A queda de Dilma parece demandar uma leitura óbvia. Novamente na história da América Latina, um governo de matiz nacional-popular teria sido derrubado pelas elites neocoloniais. Mais uma vez, a tentativa geopolítica de constituir um eixo alternativo ao imperialismo sediado em Washington, desta vez por meio dos BRICs, terminaria esmagada pela restauração conservadora. Reencenou-se a história dos golpes de estado no subcontinente, ecoando os de 1964 (Brasil), 1973 (Chile) ou 1976 (Argentina), a quartelada contra Chávez na Venezuela (2002), ou então os ditos “golpes brandos”, contra Zelaya em Honduras (2009) ou Lugo no Paraguai (2012). Desta vez, a vítima teria sido o maior partido de massas das Américas, maior peça do dominó que, agora, ameaça o inteiro ciclo de governos progressistas. Símbolos para afiançar essa leitura não faltam. Em favor dela, comparecem as estrelas e bandeiras vermelhas, lá estão Lula, o MST, o panteão de intelectuais de esquerda a elucidar os mecanismos imediatos do golpe e denunciá-lo.
O dilaceramento do ciclo do Partido dos Trabalhadores no comando do governo federal, de 2003 a 2016, tornou aguda a vivência do presente daqueles que se sentem diretamente implicados no projeto. O que quer que “projeto” signifique para cada um, a admissão de seu colapso é vivida como fim de uma visão de mundo. Por mais truncada e repleta de contradições, quando o pano cai sobre a peça petista a sensação manifestada tem sido um misto de melancolia e raiva. Tamanha é a tutela pressuposta ao redor do PT, o momento é sentido como o ocaso de uma era, quando naufragariam também as esquerdas, os progressismos, os horizontes das lutas como um todo. Futuro, presente e passado se agregam num tempo em que tudo parece ganhar espessura e ser colocado em questão. Estariam em jogo não só a ocupação do governo, como também as conquistas sociais das últimas duas décadas, o legado institucional da constituição de 1988, a memória das lutas contra a ditadura.
Durante a votação do impeachment no Congresso, os parlamentares repetidamente invocaram valores sagrados e instituições patrióticas, em meio a discursos túrgidos e jogos de cena de um lado e de outro. Um deputado elogiou um coronel torturador do regime de 1964, outro proclamou o fim da “ditadura lulopetista” fiada no bolsa família, outro ainda sintetizou: é contra a “vagabundização remunerada”. E a compressão temporal também levou deputados contrários a invocar mártires da resistência, do líder insurgente dos escravos Zumbi à Olga Benário, comunista deportada na ditadura Vargas ao III Reich e gaseada. As múltiplas escalas do tempo dramatizadas no tableau vivant da representação parlamentar brasileira soam como sucessivos golpes de teatro, pulando inusitadamente em cena.
Deveria provocar ao menos a curiosidade, naqueles menos suscetíveis a efeitos melodramáticos e histrionismos, chamar de golpe de estado o procedimento conforme a constituição presidencialista do país, previsto exatamente para a remoção de um presidente eleito, quando esse procedimento é seguido a rigor, sob a supervisão de uma suprema corte cuja composição tem 8 de 11 ministros indicados pelos governos do PT. Ou quando vai assumir, caso o impeachment se confirme em outubro, o vice-presidente eleito conjuntamente com Dilma, em 2014 e 2010, com direito a foto na tela da urna e tudo o mais. Mais de 2/3 dos parlamentares votaram pela instauração do processo em ambas as casas do Legislativo brasileiro, com um intervalo de quase um mês entre uma e outra deliberação, período em que as forças governistas têm exercido uma abrangente defesa em fóruns, mídias e nas próprias instâncias previstas, em que vêm interpondo recurso atrás de recurso numa microscópica discussão do rito.
Alega-se que não existe fundamento material para o impeachment, mas entre considerar uma decisão injusta ao sabor das conveniências políticas e acusá-la de ser um golpe que rasga a constituição vai uma saudável distância. Embora o grau de tramoia envolvido no alijamento de Dilma não permita nivelá-lo aos impeachments consumados de Collor no Brasil (1992) ou Fujimori no Peru (2000), por outro lado, difere em muito na forma e no conteúdo dos casos recentes em Honduras, onde o presidente foi metido num helicóptero na calada da noite e deportado pelas forças armadas, ou no Paraguai, onde Lugo sofreu um “impeachment-relâmpago” que durou menos de 48 horas.
Os defensores do governo diriam: não importa. Golpe brando, parlamentar, judicial-midiático ou pós-moderno, o que importa é traduzir a torrente de fatos do noticiário e os encadeamentos vertiginosos de uma conjuntura num enunciado simples e direto. Um que possa, como escreveu Luiz Eduardo Soares, “definir a presidente como vítima” ou “remeter mensagens facilmente decodificáveis para o público internacional, constrangendo os operadores internos do processo” [1].
De fato, está em curso a conjugação de esquemas didáticos e estruturas obsessivas ao redor da narrativa do golpe cuja lógica cerrada não permite hesitação. Não é hora de compor charadas ou abstrair a gravidade da indecência que vivenciamos. É hora de resistir ao golpe. Todo o resto será tratado como ponderação bizantina para atrasar a marcha dos paladinos contra o golpe. Num clima de pânico moral com cães de guarda postados à beira do escândalo, que não deixa de lembrar aquele do avanço moralista e conservador que estaria por trás do golpe em primeiro lugar.
O maior problema dessa cobrança rebarbativa está no absoluto descompasso entre expectativas e realidade. Como é possível invocar a força moral de um governo em favor dos mais pobres quando estes não comparecem à altura que o momento, segundo esse relato épico, exigiria. O músico e intelectual das periferias, Mano Brown, lamenta que a favela faz silêncio, se ilude com a televisão e termina por dar as costas à Dilma [2]. Faz dois anos, depois do levante de junho de 2013, o secretário de Dilma chegou a falar em ingratidão: “fizemos tanto por essa gente e agora eles se levantam contra nós” [3].
Paira realmente um sentimento difuso entre os resistentes ao golpe que a situação não vem mobilizando o povo como seria de se esperar. Existe uma defasagem de representação política também à esquerda, pois os sujeitos pressupostos do discurso parecem recusar-se a ser enquadrados nos esquemas do nacional-popular. E quando aparecem nas narrativas e muxoxos, são reduzidos a um caldo desorganizado, pré-político, à deriva das pulsões midiáticas.
Outro descompasso impossível de engolir consiste no fato que, durante 13 anos, o governo reivindicou o pragmatismo como razão de ser. O limite máximo da correlação de forças, no dizer de seus intelectuais, serviu de álibi para uma verdadeira “paixão pelo possível” que levou ao Compromisso Histórico na base do lulismo. Durante mais de uma década, inclusive durante a mais extraordinária mobilização popular e democrática em 2013, as forças governistas opuseram um férreo realismo político ao idealismo naif e irresponsável. Como podem os governistas, agora, quererem atualizar sagas de outros tempos numa elaboração shakespereana, quando vão fazer política no mais desencantado pragmatismo?
Não foi Gleisi Hoffmann, ex-ministra-chefe de Dilma, atualmente uma das protagonistas da saga da resistência contra o golpe, quem disse que “o governo não pode e não vai concordar com minorias com projetos ideológicos irreais”? [4]. Com qual legitimidade pode a presidenta afastada assomar agora como figuração heroica de uma mitologia de esquerda, quando ela mesma, quando tinha a caneta na mão e sólidas condições, vinha chamando as lutas de nosso tempo, dos indígenas e ambientalistas diante da usina de Belo Monte, de “fantasia”?
A obsessão simplificadora e pedagógica, voltada a cultivar uma mística, não vai penetrar no complexo de fatos de que é feita a conjuntura brasileira. Desse modo, os afetos tendem a alucinar em círculos, um grito tanto mais estridente quanto impotente. Governa-se munido de pranchetas, cálculos de governabilidade e da razão desenvolvimentista, mas uma vez fora do governo recorre-se ao carisma como uma manobra tática, à idolatria das imagens. Não se vai longe assim. “Infeliz a nação que precisa de heróis”. A mesmerização do discurso do golpe se limita, no máximo, a reforçar uma matriz comunitária, de sentimento de pertença, cuja salvação depende de um ritual de coesão e algum líder carismático.
Que o impeachment seja tramoia, — vá lá um “golpe palaciano”, — mas não há paladinos nessa história. Não vale o provérbio cria cuervos e después te sacarán los ojos, porque não há palomas nessa história. São todos corvos, como revelou a operação Lava Jato, isto é, um bloco ecumênico de partidos, políticos e parceiros contra o que protesta boa parte dos milhões de indignados em ruas e redes nos últimos anos. Temer foi um velho aliado. O delator Delcídio autointitulado “profeta do caos” foi o líder do governo no senado. O PMDB, um irmão siamês da coalizão lulista. Henrique Meirelles, o homem forte da economia durante os 8 anos do governo Lula. O ajuste fiscal e a reforma do estado, tendências que já estavam postas pelo menos desde a guinada à direita de Dilma, na contramão de sua própria campanha de 2014. Se há descontinuidades entre Dilma e Temer, há também diversas e incontornáveis continuidades. O desentranhamento do PT da coalizão governista não se deu especialmente por suas qualidades.
Num país que viveu duas ditaduras e escravidão, em que o golpismo parece estar situado em sua quintessência [6], com tantos linchamentos diários, violência policial nas metrópoles, encarceramento de pobres em massa, racismo de estado e extermínio indígena, soa de um egocentrismo atroz hoje, depois de 13 anos no poder, colocar-se no centro da peça como vítimas heroicas de um golpe de estado [7]. As únicas tropas nas ruas que vimos nos últimos anos foram as que os governos colocaram na favela, nos megaeventos, nas grandes obras das empresas “campeãs nacionais”, para garantir a lei e a ordem, para exercer a violência legítima contra os não pacificados, os “criminosos”, os selvagens, contra os manifestantes, para fazer reinar a paz…
Não dá pra passar pelos problemas hoje como gato sobre brasa. É preciso introduzir dados novos no desenho, recapitular episódios, argumentar passo a passo, cartografar minuciosamente as relações de força, os impasses, os paradoxos e vaivéns que nos trouxeram até este ponto [8]. O calor da hora não pode subtrair-nos o direito a reflexões necessárias e dolorosas.
[1] Respiração artificial: Sobre o impeachment e suas implicações
[2] Mano Brown: “Eu vi a população virar as costas pra Dilma. Enquanto a favela faz silêncio, a mídia manipula”
[3] Houve 'quase ingratidão' em protestos, diz ministro
[4] Um governo a favor dos caras pálidas
[5] Dilma afirma que não há espaço para discutir 'fantasia' na Rio+20. E também Dilma: quando o consenso pisa na fantasia.
[6] – Sobre o golpismo como um gradiente, um limiar pervasivo e latente do Brasil, ver o excelente ensaio de Diego Viana/Guardo uma pequena diferença com relação a seu posicionamento conjuntural na última seção, pois a meu ver o esgotamento do ciclo, mesmo por meio do atual desenlace, abriga potenciais diversos que estão em aberto.
[7] – Renan Porto já argumentou assim: O golpe da falácia.
[8] – Dois textos que apontam processos emergentes e que contribuem para abrir o pensamento e a prática a um horizonte transformador: Vertigens de junho (Alexandre Mendes e Clarissa Naback) e A sociedade contra o Estado e o Mercado (Moyses Pinto Neto).
(*) Bruno Cava, graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestre em Direito e participa da rede Universidade Nômade (artigo publicado no blog Quadrado dos Loucos, 21/05/16.