem intencionadas medidas rotineiras de gestão pública: as “pedaladas fiscais” e os “decretos sem autorização legislativa”. E lembre-se que a continuidade dessa estratégia de defesa envolve ainda próprio Presidente do Senado Renan Calheiros, o arquimafioso escudeiro fisiológico de Dilma que outrora integrou a gorada tropa de choque da defesa de Collor em seu afastamento. Diante disso, não espanta que, sem poder defender-se moralmente da corrupção, a única saída restante para o Governo seja alimentar o delírio de uma tese conspiracionista e persecutória substanciada no compacto slogan “não vai ter golpe!”
Ora, mas se a Presidente com toda franqueza percebesse que, de fato, estamos à beira da deflagração de um genuíno “golpe de Estado” – situação na qual restam “a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional” –, ela deveria de pronto convocar o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional a fim de suspender direitos e declarar o Estado de Defesa, nos termos do artigo 136 da Constituição. E caso isso ainda não fosse suficiente para a manutenção da paz pública, ela poderia até tomar medida mais drástica, decretando o Estado de Sítio, nos termos do artigo 137 da mesma Carta, para controlar “comoção grave de repercussão nacional”. Por que então ela não faz nada disso? Em primeiro lugar, porque a sua retórica sobre “golpe de Estado” não passa de uma bravata publicitária e de um blefe político: qualquer um percebe que a paz pública reina nas manifestações populares tanto contra como a favor do Governo. E, em segundo lugar, ela não apela a esses drásticos mecanismos constitucionais de exceção porque, não sendo o Brasil uma República das Bananas, se ela ousasse, por algum disparate, qualquer medida dessa natureza, já estaria frontalmente infringindo a Lei dos Crimes de Responsabilidade, que considera “crime contra a segurança interna do país”, “decretar o estado de sítio, estando reunido o Congresso Nacional, ou no recesso deste, não havendo comoção interna grave nem fatos que evidenciem estar a mesma a irromper ou não ocorrendo guerra externa;” (Lei 1.079/50, art. 8o, item 3). Dito em termos mais explícitos: a Presidente sabe muito bem que, levada às últimas consequências constitucionais, a sua retórica de vítima de uma “golpe de Estado” iria conduzi-la, na melhor das hipóteses, a um outro processo de impedimento.
É claro que sabemos quem são muitos dos parlamentares que votarão pelo impeachment: réus e investigados da Lava Jato e de inúmeros outros processos, recebedores de propina das empreiteiras e de muitos outros esquemas. Eticamente, muitos julgadores estão comprometidos nesse processo, fazendo inclusive parte do mesmo esquema de corrupção que enreda a Presidente e seu partido. Juridicamente, entretanto, os mandatos de tais parlamentares (infelizmente!) não foram cassados, o que torna seus julgamentos, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado da República, plenamente válidos, sobretudo porque exprimem muitos milhões de votos populares, inclusive daquela que, goste-se ou não, é ainda a maior legenda partidária do Brasil, o PMDB. Em um texto anterior, no qual citava o Sermão do Bom Ladrão de Antônio Vieira, eu dizia que, desde o Brasil Colônia, o problema dos desmandos governamentais frequenta as crônicas do poder. Hoje posso dizer que já não importa tanto quem começou a corrupção, mas sim quem assumirá como necessário parar de negá-la com generalidades e condenações meramente abstratas.
Reconhecer que o impeachment não implica em nenhum “golpe de Estado”, isto é, admiti-lo como um instituto que integra o jogo político de nosso modelo institucional, não significa que se seja a favor da condenação da Presidente no Senado, com a consequente perda de seu mandato. Sobre o Governo Dilma, tenho apenas um conjunto de diagnósticos acerca do seu esgotamento a respeito do qual falarei mais adiante. Por ora, parece-me apenas que diversas ações suas claramente podem ser associadas, inclusive desde uma perspectiva jurídica mais estrita, aos resultados concretos dos crimes de responsabilidade imputados à Presidente e a serem assim apreciados pelo Parlamento. Entretanto, esse pode (que desenha os limites do âmbito da constitucionalidade) é distinto do deve (em cujo interior se exerce a discricionariedade jurídico-política de deputados e senadores). A primeira questão apenas aceita que o impeachment seja um processo constitucional que se abre justamente para investigar, apurar e configurar um possível crime de responsabilidade. A segunda, admite como válida qualquer resposta daí decorrente e que só pode ser dada no curso do julgamento definitivo desse próprio processo, que terá lugar em uma votação no Senado.
Corrupção e abalo ao Estado Democrático de Direito
A moderna concepção da legitimidade consagrou a doutrina da “eficácia global do ordenamento jurídico”. Isso significa dizer que as Teorias Constitucional e Política reconhecem que uma Constituição e suas emanações não precisam ser integralmente cumpridas para que um Estado de Direito mantenha-se enquanto tal. Violações na forma de descumprimentos, desobediências, ilegalidades e até inconstitucionalidades ocorrem a toda hora e são, em tese, sempre corrigíveis sem que o sistema como um todo quede ameaçado de falência.
Ademais, no mundo todo o paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito reorienta-se vigorosamente pelo combate à corrupção como uma forma de luta contra a concentração privada e ilícita dos recursos de origem comum. Exatamente por isso, a luta contra a corrupção não consiste apenas em uma mera cruzada moralista, mas representa sobretudo um embate violento pelas condições mais elementares de uma igualdade distributiva material. E, como tal, ela inscreve-se na mais antiga tradição socialista de denúncia do caráter injusto de uma acumulação capitalista que se serve das relações promíscuas entre o Estado e as classes dominantes, as quais inclusive nunca hesitaram no recrutamento de antigos militantes de esquerda como seus mais dóceis e fiéis serviçais capazes de afagar a opinião pública.
Em Portugal, o ex-Primeiro Ministro José Sócrates permaneceu mais de um ano preso só para ser investigado em seus inúmeros descalabros que, até hoje, ainda não substanciaram uma acusação formal. Na França, o ex-Presidente Nikolas Sarkozy teve suas escutas telefônica validadas pela Corte Constitucional, sendo levado coercitivamente e detido pela polícia mais de uma vez, arrastando consigo diversos membros do governo, seu próprio advogado e até sua esposa, Carla Bruni. Na Itália, o ex-Presidente Silvio Berlusconi foi preso e condenado pela Justiça do seu país em diversos processos. Em Israel, o ex-Premier Ehud Olmert foi parar na cadeia condenado por corrupção. E convém ainda acrescentar que, há poucos dias, a imprensa mundial noticiou a renúncia do Primeiro Ministro da Islândia, implicado no escândalo dos Panama Papers e do Presidente da Alemanha, envolvido em abusos financeiros domésticos.
Assim, não são supostos excessos de Sérgio Moro (sempre submetido ao duplo grau de jurisdição) ou a condução coercitiva de Lula para um reles depoimento à Polícia Federal (por conta de sua inexplicada ocultação de patrimônio) que colocariam à beira do abismo o nosso Estado Democrático de Direito. No mundo democrático, inúmeros governos vêm sendo desfeitos justamente quando acontece isso que agora testemunhamos: a falta de base parlamentar somada a um descrédito popular pelas razões éticas mais evidentes. Nesse quadro, o apego aos aparelhos do poder e a disposição para negar a corrupção por narrativas mirabolantes e oportunistas apenas expõem ao ridículo os algozes da coisa pública que se apresentam como vítimas da “seletividade”, coisa que só é possível graças a uma opinião pública confusa, desinformada e suscetível a manipulações carismáticas e publicitárias.
A expressão “presidencialismo de coalizão” dá ares pomposos e sofisticados à desgraça de um sistema que concebe a autocracia de um Executivo que ousa governar sem povo e sem parlamento. São consequências e corolários seus uma cidadania desinformada e um Legislativo inoperante. E a reforma política que jamais foi levada a sério, agora cobra o seu preço altíssimo. A nossa carência de mecanismos destituintes mais céleres empurra-nos para o trauma do impeachment, face à renitência da Presidente em renunciar e à proposital lentidão do Tribunal Superior Eleitoral em julgar a chapa Dilma-Temer por crime eleitoral, o que proporcionaria, em caso condenatório, o alívio de novas eleições presidenciais em 90 dias. Por óbvio, o grupo que pretende remover Dilma do poder tampouco é digno de qualquer crédito, e por uma razão trivial: trata-se de um racha da mesmíssima aliança que garantiu a sua vitória com recursos que a cada dia se mostram mais vinculados a um imenso esquema de corrupção. Mas se a troika do PMDB age com desfaçatez, ela também tem o seu supedâneo popular em milhões de votos para operar a sua triangulação maldita: enquanto Temer trama, Renan engana e Cunha cala. Contudo, esse é um problema da nossa miséria política, e não algo que se inscreva na ordem jurídico-constitucional da estabilidade do Estado Democrático de Direito. Politicamente, é possível dizer que a linha sucessória, em caso de impeachment, é péssima. Porém, isso não macula a tentativa de impedimento como um “golpe de Estado” desde uma perspectiva constitucional.
É preciso então repudiar o uso intimidador dessa retórica de um Estado de Direito supostamente ameaçado pela defecção desse mesmo governo que sistematicamente zombou da mais legítima indignação popular desorganizada. O slogan não vai ter golpe faz assim eco à oquidão de outras divisas que integram a pitoresca panóplia da marquetagem oficial, por ora abalada pela prisão do casal de cérebros responsável pela maquiagem comissionada que cunhou divisas como “pátria educadora” e a pleonástica “país rico é país sem pobreza”.
Novamente defendo – e pela esquerda – uma posição minoritária no pandemônio de apoiadores à última cartada carismática: o processo de impedimento, aceitável por 2/3 de votos da Câmara Federal e a ser julgado pelo Senado, não constitui em hipótese alguma um “golpe de Estado”. O bloco governista e sua imensa rede de interesses tentaculares cumpre o seu papel político quando se mostra contra o impeachment. Que os apoiadores do Governo lancem mão de seus argumentos e até das mais folclóricas filiações míticas, é absolutamente aceitável desde uma perspectiva estritamente partidária. Mas que o façam já difundindo o rumor de uma suposta ruptura institucional apenas contribui para deprimir ainda mais a atmosfera de incompreensão que nos mergulha fundo no pântano salvífico das soluções carismáticas e da humilhação internacional.
Portanto, (1) dada a falta de surpresa (o choque repentino produzido por forças políticas hostis); (2) dada a ausência de qualquer sublevação insurgente de forças militares (a conspiração coativa de algum braço armado do Estado); (3) dada a inexistência de algum projeto jurídico-político alternativo e de envergadura constitucional; (4) dada a vigilante confirmação do rito do devido processo legal do impedimento pelo STF e (5) assegurado o mais amplo direito de defesa da Presidente acusada, é absolutamente impossível falar-se em “golpe de Estado” no curso dessa fase do impeachment, que apenas aprecia uma autorização para que o Senado inicie um processo por crime de responsabilidade.
Dois Golpes e nenhum paralelo: Honduras e Paraguai
É também oportuno descartar de plano a hipótese do chamado “golpe branco”, que tampouco é aplicável à derrocada pública e parlamentar do Governo Rousseff. Subsistem então, no panorama latino-americano mais recente, dois episódios traumáticos que precisam ser afastados como analogias imprestáveis para se compreender o contexto brasileiro de 2016.
O primeiro deles é o caso de Honduras, ocorrido em 2009 e chegando a ser denunciado pela Assembleia Geral das Nações Unidas como um genuíno golpe de Estado. Este acontecimento foi desencadeado quando o Exército hondurenho prendeu o presidente Manuel Zelaya pelo crime constitucional de “traição à pátria” e o deportou abruptamente para a Costa Rica às vésperas de uma consulta eleitoral. Estamos aí, efetivamente, diante de um caso clássico de golpe, pois uma sublevação militar impôs, de surpresa e pela força irresistível, um novo regime ao arrepio da legalidade vigente. Observem então o comportamento plenamente obediente dos nossos militares na ativa e de alta patente e verão que tal exemplo em nada se coaduna com o nosso cenário institucional de estrita submissão das armas à autoridade constitucional da Presidente. Bem ao contrário do que se passou em Honduras, no Brasil temos até sonoras declarações públicas dos comandantes da três armas no sentido de reiterar uma total subordinação à autoridade máxima do Poder Executivo, deixando muito claro que o alto oficialato do Exército, da Marinha e da Aeronáutica repudiam inclusive os clamores minoritários por uma “intervenção militar já”.
O segundo caso passou-se no Paraguai em 2012, ocasião na qual o ex-Presidente Lugo teve um prazo exíguo para realizar a sua defesa em um processo que, em sua totalidade, durou menos de dois dias. Bispo católico em um país altamente conservador, após renitentes negativas, Lugo confessou, em 2009, ser pai de quatro filhos, todos gerados durante o seu mandato episcopal, fatos esses que precipitaram a sua vertiginosa perda de prestígio e credibilidade popular. Em 2012, depois de ocorrerem 17 mortes em uma controversa invasão de terras em Curuguaty, Lugo foi subitamente acusado de má gestão. Sob uma estrita vigilância do Exército, ele foi então submetido a um processo político no Parlamento, que, em menos de 36 horas, definiu (por 39 votos a 4 na Câmara e por 79 votos a 1 no Senado) a sua perda de mandato. Nesse julgamento, foi-lhe concedido o absurdo tempo de defesa de apenas 2 horas (exatamente isso: apenas 120 minutos!). Interpretação: corretamente chamado de “golpe relâmpago”, tal episódio não pode, em hipótese alguma, ser posto em paralelo ou suscitado como algum precedente razoável para a situação brasileira do afastamento constitucional de Dilma Rousseff, mesmo porque ele tampouco envolve um caso gravíssimo de corrupção como o que atinge o partido e os auxiliares mais diretos da Presidente do Brasil. No mais, as diversas e longas oportunidades de defesa aproveitadas pelas representações de Dilma Rousseff chegaram ao limite do constrangimento e da ruptura do decoro parlamentar quando, na própria Câmara dos Deputados, o Advogado Geral da União chamou sem pejos os mandatários lá reunidos de “golpistas”, coisa que, em qualquer país de sólida tradição democrática, ensejaria as mais contundentes exigências de desagravo.
Bem ao contrário desses dois casos acima relembrados, no Brasil o devido processo legal e a garantia de ampla defesa foram rigorosamente assegurados à Presidente Dilma, inclusive por força da jurisprudência fixada pelo STF no caso Collor, paradigma já de envergadura internacional para um impedimento pacífico, legítimo e democrático. É forçoso então concluir que nem mesmo perante a opinião pública internacional a tese conspiracionista do “golpismo” reúne credibilidade para além das bolhas ideológicas que se inflam em histérico regime de autoconfirmação. O emprego abusivo e alarmista da expressão “golpe de Estado” pela Presidente Dilma já levou até Barack Obama a dizer que “a democracia e as instituições brasileiras são sólidas”, prevenindo a comunidade internacional de que não se há de tomar como abalo às instituições uma discórdia doméstica causada pelas mazelas de um mau governo.
Cooptação e miséria do imaginário de esquerda
Vivendo no mundo criptoteológico da utopia, a balbúrdia que reclama o estigma do “golpe de Estado” demonstra ainda uma cabal falta de imaginação política para se compreender a singularidade desta crise ética que devasta o país. Entretanto, essa troca de farpas entre as elites pouco tem a ver com os interesses de um povo desorganizado que clama pelos corredores dos hospitais e nas ruas por serviços públicos mais eficientes enquanto é dispersado por uma violência policial sem paralelos, encarceramentos ilegais, tiros de balas de borracha nos olhos e milhares de bombas de gás, as quais custam, cada uma, o preço de um computador que falta nas escolas públicas. Uma coisa é a hegemonia, que se constrói e se conquista mediante uma afinidade voluntária entre ideias, pessoas e programas. Outra, completamente diferente, é um simulacro degenerado dela, é o adesismo das claques corporativas, o fisiologismo das máfias e o alinhamento publicitário ao redor de bandeiras genéricas brandidas em total dissonância com a realidade concreta de uma corrupção endêmica que se procura esconder a golpes de prestígio que vão dos discursos vagos às imagens com artistas sorridentes e os apoios de políticos como Jader Barbalho, Renan Calheiros e Fernando Collor de Melo.
Em memória daqueles milhões que foram às ruas em junho de 2013, é preciso então lembrar que esse Governo, cuja impugnação ora se busca, é o Governo das alianças com Edir Macedo e dos marqueteiros que estão na cadeia, da pornográfica renúncia fiscal em prol da FIFA, do latifúndio escravista e daninho do agronegócio, beneficiário-mor das “pedalas fiscais”, é o Governo da impune devastação ambiental das mineradoras e das usinas hidrelétricas, da desindustrialização crescente, dos lucros estratosféricos dos bancos, dos odiosos acordos de leniência com a Odebrecht e demais empreiteiras corruptoras, das obras inauguradas e jamais acabadas, do rombo orçamentário de 30 bilhões negativos, do PIB zerado, do genocídio indígena, da paralisia da reforma agrária, dos professores federais que sequer foram recebidos em uma greve, da roubalheira generalizada nas obras de infraestrutura, sobretudo para a Copa e as Olimpíadas, do abandono letal do SUS, dos juros escorchantes, da máfia do ensino privado (inclusive aberta ao capital estrangeiro), das epidemias de dengue e de zika abafadas ao limite, das balas perdidas que quotidianamente liquidam adultos e crianças, da brutalidade atroz dos linchamentos, das chacinas de policiais, da maior taxa de falência de empresas do mundo, da pilhagem sindical dos fundos de pensão, do aparelhamento vil dos sindicatos e dos movimentos sociais, dos empréstimos secretos do BNDES, da insistência acobertadora de Dilma em Graça Foster à frente da Petrobras (hoje contabilizando 35 bilhões em prejuízos que crescerão com a certa condenação nos tribunais norte-americanos), das negociatas da refinaria de Pasadena nos EUA, comprada com aval da atual Presidente, dos 39 Ministérios e seus milhares de cabides de emprego, dos ex-Ministros de Estado convertidos em “consultores”, lobistas e prepostos de empresas offshores com contas secretas em paraísos fiscais, da entrega do FGTS dos trabalhadores superendividados ao penhor do mercado financeiro, dos 10 milhões de desempregados, de uma base aliada originalmente integrada por Sarney, Cunha, Renan Calheiros, Maluf e Delcídio do Amaral, do acordo com Serra para a entrega do pré-sal ao capital estrangeiro, da intimidação sistemática do Judiciário e da obstrução da Justiça pelo uso da máquina pública para produzir imunizações, e, há pouco, de uma abominável lei antiterrorismo que criminaliza protestos e manifestações com o nítido propósito de inibir a espontaneidade democrática e legitimamente desorganizada. Quem quiser defender tais agentes e suas respectivas políticas, que tente à vontade, mas que não o faça em nome da Democracia ou do Estado de Direito sem correr o risco de ser muito facilmente desmascarado.
Em 2014, no Brasil morreram de morte violenta 58.559 pessoas, de acordo com dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Tais números representam assombrosos 160 assassinatos por dia, praticamente 7 a cada hora e, ainda assim, chamamos nosso país de um Estado Democrático de Direto. O Estado Democrático de Direito, portanto, não é apenas um sistema de garantias formais para réus ricos defendidos por caríssimos advogados, mas sobretudo – e antes de qualquer coisa – um regime que assegure uma democracia substancial, mínima e efetiva, para além das defesas corporativas de personagens de alto prestígio público. Suportamos aqui, a cada dia, mais baixas do que em uma jornada de combate no Iraque ou na Síria, e grande parte dessa violência é causada pela pobreza e exclusão social que tanto se anuncia ter sido combatida. Esse sim é o verdadeiro risco ao nosso Estado de Direito. Ameaça ao Estado de Direito são os hospitais e presídios superlotados e infestados por ratos e pela tuberculose, e não o varejo dos erros judiciais sempre anuláveis por ótimos advogados e rigorosamente controlados pelo duplo grau de jurisdição. Essa sim é a verdadeira “seletividade” no uso dos argumentos sobre a nossa instabilidade institucional. Enquanto os negros e os pobres são massacrados por representantes do Estado, enquanto pessoas inocentes são abatidas na barbárie quotidiana da violência urbana, enquanto crianças, professores e alunos são humilhados por um sistema de subeducação que lhes rouba até a merenda, alguns se preocupam com empresários e empreiteiras que lesam o bem comum e se fazem defender por vultosos recursos saídos sabe-se lá de onde.
Vivemos o curto-circuito ideológico de um programa nitidamente neoliberal aplicado sob uma patética arenga cubano-chavista. Tudo isso expõe essa dita “esquerda” à miséria da sua própria inanição mental. Os ideólogos da esquerda que pretendem estigmatizar como “fascista” uma classe média justamente indignada com a corrupção (organizada ora como torcida de futebol, ora como bloco de carnaval), deveriam antes olhar para os seus próprios quadros que, dentre os mais altos postos da nação, contam com Ministros de Estado que já desfilaram com bandeiras portando a efígie de Stálin, já defenderam a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, os gulags soviéticos e até mesmo o modelo tirânico da Albânia, um dos países mais atrasados e miseráveis do antigo bloco socialista. Tais adeptos de um fascismo totalitário “de esquerda”, a despeito de jamais terem feito autocríticas lúcidas, converteram-se milagrosamente ao credo laico dos Direitos Humanos. Contudo, mesmo assim jamais alcançaram com sinceridade a crítica de um Gorbachev ao modelo soviético, ou sequer levaram a sério o modelo da hegemonia proposto por Gramsci em uma concepção de cultura que nada tem a ver com a cooptação contingente de operadores da cultura mercê de privilégios capazes de formar uma “classe artística” que adota um genuíno comportamento de casta em país com índices alarmantes de analfabetismo funcional e desaparelhamento cultural.
A disputa pela memória que ora se trava já envolve o enaltecimento de figuras bastante periféricas da batalha contra o golpe de 1964, frequentemente ligadas à sandice da luta armada e partidárias da “ditadura do proletariado” em suas vertentes maoístas e guevaristas, entre outras. Com efeito, na realidade todos sabermos que a derrocada do regime militar golpista deu-se de outro modo: pacificamente e graças a uma sociedade civil muito bem organizada nas Diretas Já sob a liderança de homens como Ulysses, Arraes, Teotônio Vilela, Brizola, Tancredo, Simon e Prestes, para citar apenas alguns dentre os mais ilustres. Porém, a apropriação abusiva da memória que hoje se testemunha serve-se da pouca capacidade de contextualização histórica das novas gerações para encetar narrativas estapafúrdias, empenhadas em sugerir que a ditadura militar teria sido vencida por bravos e heróicos guerrilheiros que, agora, passaram a perseguidos pela “mídia golpista” nas suas funções de consultores de empresas e operadoras de esquemas de corrupção a serviço da “causa socialista”. Usurpando dessa maneira torpe o lugar de fala das vítimas da ditadura, tais pessoas confundem opiniões quando pontificam, com a autoridade reparacionista de uma dicção francamente testemunhal, “que um outro golpe se aproxima”. Como diz muito apropriadamente Tzvetan Todorov em seu Os Abusos da Memória, “no mundo moderno, o culto da memória nem sempre serve às boas causas.”(Todorov, 2004: 27, tradução minha). Considero assim a difusão dessa dissonância cognitiva da paranoia golpista um desserviço à democracia que pode até ser responsabilizado por eventuais radicalizações violentas capazes de transformar um derrota natural do jogo político em uma batalha campal entre facções instigadas por triunfalismos e versões persecutórias.
Para além dessas narrativas que pretendem exaltar os então jovens guerrilheiros como protagonistas da derrota da ditadura, é indispensável recordar, sobretudo para os mais novos, que foi o MDB o verdadeiro catalisador da ruína do golpe de 1964. E o poder que desde então o PMDB acumulou pela vitória de sucessivos pleitos eleitorais, acabou por torná-lo a maior força fisiológica do Brasil. A corrupção que hoje alcança o PT e o PMDB envolve uma rivalidade entre máfias de gerações e origens cujas genealogias darão muito trabalho a jornalistas, sociólogos e historiadores. E a democracia brasileira há de conviver ainda longamente com esses dois cadáveres insepultos em seus braços: o PMDB e o PT. Em momentos distintos, ambos tiveram o mesmo fim oncológico de todas as burocracias políticas: inchar, incrustar-se no Estado, esquecer a sociedade civil e lutar até o fim por uma mortal proliferação corporativa. Que a burocracia do PT nos governos agora se comporte como uma autêntica Nomenklatura soviética (Voslensky), é algo que merece, de minha parte, uma condenação ainda mais severa, pois as suas práticas espúrias no trato da coisa pública desdenham da autonomia do Direito ao supor que este há de ser submetido a um metajulgamento ideológico, incrivelmente capaz de glorificar como mártires de sua agremiação indivíduos objetivamente dotados da mais alta capacidade de predação da coisa pública.
Bem antes da Constituição de 1988, Raul Pilla dizia que o impeachment era “um canhão de museu, que existe para ser visto, e não para ser usado”. Trata-se até hoje, e sem sombra de dúvidas, de um instituto imperfeito e já bem próximo da obsolescência. Paulo Brossard, no seu clássico estudo sobre o impeachment, de 1965, afirma que “o velho instituto, instrumento de violências e instrumento de progresso, noutro tempo eficiente e saneador, não tem mais condições de acompanhar o ritmo dos tempos modernos” (Brossard, p. 194). Entretanto, como dispositivo constitucional válido e vigente, cujo uso vem sendo rigorosamente controlado pelo STF, não deve ser confundido nem exprobrado como “golpe de Estado”, como difunde a propaganda governista acuada pelas torrenciais denúncias de seus esquemas de suborno. Se há correlação entre a denúncia e o parecer, como bem reconhece o STF, o julgamento está plenamente autorizado a prosseguir rumo ao Senado. Se essa é ou não uma boa alternativa política, eis uma questão completamente distinta e a ser resolvida por aqueles que detém a competência para fazê-lo. Particularmente, preferiria uma renúncia coletiva, seguida de eleições gerais, inclusive para o Congresso Nacional, ou, em outro caso, até mesmo a cassação conjunta da chapa Dilma e Temer. Entretanto, a mesquinhez predominante em nossa cena pública não permite tal reestruturação de nosso sistema, mostrando o quanto nossa democracia carece da prudência de homens públicos virtuosos, sobretudo daqueles que façam um uso responsável das altas discricionariedades nas quais estão investidos.
Recusando tanto a lógica do menos pior como a velha tradição brasileira das composições neutralizantes, insisto em dizer que não vislumbro escolha legítima entre a corrupção do PT e a de Eduardo Cunha, entre os comportamentos conspiratórios de Aécio e de Temer ou os de Lula e de Renan Calheiros. Nossas formas jurídicas e nossas instituições sofrem a vertigem de um vácuo que foi longamente preparado pela eliminação de todo oxigênio que possibilita a uma democracia respirar politicamente. Se a compra de votos pelo leilão de cargos promovido pelo lobby de Lula conduzir a uma constrangedora coalizão que tenha que “repactuar a base” com os próprios “golpistas”, estaremos expostos ao ridículo de uma quadrilha que retornará aos Ministérios para consagrar um conchavo pela mútua imunidade e contra a Operação Lava Jato. Basta mencionar que o Diário Oficial de hoje, em pleno sábado, registra mais de 140 pessoas sendo nomeadas e exoneradas nos mais diversos escalões do Governo. Em outro sentido, se o movimento pela destituição lograr ao cabo afastar Dilma, Michel Temer comporá um governo de falsa união nacional e de inclinação ainda nitidamente conservadora e fisiológica, devendo também, a todo custo, ser o mais rapidamente impedido pelas mesmas razões que se esgrimiram contra a Presidente, isso se ele não for antes interceptado por uma cassação de chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral. Entretanto, mesmo diante desse quadro deplorável de múltipla falência programática e contaminação sistêmica pela imoralidade, gostaria de ressaltar, para além dos redutores publicitários, a crucial necessidade de respeito às nossas instituições e à regularidade procedimental. Ganhe quem ganhar, a autorização do impeachment há de ser vista como um procedimento plenamente constitucional e cujos resultados possíveis são ambos igualmente válidos, coisas que, assim espero, não sejam politicamente celebradas como “salvação nacional” ou banalizada como vitória sobre um “golpe de Estado”.
Muito antes de buscar a polêmica, o presente artigo declara-se respeitoso de opiniões divergentes e procura, sobretudo, fixar uma posição de princípio em defesa da constitucionalidade do impedimento, procurando fazê-lo independentemente dos resultados da votação que hoje ocorrerá. Em nome da ordem constitucional, deixemos então aos órgãos juridicamente competentes (leia-se: às casas legislativas) que digam, afinal, (1) se se há de analisar o cometimento dos tais crimes de responsabilidade, (2) no que propriamente eles consistem e (3) quais as suas consequências institucionais. Em tais ocasiões, a ampla defesa, o controle jurisdicional dos atos e o lastreamento probatório serão novamente requisitados para que tais julgamentos políticos respeitem ao máximo tanto o devido processo legal como o princípio da separação entre os poderes da República. De qualquer modo, essa decisão sobre quem deve mandar no Executivo, cabida no processo de impeachment ao Parlamento, é coisa completamente distinta de se saber se o escolhido finalmente conseguirá exercer o seu mandato de acordo com os mais altos interesses do bem comum, coisa que eu, pessoalmente, preferiria que fosse definida pelas urnas, caso as personagens dessa crise acachapante fossem alcançados por um extraordinário lampejo de grandeza. Como disse no texto Luz de lamparina na noite dos desgraçados, no qual lembrava Ulysses Guimarães, vivemos tempos de uma treva espessa. Quando a imoralidade e a defraudação do Estado provêm de todos os espectros ideológicos e partidários, só nos resta confiar em que a Constituição nos sirva de lamparina nessa travessia para dias melhores na vida de nossa República paralisada.
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Fonte: Marcus Fabiano Gonçalves, formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre e Doutor em Teoria e Filosofia do Direito, prepara doutoramento em antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Morou também em Florianópolis e Natal. Radicado na cidade do Rio de Janeiro, é atualmente professor da Universidade Federal Fluminense, em artigo publicado por Arame Falado, 17/04/16.
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