segunda-feira, 2 de maio de 2016

O ciclo de fuga no presidencialismo de coalizão e as decisões críticas da conjuntura (Sérgio Abranches)

Ninguém mais tem dúvida de que vivemos um momento decisivo na crise do governo Dilma Rousseff. Esta semana, tudo indica que a Comissão Especial do Senado aprovará relatório favorável à abertura de processo de impeachment contra a presidente. Dilma Rousseff será afastada temporariamente do exercício do cargo. Desde que ficou certo que a Câmara daria a autorização para o processo, o ciclo do presidencialismo de coalizão no qual estava o governo Dilma, desde o início do primeiro mandato, mudou de fase. Defini esse ciclo como ciclo de “fuga”, ou seja, de afastamento dos partidos da coalizão do centro de gravidade política ocupado pela Presidência.
Ele mudou da fase de dispersão, para a fase de gravitação para novo centro de influência. O segundo mandato da presidente foi marcado, desde o início, pela dispersão continuada das forças da coalizão e pela desmobilização do apoio da maioria a seu governo. Desde que o processo de impeachment começou a evoluir na Câmara, o ciclo de fuga acelerou, na véspera da votação no plenário. Ele se fechou com o abandono formal da coalizão pela maioria dos partidos. A partir daí, com a progressiva percepção de que Michel Temer chegaria à Presidência, essas forças dispersas começam a gravitar em sua direção. Temer já ocupa, no momento, novo polo político de atração, que vem ganhando força gravitacional crescente. Os sinais de esvaziamento da Presidência e desvio das forças políticas para a Vice-Presidência são evidentes e estão diariamente nas manchetes de todos os jornais do país. Neste processo tornam-se, também, centros de atração potencial, os principais candidatos com chance de chegar à presidência em 2018.
Repito, aqui, para deixar claro o ponto que pretendo fazer sobre a mudança de fase, a análise do ciclo de fuga que que fiz no ensaio “Os Ciclos do Presidencialismo de Coalizão” e que denominei originalmente de “ciclo centrífugo”. Retomei essa análise em outro ensaio mais recente sobre “Crises Políticas no Presidencialismo de Coalizão”. Como se dá o ciclo? A Presidência passa a ter sinal negativo. A popularidade cai. As pesquisas passam a indicar a impopularidade do governante. A atração se transforma em rejeição. A liderança presidencial passa a ser contestada. Sobrevem a instabilidade ministerial, com o abalo na coalizão. Essa quebra da coalizão leva à paralisia decisória e legislativa, resultando em crise de governança. Forças antes alinhadas ao governo e parceiras em sua coalizão se dispersam e transitam soltas pelo espaço político, à espera de sinais mais fortes de emergência de novas lideranças no vácuo criado pelo apequenamento da força de atração presidencial. A oposição fica mais incisiva, porque obtém resposta “das ruas descontentes”. É nas fases mais maduras desse ciclo que tende a surgir o risco do impeachment. A mudança de fase se dá quando alguma liderança adquire potência gravitacional suficiente para atrair a maioria daquelas forças que deixaram a coalizão governista e estão dispersas pelo espaço político.
Foi exatamente isso que começou a acontecer, a partir do momento em que o processo de impeachment ganhou impulso. As forças que ainda se mantinham formalmente na coalizão governista, cada vez menos comprometidas com a presidente, começaram a deixar formalmente a coalizão. Não foram motivadas apenas pelo aumento da percepção de que a Câmara autorizaria o processo de impeachment e que o Senado não reverteria essa decisão. Houve forte incentivo vindo das bases dos parlamentares, já envolvidos na sucessão municipal, que é fundamental para a reeleição deles próprios em 2018. Ao consultar seus cabos eleitorais, aliados locais e eleitores-chave, verificavam que a impopularidade da presidente e a rejeição a seu governo tornavam praticamente inelegíveis aqueles que permanecessem na coalizão. Esses dois motivadores tornaram o ciclo de fuga irreversível.
E o que levou à mudança de fase, da fuga para a emergência de um novo pólo de atração e coalescência (viabilidade de nova coalizão de poder)? O voto por maioria superior à prevista na Câmara dos Deputados e os sinais, cada vez mais sólidos, de que o Senado autorizaria o processo de impeachment e o iniciaria, provocando o afastamento temporário da presidente por 180 dias. Isto dado, a ocupação da presidência pelo vice-presidente tornava-se praticamente um fato certo. Esta certeza lhe confere potência gravitacional política cada vez maior. As forças políticas gravitam em sua direção. Quanto mais próximo o afastamento possível da presidente Dilma Rousseff, maior o poder de atração de seu sucessor temporário. Michel Temer chegará à presidência, se a Comissão Especial autorizar o processo — o que é quase certo — no início de um novo ciclo de atração. Se isto ocorrer, terá muito mais autonomia decisória e de montagem do ministério do que se especula no momento. Se essa atração prevalecer nos 180 dias de mandato temporário, é provável que o afastamento da presidente se torne irreversível e o Senado aprove a cassação de seu mandato.
Hoje, já é bastante improvável que a presidente Dilma Rousseff consiga romper a paralisia legislativa e aprovar qualquer medida que proponha ao Congresso. Seria mais provável que essa paralisia fosse neutralizada e o Congresso aprovasse medidas, nesse período de interregno, se o vice Michel Temer apoiasse ostensivamente alguma medida que lhe interessasse já ter às mãos, ao chegar à Presidência. Fora essa circunstância, que ainda não ocorreu e não há indicações de que venha a ocorrer, prevalecerá a paralisia legislativa, até o afastamento da presidente e a montagem do novo governo.
O presidencialismo de coalizão tem vida ainda curta na Terceira República, que começou com a Constituição de 1988. Tivemos sete mandatos presidenciais, exercidos por cinco presidentes — Collor, Itamar Franco, FHC, Lula e Dilma (seis, com Temer, se o mandato de Dilma for cassado e ele completar seu mandato). Também não teve vida muito longa na Segunda República (1945-1964). Foram quatro mandatos presidenciais (Dutra, Getúlio, JK e Jânio), exercidos por oito presidentes (Dutra, Getúlio, Café Filho, Carlos Luz, Nereu Ramos, JK, Jânio e Jango). É muito significativo o fato de que, na Segunda República, somente Dutra e JK cumpriram seus mandatos integralmente. Na crise do suicídio de Getúlio, o vice Café Filho foi afastado, para tratamento de saúde e, depois, impedido permanentemente por decisão parlamentar. O presidente da Câmara, Carlos Luz, também sofreu impeachment. Nos dois casos houve pressão militar. Nereu Ramos, vice-presidente do Senado, foi eleito presidente pelo Congresso e exerceu mandato de dois meses e 21 dias, passando o cargo a Juscelino Kubitschek. JK, para tomar posse, sob contestação comanda pela UDN por ter obtido apenas 38% dos votos (não havia dois turnos), precisou do apoio de um pronunciamento militar.
Na Terceira República, teremos tido três reeleições e dois impeachments, se prosperar o processo contra a presidente Dilma Rousseff. Sobre o impeachment apenas avanço hipótese que ainda estou a elaborar. Está claro que não tem sido um mecanismo excepcional ou eventual. Como nosso presidencialismo, por ser de coalizão, guarda certas singularidades, talvez se devesse pensar em uma inovação institucional, que preceda o impeachment, para resolver crises políticas dessa natureza. Não adianto o que venho imaginando como soluções possíveis, porque ainda são ideias muito tentativas. As três reeleições mostraram custos e instabilidade crescentes entre o segundo e o terceiro mandato, nos três casos.
As evidências de efeitos perversos da reeleição nas decisões do primeiro mandato são fortes. Teria Fernando Henrique demorado a reconhecer a gravidade da crise econômica e a promover a desvalorização do Real, se não estivesse em campanha para a reeleição? Teria Lula feito o sucessor, com a crise do mensalão ainda em processo? Teria Dilma Rousseff tido tanta motivação para maquiar a contabilidade fiscal, fazer as pedaladas, manter o represamento artificial do preço da energia, não tivesse a intenção de buscar a reeleição? São todas perguntas contra-factuais. Não há como respondê-las persuasiva e comprovadamente. Mas justificam o ceticismo em relação à funcionalidade da reeleição em um modelo de presidencialismo, o de coalizão, que já tem problemas suficientes de gestão política e governabilidade. O chamado “ciclo político-econômico”, que leva presidentes a manejar a política macroeconômica para influenciar as eleições, agrava-se muito quando há reeleição, sobretudo em um modelo de coalizão com maioria clientelista. De minha parte, nunca fui simpatizante da reeleição.
Ao longo do tempo, reforcei meu convencimento de que a reeleição não é um bom mecanismo para o nosso caso. Além dessas razões, por duas outras adicionais. A primeira é que, ao contrário da Segunda República, dada a existência de mais de um partido com força e legitimidade para disputar a Presidência, as sucessões na Terceira República sempre se deram sem crise, em eleições bastante regulares. Já tratei em outro ensaio, das distorções provocadas por nosso modelo de campanha e outras disfuncionalidades eleitorais. Mas as eleições em si foram regulares e tranquilas. Portanto, considero mais apropriado ter maior rotatividade na presidência. Tudo indica que temos mecanismos institucionais para evitar crises políticas disruptivas nas sucessões. Há quem argumente que a insatisfação com o resultado de 2014 provocou o pedido impeachment. Pode ser e pode não ser. Todavia, a probabilidade de impeachment no ciclo de fuga do presidencialismo de coalizão é bastante alta. A insatisfação com o resultado das eleições pode ter justificado a adesão do PSDB ao impeachment. Mas não o processo dificilmente prosperaria se o governo não estivesse em estágio avançado do ciclo de fuga.
A segunda razão que me levou ao convencimento de que a reeleição é disfuncional, tem a ver com os custos de gestão da coalizão. A reeleição só gerou custos e crises para o país. O segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso foi politicamente mais instável e a gestão de sua coalizão custou mais em termos fiscais e concessões clientelistas do que o primeiro. O segundo mandato de Lula também foi menos eficiente e a manutenção da coalizão custou mais caro (e, pelo que mostram as investigações da Lava a Jato, ainda a serem concluídas com comprovação judicial, custou muito também em corrupção). O segundo mandato de Dilma Rousseff começou em crise e, provavelmente, terminará em impeachment. Carlos Pereira e Frederico Bertholini fizeram engenhosa análise dos custos de governabilidade no presidencialismo de coalizão, que mostra esse crescimento do custo do segundo mandato, em todos os casos. São várias as razões, mas ressalto apenas a mais geral: o desgaste natural, pelo tempo, da força presidencial no segundo mandato. Uma espécie de fadiga de material, que reduz a popularidade e a força da popularidade presidencial.
A se confirmar o cenário de permanência de Michel Temer na Presidência nos próximos dois anos, seria o momento ideal para aprovar emenda acabando com a reeleição e restabelecendo o modelo original aprovado pela Constituinte. A emenda poderia valer para 2018. O único que poderia alegar prejuízo presuntivo por desrespeito a direito adquirido seria o vice-presidente Michel Temer. Se ele apoiar a emenda explicitamente, não haveria qualquer óbice constitucional à entrada imediata em vigor da emenda. Foi Fernando Henrique Cardoso quem, em pleno ciclo de atração em seu primeiro mandato, liderou a aprovação de emenda instituindo a reeleição. Esta foi testada três vezes. Na minha interpretação, não passou bem pelos testes. Convenci-me de que tinham razão os constituintes. O melhor para o presidencialismo de coalizão brasileiro é não ter reeleição.
Como alertei em ensaio anterior, não há possibilidade de consenso em matérias políticas que dizem respeito às expectativas de poder ou a convicções de natureza subjetiva, mesmo diante de evidências empíricas. Essa afirmação, tanto naquele então, como agora, apenas antecipa o fato de que não tenho a menor expectativa de concordância com meus pontos de vista. Não vejo esse argumento como obstáculo, filosófico ou metodológico, a que eu ou qualquer outro intelectual ofereçamos evidências ou façamos proposições sobre o modelo político brasileiro.
Fonte: Ecopolítica (02/05/16)

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