Estamos em trânsito, embora ninguém possa se atrever a apontar para qual destino. O mês de maio já se insinua no horizonte e, em meio aos escombros e à densa poeira que a ruína da política deixa em seus rastros depois dos infaustos acontecimentos que a puseram por terra, já podemos nos dar conta da imensidão da tarefa que temos pela frente a fim de devolver à vida o que nos sobrou. Durante um dia sem fim, diante da tela da TV, o País viu, ao vivo e em cores, o desfile da nossa representação política na votação do impeachment, certamente chocante para muitos dos nossos intelectuais que acordaram tarde para a participação na vida pública, confiados em que, sobre sua cabeça, os poderes mágicos da liderança a que se entregaram de corpo e alma bastariam para cuidar da realização das suas expectativas de uma sociedade mais justa.
Nua e crua, sem maquiagem, a nossa representação expôs sua rusticidade e, principalmente, a cultura do familismo imperante entre nós, tanto nos rincões quanto em setores ilustrados da vida social, para que não fique sem registro o comportamento das nossas elites. Por outro lado, em tantos chamava a atenção a retórica e os argumentos formalistas típicos dos tribunais, mesmo daqueles conhecidos por se manterem aferrados à tradição que nos vem de longe de conceder primazia à dimensão substantiva na avaliação de temas sociais em detrimento das formais.
Tudo contado entre os salvados e os perdidos, fica o inventário de que o sentimento das ruas, expresso desde junho de 2013 e reiterado desde aí em vigorosas manifestações, encontrou ressonância na vida parlamentar, não importando as motivações subalternas que ali também se fizeram presentes, porque foi o espírito do tempo, para falar na linguagem de Habermas em seus textos políticos, que encontrou, contra todas as probabilidades, sua oportunidade de afirmação naquela assembleia de fúrias desatinadas.
Nesse inventário não pode faltar o comportamento surpreendentemente civilizado das multidões que acorreram às ruas em favor ou contra o impeachment, contrariando as previsões, aliás, motivadas, de que aquele dia de cão culminaria em conflitos generalizados. Não foi assim, as grades que separavam os dois “partidos” no gramado em frente ao Congresso Nacional ficaram de pé – mais uma evidência de que o respeito às regras se tem entranhado na consciência popular – e todos se retiraram pacificamente da manifestação.
Igualmente ficará incompleto se não mencionar o papel das instituições legadas pelo constituinte da Carta de 88, que mais uma vez, em meio à tormenta, têm servido de âncora segura para que a sociedade não sucumba às paixões que venham ameaçá-la com os riscos de uma conflagração social. O texto da Constituição se tornou a língua geral de todos os envolvidos no processo de impeachment presidencial ainda em curso, importando, na cena política brasileira, um inédito protagonismo para o Direito, seus procedimentos e instituições. Aí, mais um marcador a sinalizar que a sociedade se rende ao espírito do tempo, ao confiar a resolução dos seus conflitos às vias da democracia política, recusando-se a aceitar uma saída por meio de uma ruptura constitucional.
O espírito do tempo que irrompe sem dono e com muitas vozes sem prévia concertação para se enunciar também se faz presente nas ações de instituições estatais, como nas da Polícia Federal, do Ministério Público e da magistratura, em particular na Justiça Federal de Curitiba. No caso, sua intervenção vai direto ao cerne da matéria ao identificar as raízes de muitos dos nossos males nas relações degradadas entre os partidos e o mundo do dinheiro, corrompendo nosso sistema de representação política e a esfera pública em geral. A recepção positiva de suas ações por parte da sociedade é mais um sinal de que o eixo do tempo está girando em seus gonzos em favor da democracia política.
Trata-se de uma mudança de época tramada em surdina pela modernização social e pelos efeitos imprevistos dela decorrentes. Essa mudança de época foi sinalizada com todas as tintas nas grandes manifestações de junho de 2013 – logo esquecidas depois das reverências de praxe –, que declararam em alto e bom som que a sociedade não admitia ser uma base passiva para o Estado e seus governantes. Ela queria participar e se envolver na administração das políticas públicas, encontrando ouvidos moucos no governo Dilma, que reiterou na sua campanha pela reeleição, em 2014, ser fiel às práticas e ao modelo contestado pelas ruas nas jornadas de junho.
Às costas dos atores políticos, o reino dos fatos operava em silêncio. Com o olhar fixo na empiria imediata – como alargar e proteger sua base de apoio governamental –, o governo e seus áulicos não repararam no movimento da terra, como dizia Joaquim Nabuco, que, fora de sua vista, tinha alterado a paisagem, antes percebida como acolhedora e que agora se apresentava como ameaçadora e hostil. O espírito do tempo que rondava os acontecimentos reconheceu no impeachment a hora da sua manifestação, mesmo que seu portador não contasse com uma história pessoal que o credenciasse ao feito, mesmo com aquele improvável Parlamento liliputiano.
É marca do tempo presente a capacidade da consciência de alterar e ativar as condições da existência, como anota Ulrich Beck em sua obra clássica. Na política também se vive sob o signo da reflexividade. Nossa sociedade, há décadas imersa na indiferença quanto à política, chega a ela aos trancos e barrancos, envolvendo multidões até há pouco apáticas. Em alta voltagem, ela está aí de volta, até mesmo entre os adolescentes, os quais, depois do seu batismo de fogo nas manifestações, já voltam a ocupar suas escolas em nome de uma reforma educacional.
O Brasil não é cartesiano, todos sabem, avançamos assim em zigue-zagues. Mas desta vez sem o recurso da marcha à ré.
Fonte: O Estado de São Paulo (01/05/16)
Nenhum comentário:
Postar um comentário