segunda-feira, 9 de maio de 2016

Impeachment ou golpe de estado? (Cássio Casagrande)

A Presidente da República sofreu uma traição política sórdida. O aliado de ontem apunhalou-a pelas costas. Deputados que eram ministros 48 horas antes votaram pelo impeachment. O ex-líder do governo no Senado passou para a oposição como quem troca de roupa. Podemos dizer que seus coligados da véspera conspiraram e engendraram uma trapaça política. Ela sofreu um duro golpe. Mas de que golpe estamos falando? A presidente alega que isto é um “golpe de estado”. Ela está complemente errada. “Golpe de Estado” e “golpe Político” são coisas completamente diferentes. Confundir um pelo outro é grave porque distorce o próprio conceito do que é um regime democrático: se não sabemos o que é golpe de estado, então não sabemos o que é democracia constitucional.
Democracia é procedimento fundado no princípio da igualdade política. Ou seja, a democracia não tem “conteúdo” - ela não prescreve o que deve ser decidido, mas tão somente como deve ser decidido: sendo todos iguais, a decisão deve ser pela regra da maioria, observados certos limites, que são os direitos fundamentais, especialmente os da minoria. O regime democrático simplesmente estabelece as regras e os limites do jogo. Se o resultado deste jogo disputado dentro das regras for desagradável a uma parcela do eleitorado (até mesmo à maioria), nada pode ser feito. A democracia raramente é um espetáculo bonito, especialmente porque o pressuposto majoritário e a igualdade política contêm três patologias congênitas: a tirania da maioria, a demagogia, e o império do interesse em desfavor da virtude cívica, como profetizou antes de todos Tocqueville, que testemunhou o seu nascimento e quem melhor sobre ela escreveu.
O processo de impeachment é um mecanismo de responsabilidade e de limitação do poder que nasceu com as revoluções democráticas, no mesmo momento em que se conformou a noção de representação política pela maioria.
No absolutismo o rei não representava a maioria e não podia ser responsabilizado por seus atos (“the king can do no wrong”). Todas as constituições produzidas durante a Revolução Francesa, ao mesmo tempo em que consagraram a representação pela maioria, estabeleceram mecanismos de responsabilidade política; assim também a Constituição americana de 1787 que instituiu o impeachment, de onde adaptamos o instituto para nosso sistema constitucional, desde a Constituição de 1891. Adaptação que foi mal feita, pois na tradição da Common Law não há uma lei infraconstitucional de impeachment, é a própria constituição que define os crimes de responsabilidade. Ao trazer o impeachment para nossa Civil Law, tratamos equivocadamente de codificá-lo no direito infraconstitucional e criamos uma infinidade de tipos penais abertos e mal delineados - razão de muitos dos malentendidos sobre a questão -, o que dá a ilusão de que o processo de crime de responsabilidade é semelhante, no aspecto processual, a uma ação penal comum.
Por isto assistimos a Câmara de Deputados aprovar sem muita convicção o processo de impeachment em uma base legal frágil; mas, sobretudo, assistimos atônitos a decisão sendo tomada por uma Câmara composta por uma escumalha de desqualificados e chefiada por um presidente descrito por seus pares como “gangster” e “psicopata”. Pensamos, num impulso, que estes deputados “não nos representam”. Sim, não representam a nós elite ilustrada, que somos uma parcela ínfima da população. Eles certamente representam, e muito bem, o seu eleitorado (é disso que Tocqueville está falando quando trata da demagogia). Induvidosamente, há problemas de representação em nosso sistema político, que distorcem a vontade do eleitorado. Isto não retira a legitimidade dos que estão lá até que as regras sejam mudadas. Ser democrata é reconhecer este fato. Regras só podem ser mudadas pelas regras sobre mudança de regras. Além disto, as distorções da vontade eleitoral também ocorrem na escolha do executivo, inclusive do atual. Ninguém ignora como são financiadas as campanhas presidenciais. Mas por enquanto também é a regra do jogo. Então, se há motivos para questionar a legitimidade do Congresso, também os haveria para questionar a do Executivo (presidente e vice, diga-se), aqui especialmente se demonstrada a ilegalidade do financiamento da campanha. Mas não é o caso, por ora: grande parcela dos deputados está sendo processada por corrupção; a chapa da presidente está sendo impugnada na Justiça Eleitoral, também por corrupção. Mas no impeachment nenhuma destas causas está em questão. Então vale a regra do jogo e os jogadores são legítimos até que a Justiça os exclua.
O impeachment, sendo instrumento de controle do regime democrático é, portanto, na essência, procedimento. Ele pressupõe sim o cometimento de um crime político, definido na lei. Porém quem faz a tipificação é a Câmara dos Deputados no juízo de admissibilidade e o Senado no julgamento definitivo. O “juiz da causa” é o Legislativo, não o Judiciário. Portanto, o juízo do “mérito” da causa é jurídico, mas é predominantemente político porque o julgador, neste caso, não tem a obrigação de fundamentar sua decisão (que é o que distingue o impeachment de um processo estritamente jurídico, já que neste o juiz tem o dever de fundamentá-la). Como em um tribunal do júri, os membros do Congresso Nacional votam “sim” ou “não” a um libelo (relatório da comissão especial). Podemos alegar que um júri condenou um inocente, por um erro na apreciação da culpabilidade do réu. Ainda que a decisão transite em julgado, não podemos questionar a legitimidade do júri. Nesta hipótese, a decisão foi errada e injusta, mas ocorreu dentro do procedimento previsto. Pode ser chocante, mas é exatamente esse o espírito “democrático” do júri. A democracia, goste-se ou não, não tem como propósito produzir resultados ideais, “justos”. Ela garante o governo da maioria e a maioria pode ser injusta, ainda que dentro da lei. Ela não garante que os melhores e mais virtuosos serão eleitos. Ela também não assegura que os eleitos, ainda que puros, não possam ser destituídos do poder de acordo com regras preestabelecidas, mesmo que isto seja uma “injustiça”. E é por isto que o Judiciário não pode reexaminar o mérito do julgamento do Senado, mesmo que o enquadramento legal aos tipos do crime tenha sido malfeito e o resultado injusto. Esta questão já foi muito bem definida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Nixon v. United States, de 1993 (506 U.S. 224; não se trata do caso do Presidente Richard Nixon, mas do juiz federal Walter Nixon, que questionou no judiciário o seu julgamento por impeachment perante o Senado).
No caso brasileiro, inclusive, o Judiciário legitima o processo quando o presidente do STF comanda o julgamento no Senado (Constituição, art. 52, parágrafo único).
O impeachment, sendo essencialmente procedimento, se conduzido dentro das regras constitucionais (e o foi, com o beneplácito do Supremo), não pode ser considerado golpe de estado, por inconsistentes que sejam as acusações. A expressão golpe de estado nasceu na França (coup d’État) e se popularizou para descrever a ascensão de Napoleão no 18 de Brumário. Como neste evento arquetípico, ela significa tomada de poder pela força, com ruptura das regras constitucionais. O Brasil viveu quatro golpes de Estado: 1889, 1930, 1937 e 1964. Em todos eles houve ruptura da ordem constitucional e medidas de exceção foram impostas, com cerceio a liberdades públicas. Nada disto está acontecendo agora, a Constituição está intacta. Nada disto aconteceu em 1992. Não se deve esquecer que Collor foi absolvido pelo STF quanto ao fato que deu substância “jurídica” ao seu processo de impeachment. Isto não transformou sua deposição em golpe de estado. Ninguém nunca alegou esta tese, além do próprio Collor. A Presidente poderá ser absolvida futuramente na Justiça quanto à sua eventual responsabilidade civil ou penal nas pedaladas fiscais. Isto também não transformará o impeachment em golpe de estado. Poder-se- á dizer que o julgamento político da Presidente foi injusto, como talvez o foi o de Collor. Nada mais do que isso.
A presidente não deveria, por estas razões, alegar que está sendo vítima de um golpe de estado. A alegação em si desqualifica nossa democracia, que é de fato imatura, mas não é frágil, pois já se sustenta há quase trinta anos.
Ela pode sim alegar que o resultado da votação do impeachment decorreu de uma trapaça política; de uma traição vil de conspiradores desonestos. Mas a democracia, como procedimento, não tem como objetivo, nem poderia ter, evitar a traição e a conspiração. Traição e conspiração entre aliados estão no campo da política “burguesa”, mas dentro das regras democráticas, como Marx observou no ”18 de Brumário de Luís Bonaparte”. Em qualquer país democrático políticos são traídos por aliados e podem perder o poder por isto, seja no parlamentarismo ou no presidencialismo. Aliás, na democracia, políticos podem trair até mesmo o próprio eleitorado. No nosso caso, tudo isto está acontecendo com incrível desfaçatez. É bastante desagradável, como a democracia por vezes o é. Mas o máximo que podemos fazer é tampar o nariz. Ou mudar as regras do jogo.
(*)Doutor em Ciência Política. Professor de Teoria da Constituição da Graduação e do Programa de Pós-Graduação (mestrado) em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense - UFF.

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