domingo, 30 de setembro de 2012

Democracia e golpismo (Maria Celina D’Araujo)


Cientista política reflete sobre as avaliações em andamento dos fatos políticos que redundaram no que se chamou "mensalão"
Desde que o País se redemocratizou, a importância do conhecimento dos cientistas polí­ticos cresceu e sua presença na mídia também se tornou mais cons­tante, especial­mente em momentos eleitorais ou de possí­veis crises políticas. Passaram a estudar com mais rigor e mais recursos metodológi­cos o comportamento político do eleitor, o desempenho dos partidos nas urnas e no Congresso, impactos do sistema eleitoral sobre o sistema partidário, geografia do vo­to, possíveis reformas eleitorais e partidá­rias e seus impactos na qualidade da repre­sentação, etc. Temas não faltam e creio que estamos fazendo isso muito bem. No entan­to, quando se trata de fazer previsões, os cientistas políticos, assim como os econo­mistas, passam por situações vexatórias e humilhantes. Isso é parte do ofício das disci­plinas que lidam diretamente com as resul­tantes da ação humana que são, por defini­ção, imprevisíveis.
A ciência política tem como objeto o po­der, que, como diz Maquiavel, é tema referi­do à ação humana: "A política é coisa dos homens como eles são", ou seja, capazes de patifarias e ações generosas conforme suas habilidades para lidar com circunstâncias, adversidades, desejos de poder e valores.
Dito isso, quero refletir sobre a avaliação em torno dos\fatos políticos que redunda­ram no que se chamou mensalão. Não faço " previsões nem ilações de causa e efeito e não ouso falar do desempenho do Judiciá­rio. Metodologicamente limitada a refletir a posteriori, procuro entender argumentos usados por meus colegas e analistas políti­cos em geral que se posicionam de maneira favorável ao governo do ex-presidente Lula da Silva e ao PT. Entre eles, destaco seis.
Lula não sabia. Num primeiro momento houve o argumento quase unânime de que, se fatos estranhos ocorreram no financia­mento da campanha do PT em 2002, o presi­dente deveria ser poupado, pois tudo teria se passado à sua revelia. A começar pelo denun­ciante, Roberto Jefferson, o presidente era pessoa honrada e deveria ser deixada à mar­gem desses fatos. Em entrevista ao Aliás em 10 de julho de 2005, defendi que, a julgar pela história de nosso presidencialismo a partir de 1946, era impossível imaginar que qual­quer operação política de grande vulto, en­volvendo empresários e uma grande rede de partidos, pudesse ser feita sem o conheci­mento do presidente em exercício.
O mensalão nunca existiu. Essa afirmação persistiu ao longo do processo. Teria sido uma invenção da oposição e da "imprensa golpista". Cientistas políticos comprova­ram que, a julgar pela trajetória do comporta­mento dos partidos no Congresso, nada indi­caria a compra de votos. De fato, o Executivo continuou aprovando seus projetos com as altas taxas de sucesso que tivera desde o go­verno Itamar: desde então, cerca de 95% dos projetos Aprovados pelo Legislativo têm ori­gem no Executivo. Foi nesse compasso que se votou a emenda da reeleição proposta pe­lo ex-presidente Fernando Henrique, recor­rentemente lembrada como uma vitória à custa da compra de votos.
O que o PT fez não tem nada diferente. Nesse caso, trata-se de um direito adquirido pela classe política de usar privadamente re­cursos públicos. Corrupção e negociatas se­riam prática comum no Brasil. Por que fazer do PT a única vítima de uma prática que tem consentimento generalizado? Explica-se que a crítica deriva do elitismo dos que não querem reconhecer os inegáveis avanços so­ciais do País desde 2003. Seria uma vertente da conspiração das elites, mas com a reafir­mação cínica de que "se todos roubam, por que o PT não pode?" Alguns parlamentares do PT chegaram a afirmar que, como aprendizes, não souberam fazer isso tão bem quan­to os partidos mais experientes.
O mensalão não tem impacto nas elei­ções, pois o povo não se interessa por es­ses assuntos. Se tem ou não impacto, não me cabe avaliar, não é minha expertise, se alguma tenho. Preocupante é aceitar com naturalidade que o eleitor não leve em conta temas éticos. De todos os argumentos que tentaram minimizar a importância do men­salão, esse me parece o mais grave. Foi muito acionado no início da campanha pelos governistas mais otimistas, embora, depois, o tom tenha mudado um pouco. O que importa é que foi um argumento corriqueiro que faz supor que o Brasil possa ser mesmo um país de gente moralmente indolente. No entan­to, à medida que a candidatura de Celso Russomanno à Prefeitura de São Paulo avançou nas pesquisas, esses mesmos analistas sen­tenciaram que o eleitor se tornou um consu­midor mais exigente. Pelo menos isso.
Lula passará imune a todo o processo. As teses a esse respeito vão em duas direções: sua liderança pessoal é inabalável e o lulismo veio para ficar. Se lulismo significa mais justi­ça social, é desejável mesmo que continue. As democracias modernas, contudo, su­põem revezamento dp líderes e partidos no poder. Momentos de baixa acontecem com líderes e organizações partidárias sem que isso signifique seu ocaso.
Há golpismo no ar. Governistas e analistas simpatizantes do governo têm insistido nes­se ponto. Há golpismo da direita contra os avanços nas políticas sociais do PT, e o PIG, "partido da imprensa golpista", leia-se toda a grande imprensa, estaria ao lado dos con­servadores. Segundo a nota dos partidos da base (20/09) em apoio ao ex-presidente, nem o STF escaparia: seria parte da trama que visa a "golpear a democracia e reverter as conquistas que marcaram a gestão do pre­sidente Lula". Há uma entidade vigorosa no ar: os golpistas. A oposição também bate firme nessa tecla quando insiste que o PT pode acionar qualquer mecanismo não repu­blicano para se manter no poder. Tendo em vista essas suspeitas generalizadas sobre golpes e golpismo, só resta concluir que a qualidade da democracia no Brasil ainda dei­xa muito a desejar.
Um argumento adicional presente entre os militantes do PT é o de que o mais impor­tante nas eleições de 2012 seria derrotar os tucanos em São Paulo. São Paulo, de fato, é um caso de pouca rotatividade no poder des­de 1982. No entanto, os governos, lá e alhu­res, são escolhidos por cidadãos que preci­sam ser respeitados em suas escolhas.
Estou relendo Sociologia dos Partidos Políti­cos, de Robert Michels, que em termos de realismo político chega a ser mais cruel do que Maquiavel. Baseado em sua experiência no partido alemão da social-democracia, do início do século 20, afirma que "à medida que a organização (o partido operário) cres-ce, a luta pelos grandes princípios se torna impossível". Impossível? Não, claro que não. Mas certamente é uma tarefa à qual os partidos que se dizem programáticos preci­sam dar mais atenção.
Maria Celina D’Araujo, doutora em ciência política, é professora da PUC-Rio
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás

A década includente (José de Souza Martins)


A melhora na distribuição de renda das populações oriundas das duas escravidões do País é também um avanço na emancipação que as libertou pela metade
Ouço, num link de transmissão sonora e visual do site do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), a exposição com que seu presidente, Marcelo Neri, dá aos jornalistas a boa notícia de que na última década a distribuição de renda no Brasil melhorou. Sumariza ele os resultados do estudo A Década Inclusiva (2001-2011) - Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda. Diminuiu a distância entre os mais ricos e os mais pobres. Ao mesmo tempo, tenho diante de mim a primeira página de O Estado de S. Paulo de 5ª feira. Nela, uma fotografia de Tiago Queiroz retrata um miserável encolhido de frio sob um improvisado barraco na rua, feito de placas de propaganda de candidatos a vereador na cidade de São Paulo.
O nó da feliz estatística anunciada está em baixo daquele tapume. A começar pelo fato de que os dados para medição da distribuição de renda se baseiam na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Aquele barraco não é domicílio, como não o é o chão em que milhares de pessoas, em nossas cidades, dormem no pesadelo cotidiano da incerteza. Os que mais carecem não são alcançados nem pela distribuição da renda nem pelas estatísticas sobre pobreza.
Neri não pretende passar um retrato descabidamente otimista sobre a melhora relativa na repartição dos ganhos da economia. Antes, assinala que estamos chegando ao padrão de distribuição de renda que tínhamos em 1960, embora a sociedade fosse mais pobre que hoje. Poderíamos definir esse meio século como o longo tempo da modernização da pobreza no Brasil, uma pobreza, agora, de privações dramáticas. Serão necessários pelo menos 20 anos para chegarmos ao padrão de distribuição desigual da riqueza de países como os EUA. Mas ainda temos lastro para incrementar a distribuição de renda e atenuar as desigualdades que nos afligem. Na média, nossos pobres estão se tornando apenas menos pobres.
O estudo se baseia no pressuposto de que a pobreza dos 10% mais pobres é apenas uma questão de grau em relação aos 10% mais ricos. O Bolsa-Família e o programa de Benefício de Prestação Continuada, programas compensatórios do governo que incrementam a renda dos mais pobres, são decisivos para atenuar a distribuição desigual de renda. O estudo econômico não avalia, porém, nem tem por que avaliar, que esses benefícios não deslocam necessariamente o eixo social de referência dos beneficiados, especialmente os pobres do campo, cuja economia pré-moderna é predominantemente baseada na produção direta dos meios de vida.
As doações financeiras do governo, não obstante, corroem a lógica econômica dessas populações, incrementando em sua vida necessidades sociais que dependem de mais dinheiro e mais mercadorias de fora de seu sistema econômico restrito. Um processo clássico de desenraizamento de populações retardatárias da história, tão característico do Brasil e da América Latina.
É nessa perspectiva que se pode analisar uma das importantes constatações do estudo, a de que "a renda daqueles que se identificam como pretos e pardos sobe 66,3% e 85,5% respectivamente, contra 47,6% dos brancos". Uma de suas conclusões é a de que: "Mais que o país do futuro entrando no novo milênio, o Brasil, último país do mundo ocidental a abolir a escravatura, começa a se libertar da sua herança escravagista".
Ora, a distinção censitária de pretos e pardos e, aqui, a indicação da melhora diferencial que tiveram na distribuição de renda precisam ser devidamente matizadas. O censo mostra que a maior concentração dos que se identificam como pardos está no Norte do País e a maior concentração dos que se identificam como pretos está no Nordeste litorâneo, o chamado Nordeste açucareiro. Embora haja uma tendência confusa no sentido de tratar os pardos como negros que se envergonham de sua negritude, o fato é que a concentração regional nos diz que os pardos não são mulatos, são pardos mesmo, como eram classificados no período colonial os índios administrados, aqueles submetidos a cativeiro. Oriundos, pois, de uma escravidão jurídica e sociologicamente distinta da escravidão negra, formalmente libertados pelo Diretório dos Índios do Maranhão e Grão-Pará, em 1755. Diferentes do negro libertado pela Lei Áurea de 1888. Ambos os grupos mantidos à margem da liberdade jurídica que lhes fora concedida e reduzidos a formas disfarçadas de servidão.
Nesse sentido, o que aparece como melhora na distribuição de renda, em relação sobretudo às populações oriundas das duas escravidões que tivemos (e da terceira que ainda temos), é também um avanço na emancipação que as libertou pela metade. O pequeno incremento de renda que os setores mais pobres da sociedade tiveram na década permite-lhes, ainda que na crua contradição de inserção mais ampla no mercado e maior corrosão de seus costumes e de seu modo de vida, acelerarem sua travessia histórica para a sociedade moderna.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE EXCLUSÃO SOCIAL, A NOVA DESIGUALDADE (PAULUS)
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A desvantagem de quem se recandidata (Maria Cristina Fernandes)


Marcio Lacerda (PSB), Eduardo Paes (PMDB) e José Fortunatti (PDT) são, nesta ordem, os prefeitos de capital melhor avaliados do país (Datafolha, 28/08). As pesquisas indicam que os prefeitos do Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre lideram com folga a disputa eleitoral e têm grandes chances de reeleição.
Deste minúsculo universo não é possível tirar a conclusão de que prefeitos candidatos à reeleição sempre levam a melhor. A boa avaliação de suas gestões pode estar relacionada com sua vantagem eleitoral mas até esta inferência tem que ser matizada. O quarto prefeito de capital melhor avaliado pelo Datafolha, Luciano Ducci (PSB), cuja nota é apenas 0,3 pontos abaixo daquela recebida por Fortunatti está atrás de Ratinho Jr (PSC) na disputa por Curitiba.
O foco nas capitais e grandes municípios tem levado a conclusões precipitadas sobre o instituto da reeleição, principalmente quando a disputa em jogo é a municipal. A opinião ligeira que trata o Brasil como um grande curral de votos vê nas disputas locais o locus por excelência do mandonismo secular que, amparado no uso da máquina, só teria ganho força com a reeleição.
Quanto menor e mais pobre a cidade, mais difícil é a reeleição
Artigo publicado no mais recente número da Novos Estudos/Cebrap dos pesquisadores Thomas Brambor e Ricardo Ceneviva jogam por terra a tese de que o candidato à reeleição parte em vantagem. Estudos anteriores baseavam-se nas capitais e cidades com segundo turno. Nesse universo, a taxa de reeleição ronda os 70%.
Por mais que este colégio eleitoral represente as 83 maiores cidades do país, generalizar seus resultados para o conjunto de 5.563 municípios envieza e distorce os fatos.
Desde que a reeleição foi instituída já se realizaram sete disputas, três das quais municipais. Foi sobre essas três disputas (2000, 2004 e 2008), em que concorreram 42.493 mil candidatos que os pesquisadores se debruçaram.
Fizeram vários recortes, dos quais excluíram aqueles que se elegeram por largas margens de voto da primeira vez para evitar que fatores difíceis de mensurar, como carisma, melassem a comparação.
Entre os recortes há aqueles de prefeitos candidatos à reeleição que, na primeira disputa, haviam ganho por margem de 1% até 5% dos votos. Incluíram ainda um levantamento para duplas de candidatos que voltariam a se encontrar nas eleições seguintes, quando apenas um deles estaria no cargo disputando na condição de prefeito.
Em todos os recortes a fatia de prefeitos elegíveis que tentou a reeleição varia de 65% a 74%. O dado já indica as dificuldades de quem está no cargo. Fosse fácil, os prefeitos candidatos à reeleição se aproximariam da totalidade.
Dos que resolvem se candidatar, cerca de metade se reelege. O que significa que, dos elegíveis, gira em torno de um terço aqueles que são bem sucedidos em ficar dois mandatos na prefeitura.
Nas duplas de candidatos que se encontram em eleições consecutivas, quando um deles já está no cargo, a taxa dos que permanecem no poder é apenas de 40% dos elegíveis. Prefeitos que reencontram seus oponentes quatro anos depois perdem, em média, 4,4% de sua margem de votos.
Foi mais difícil para quem era prefeito em 2000 e 2004 buscar a reeleição do que para aqueles que se recandidataram em 2008. Isso pode ter a ver com a economia que melhorou ao longo da década. A disputa de 2008 aconteceu no mês seguinte à queda do Lehmann Brothers, quando os efeitos sobre a economia brasileira ainda eram irrisórios.
Cruzados com PIB per capita e população, os dados de Brambor e Ceneviva também levam à conclusão de que a desvantagem dos prefeitos é maior nas cidades pequenas e mais pobres.
O artigo não avança nas razões do fenômeno, mas o acesso mais restrito dessas cidades a fontes de financiamento deve ser parte da explicação.
A execução das políticas públicas sob sua responsabilidade também ajuda a entender por que é tão difícil ser prefeito.
Das sondagens que se tem notícia nem o melhor avaliado deles, Márcio Lacerda, alcança a popularidade da presidente Dilma Rousseff que, esta semana, bateu novo recorde.
Os prefeitos desgastam-se porque estão sob sua alçada as principais políticas públicas: saúde, boa parte da educação, transporte e a infraestrutura urbana.
Essas atribuições de políticas públicas nem sempre são acompanhadas de recursos. Na saúde, por exemplo, que os eleitores dizem ser o maior problema de suas cidades, os gastos municipais aumentaram mais que os federais e estaduais e estariam, como mostrou o repórter Luciano Máximo, do Valor (27/09), numa média de 22% das receitas próprias, mais do que manda a Emenda 29 (15%).
Os prefeitos gastam mais do que são obrigados com o principal problema da população e ainda assim penam para se reeleger. Que a competição política aumente na proporção inversa da população e renda só contraria a tese de que a democracia claudica nos grotões.
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Fonte: Valor Econômico

O PT na hora do lobo (Fernando Gabeira)


A Hora do Lobo é um filme de Ingmar Bergman. Os antigos a chamavam assim porque é a hora em que a maioria das pessoas morre... e a maioria nasce. Nessa hora os pesadelos nos invadem, como o fizeram com o personagem Johan Borg, interpretado por Max von Sydow.
Como projeto destinado a mudar a cultura política do País, o PT fracassou no início de 2003. Para mim, que desejava uma trajetória renovadora, o PT sobrevive como um fósforo frio. Entretanto, na realidade, é uma força indiscutível. Detém o poder central, ocupou a máquina do Estado, criou um razoável aparato de propaganda e parece que o dinheiro chove em sua horta com a regularidade das chuvas vespertinas na Floresta Amazônica. Mas o PT está diante de um novo momento que poderia levá-lo a uma crise existencial, como o personagem de Bergman, atormentado pelos pesadelos. Pode também empurrá-lo mais ainda para o pragmatismo que cavou o abismo entre as propostas do passado e a realidade do presente.
O PT sempre usou duas táticas combinadas para enfrentar as denúncias de corrupção. A primeira é enfatizar seu objetivo: uma política social que distribui renda e reduz as grandes desigualdades nacionais. Diante dessa equação que enfatiza os fins e relativiza os meios, alguns quadros chegam a desprezar as críticas, atribuindo-as às obsessões da classe média, etiquetando-as como um comportamento da velha UDN, partido marcado pela oposição a Getúlio Vargas e pela proximidade com o golpe que derrubou João Goulart. A segunda é criar uma versão corrigida para os fatos negativos, certo de que a opinião pública ficará perdida na guerra de versões. Esta tática é a que enfatiza o desprezo da política moderna pelas evidências, como se o confronto fosse uma guerra em que a verdade é vitimada por ambos os lados.
Acontece que essa fuga das evidências encontra seu teste máximo no julgamento do mensalão. O ministro Joaquim Barbosa apresenta as acusações com grande riqueza de detalhes. As teses corrigidas foram sendo atropeladas pelos fatos. Não era dinheiro público? Ficou claro que sim, era dinheiro público circulando no mensalão. Ninguém comprou ninguém, eram apenas empréstimos entre aliados. Teses que se tornam risíveis diante da origem e do volume do dinheiro. O PT salvando o PP de José Janene, Pedro Correa e Pedro Henry da fúria dos credores?
O relatório de Joaquim Barbosa apresenta o mensalão como uma evidência reconhecida pela maioria do Supremo, dos órgãos de comunicação e dos brasileiros. Como ficará a tática do PT diante dessa realidade? Negar a evidência? É um tipo de reação que, mesmo em tempo de prosperidade econômica, não funciona quando os fatos são inequívocos.
Ao longo de minhas viagens observei que o mensalão não havia afetado as eleições municipais. Mas o processo está em curso. Algumas cidades já estão afetadas, como São Paulo e Curitiba. Nesta ocorre algo bastante irônico: o candidato Gustavo Fruet (PDT) é acusado de ter o apoio do PT e por isso perde votos. Fruet foi um dos deputados que investigaram o mensalão na CPI dos Correios.
A reação do PT diante da possível condenação de seus líderes vai ser decisiva. Encontrará forças para reconhecer seu erro, aceitar o julgamento do STF e iniciar um processo de autocrítica? Tudo indica que não. A teoria conspiratória domina suas declarações. O mensalão foi uma invenção da mídia golpista, dizem alguns. Na nota dos partidos aliados, que deviam ser chamados de partidos submissos, acusa-se uma manobra da oposição, como se tudo isso tivesse sido construído por ela, que descansa em berço esplêndido.
Numa entrevista raivosa, um dos réus, Paulo Rocha (PT-PA), alega que as denúncias do mensalão ocorrem porque Lula abriu o mercado brasileiro aos países árabes. A tese conspiratória é tão clássica que os judeus não poderiam ser esquecidos.
O ex-presidente Lula parece viver realmente a hora do lobo. Percorre o Brasil atacando adversários e diz que, tal como venceu o câncer, vai derrotar os candidatos de oposição. Se o ressentimento e o rancor brotam com tanta facilidade dos lábios do líder máximo, o que esperar do exército virtual de combatentes pagos para atirar pedras?
Este é um momento crítico na história do PT. Deve contestar estas evidências com a mesma eloquência com que contestou outras. Mas as de agora são transmitidas ao vivo, foram submetidas ao exame de ministros do Supremo, estão coalhadas de fatos, depoimentos, provas.
Ao contestar as evidências o PT não inventa um caminho. Paulo Maluf foi acusado durante anos de desviar dinheiro para o exterior e sempre negou. A condenação e a eventual prisão de líderes não afastam o PT do poder, mas transformam o encontro nos jardins da casa de Maluf em algo mais que uma simples oportunidade fotográfica. O PT não só verteu milhões para os caixas do partido Maluf, como aceitará a tática malufista de negar as evidências, mesmo quando são esmagadoras.
Em defesa de Maluf pode-se dizer que ele nunca prometeu a renovação ética da política brasileira. Usa apenas um mesmo e fiel assessor de imprensa para rebater críticas nos espaços de cartas de leitores. Descendente de árabes, Maluf jamais, ao que me consta, culpou uma conspiração sionista por sua desgraça. Sempre foi o Maluf apenas, sem maiores mistificações.
Montado numa máquina publicitária, apoiado por uma miríade de intelectuais, orientado por competentes marqueteiros, o PT viverá em escala partidária a aventura individual de Maluf: negar as evidências. Até o momento nada indica que assumirá a realidade. Seu caminho deve ser negar, negar, como o marido infiel nas peças de Nelson Rodrigues - por sinal, o inventor da expressão "óbvio ululante".
O mensalão não é um cadáver no armário, invenção de opositores ou da imprensa. Nasceu, cresceu e implodiu nas entranhas do governo. É difícil sentar-se em cima dos fatos. Ele são como uma baioneta: espetam.
Fonte: O Estado de S. Paulo

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A teoria política da corrupção (Demétrio Magnoli)


Nos idos de 2005 o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos formulou o discurso adotado pelo PT em face do escândalo do mensalão. O noticiário, ensinou, constituiria uma tentativa de "golpe das elites" contra o "governo popular" de Lula. No ano passado o autor da tese assumiu a presidência da Casa de Rui Barbosa, cargo de confiança subordinado ao Ministério da Cultura. É nessa condição que, em entrevista ao jornal Valor (21/9), ele reativa sua linha de montagem de discursos "científicos" adaptados às conveniências do lulismo. Desta vez, para crismar o julgamento do mensalão como "julgamento de exceção" conduzido por uma Corte "pré-democrática".
A entrevista diz algo sobre o jornalismo do Valor. As perguntas não são indagações, no sentido preciso do termo, mas introduções propícias à exposição da tese do entrevistado - como se (oh, não, impossível!) jornalista e intelectual engajado preparassem o texto a quatro mãos. Mas a peça diz uma coisa mais importante sobre o tema do compromisso entre os intelectuais e o poder: o discurso científico sucumbe no pântano da fraude quando é rebaixado ao estatuto de ferramenta política de ocasião.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) narraram uma história de apropriação criminosa de recursos públicos e de fabricação de empréstimos fraudulentos pela direção do PT, que se utilizou para tanto das prerrogativas de quem detém o poder de Estado. Wanderley Guilherme, contudo, transita em universo paralelo, circundando o tema da origem do dinheiro e repetindo a versão desmoralizada da defesa: "O que os ministros expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais (...). Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum (...), como se fosse algum projeto maligno".
Wanderley Guilherme não parece incomodado com a condenação dos operadores financeiros do esquema, mas interpreta os veredictos dos ministros contra os operadores políticos (ou seja, os dirigentes do PT) como frutos de um "desprezo aristocrático" pela "política profissional". O dinheiro desviado serviu para construir uma coalizão governista destituída de um mínimo de consenso político, explicou a maioria do STF. O cientista político, porém, atribui o diagnóstico a uma natureza "pré-democrática" de juízes incapazes de compreender tanto os defeitos da legislação eleitoral brasileira quanto o funcionamento dos "sistemas de representação proporcional", que "são governados por coalizões das mais variadas".
O núcleo do argumento serviria para a defesa de todo e qualquer "mensalão". Os acusados tucanos do "mensalão mineiro" e os acusados do DEM do "mensalão de Brasília" estão tão amparados quanto os petistas por uma concepção da "política profissional" que invoca a democracia para justificar a fraude do sistema de representação popular e qualifica como aristocráticos os esforços para separar a esfera pública da esfera privada. A teoria política da corrupção formulada pelo intelectual deve ser lida como um manifesto em defesa de privilégios de impunidade judicial do conjunto da elite política brasileira.
Mas, obviamente, o argumento perde a força persuasiva se for lido como o que, de fato, é. Para ocultar seu sentido, conferindo à obra uma coloração "progressista", Wanderley Guilherme acrescenta-lhe uma camada de tinta fresca. A insurreição "aristocrática" do STF contra a "política democrática" derivaria da rejeição a uma novidade histórica: a irrupção da "política popular de mobilização", representada pelo PT. A Corte Suprema estaria "reagindo à democracia em ação" por meio de um "julgamento de exceção", um evento singular que "jamais vai acontecer de novo".
É nesse ponto do raciocínio que a teoria política da corrupção se transforma na corrupção da teoria política. Uma regra inviolável do discurso científico, explicou Karl Popper, é a exigência de consistência interna. Um discurso só tem estatuto científico se estiver aberto a argumentos racionais contrários. Quando apela à profecia de que os tribunais não julgarão outros casos com base na jurisprudência estabelecida nos veredictos do mensalão, Wanderley Guilherme embrenha-se pela vereda da fraude científica. A sua hipótese sobre o futuro - que, logicamente, não pode ser confirmada ou falseada - impede a aplicação do teste de Popper.
Há duas leituras contrastantes, ambas coerentes, sobre o "mensalão do PT". A primeira acusa o partido de agir "como os outros", entregando-se às práticas convencionais da tradição patrimonial brasileira e levando-as a consequências extremas. O diagnóstico, uma "crítica pela esquerda", interpreta o extenso arco de alianças organizado pelo lulismo como fonte de corrupção e atestado da falência da natureza transformadora do PT. A segunda acusa o partido de operar, sob o impulso de um projeto de poder autoritário, com a finalidade de quebrar os contrapesos parlamentares ao Executivo e se perpetuar no governo. A "crítica pela direita" distingue o "mensalão do PT" de outros casos de corrupção política, enfatizando o caráter centralizado e as metas de longo prazo do conjunto da operação.
A leitura corrompida de Wanderley Guilherme forma uma curiosa alternativa às duas interpretações. Seu núcleo é uma celebração da corrupção inerente à política patrimonial tradicional, que seria a "política profissional" nos "sistemas de representação proporcional". Seu verniz aparente, por outro lado, é um elogio exclusivo da corrupção petista, que expressaria a "irrupção da política de mobilização popular" e a "democracia em ação". Na fronteira em que o pensamento acadêmico se conecta com a empulhação militante, o paradoxo pode até ser batizado como dialética. Contudo mais apropriado é reconhecê-lo como um reflexo especular da fotografia na qual Paulo Maluf e Lula da Silva reelaboram os significados dos termos "direita" e "esquerda".
Fonte: O Estado de S. Paulo

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Adeus, Lula (Marco Antonio Villa)


A presença constante no noticiário de Luís Inácio Lula da Silva impõe a discussão sobre o papel que deveriam desempenhar os ex-presidentes. A democracia brasileira é muito jovem. Ainda não sabemos o que fazer institucionalmente com um ex-presidente. Dos quatros que estão vivos, somente um não tem participação política mais ativa. O ideal seria que após o mandato cada um fosse cuidar do seu legado. Também poderia fazer parte do Conselho da República, que foi criado pela Constituição de 1988, mas que foi abandonado pelos governos - e, por estranho que pareça, sem que ninguém reclamasse.
Exercer tão alto cargo é o ápice da carreira de qualquer brasileiro. Continuar na arena política diminui a sua importância histórica - mesmo sabendo que alguns têm estatura bem diminuta, como José Ribamar da Costa, vulgo José Sarney, ou Fernando Collor. No caso de Lula, o que chama a atenção é que ele não deseja simplesmente estar participando da política, o que já seria ruim. Não. Ele quer ser o dirigente máximo, uma espécie de guia genial dos povos do século XXI. É um misto de Moisés e Stalin, sem que tenhamos nenhum Mar Vermelho para atravessar e muito menos vivamos sob um regime totalitário.
As reuniões nestes quase dois anos com a presidente Dilma Rousseff são, no mínimo, constrangedoras. Lula fez questão de publicizar ao máximo todos os encontros. É um claro sinal de interferência. E Dilma? Aceita passivamente o jugo do seu criador. Os últimos acontecimentos envolvendo as eleições municipais e o julgamento do mensalão reforçam a tese de que o PT criou a presidência dupla: um, fica no Palácio do Planalto para despachar o expediente e cuidar da máquina administrativa, funções que Dilma já desempenhava quando era responsável pela Casa Civil; outro, permanece em São Bernardo do Campo, onde passa os dias dedicado ao que gosta, às articulações políticas, e agindo como se ainda estivesse no pleno gozo do cargo de presidente da República.
Lula ainda não percebeu que a presença constante no cotidiano político está, rapidamente, desgastando o seu capital político. Até seus aliados já estão cansados. Deve ser duro ter de achar graça das mesmas metáforas, das piadas chulas, dos exemplos grotescos, da fala desconexa. A cada dia o seu auditório é menor. Os comícios de São Paulo, Salvador, São Bernardo e Santo André, somados, não reuniram mais que 6 mil pessoas. Foram demonstrações inequívocas de que ele não mais arrebata multidões. E, em especial, o comício de Salvador é bem ilustrativo. Foram arrebanhadas - como gado - algumas centenas de espectadores para demonstrar apoio. Ninguém estava interessado em ouvi-lo. A indiferença era evidente. Os "militantes" estavam com fome, queriam comer o lanche que ganharam e receber os 25 reais de remuneração para assistir o ato - uma espécie de bolsa-comício, mais uma criação do PT. Foi patético.
O ex-presidente deveria parar de usar a coação para impor a sua vontade. É feio. Não faça isso. Veja que não pegou bem coagir: 1. Cinco partidos para assinar uma nota defendendo-o das acusações de Marcos Valério; 2. A presidente para que fizesse uma nota oficial somente para defendê-lo de um simples artigo de jornal; 3. Ministros do STF antes do início do julgamento do mensalão. Só porque os nomeou? O senhor não sabe que quem os nomeou não foi o senhor, mas o presidente da República? O senhor já leu a Constituição?
O ex-presidente não quer admitir que seu tempo já passou. Não reconhece que, como tudo na vida, o encanto acabou. O cansaço é geral. O que ele fala, não mais se realiza. Perdeu os poderes que acreditava serem mágicos e não produto de uma sociedade despolitizada, invertebrada e de um fugaz crescimento econômico. Claro que, para uma pessoa como Lula, com um ego inflado durante décadas por pretensos intelectuais, que o transformaram no primeiro em tudo (primeiro autêntico líder operário, líder do primeiro partido de trabalhadores etc, etc), não deve ser nada fácil cair na real. Mas, como diria um velho locutor esportivo, "não adianta chorar". Agora suas palavras são recebidas com desdém e um sorriso irônico.
Lula foi, recentemente, chamado de deus pela então senadora Marta Suplicy. Nem na ditadura do Estado Novo alguém teve a ousadia de dizer que Getúlio Vargas era um deus. É desta forma que agem os aduladores do ex-presidente. E ele deve adorar, não? Reforça o desprezo que sempre nutriu pela política. Pois, se é deus, para que fazer política? Neste caso, com o perdão da ousadia, se ele é deus não poderia saber das frequentes reuniões, no quarto andar do Palácio do Planalto, entre José Dirceu e Marcos Valério?
Mas, falando sério, o tempo urge, ex-presidente. Note: "ex-presidente". Dê um tempo. Volte para São Bernardo e cumpra o que tinha prometido fazer e não fez. Lembra? O senhor disse que não via a hora de voltar para casa, descansar e organizar no domingo um churrasco reunindo os amigos. Faça isso. Deixe de se meter em questões que não são afeitas a um ex-presidente. Dê um bom exemplo. Pense em cuidar do seu legado, que, infelizmente para o senhor, deverá ficar maculado para sempre pelo mensalão. E lá, do alto do seu apartamento de cobertura, na Avenida Prestes Maia, poderá observar a sede do Sindicato dos Metalúrgicos, onde sua história teve início. E, se o senhor me permitir um conselho, comece a fazer um balanço sincero da sua vida política. Esqueça os bajuladores. Coloque de lado a empáfia, a soberba. Pense em um encontro com a verdade. Fará bem ao senhor e ao Brasil.
Fonte: O Globo

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O 'mensalão' e o prático inerte sartriano (Luiz Werneck Vianna)


Não andaria com a cabeça nas nuvens quem, meses atrás, imaginasse que o tempo do julgamento dessa Ação Penal 470 jamais chegaria. E se chegasse, supunham outros, caso coincidisse com o período das eleições municipais, traria consigo um clima de exasperação da política e de ruas efervescentes pela participação popular, contra ou em defesa de algumas lideranças de um partido à testa do governo há quase dez anos, ora levadas às barras de um tribunal. Mas, faltando ainda o principal - qual seja, o julgamento do núcleo político que teria sido o ideador da operação dos malfeitos contra a administração pública e instituições republicanas -, o clamor que tem vindo das ruas, até o momento, é de origem distinta, pois procede de movimentos prosaicos dos servidores públicos, inclusive de carreiras estratégicas de Estado, em torno de questões salariais.
Nada de trivial nessa constatação, uma vez que ela pode significar um processo de amadurecimento das instituições da nossa democracia política no exercício do controle do poder político e no culto republicano de obediência e respeito às leis, que a todos, governantes e governados, igualmente deve obrigar. Contudo, se avaliado de uma perspectiva com foco mais reduzido, esse sinal lisonjeiro não pode eclipsar um diagnóstico perturbador, uma vez que o silêncio das ruas estampa a distância existente entre a política e a população, ora reduzida à posição de mera observadora do andamento de um processo que expõe à vista de todos práticas de malfeitos de alguns dos dirigentes do partido hegemônico na coalizão governamental, ele próprio inerme diante da situação.
As razões dessa distância também não são triviais. Se ela, agora, se tornou evidente, suas origens são remotas e não podem ser buscadas exclusivamente numa repentina conversão da multidão às regras do jogo democrático e a uma atitude de reverência diante da autonomia do Poder Judiciário, embora, em algum grau, algo disso possa estar-se fazendo presente. Datam essas razões, longe disso, das cruciais opções assumidas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) imediatamente após sua vitória eleitoral em 2002, conquistada em nome de agendas igualitárias nascidas no campo da esquerda.
Nessa hora, e contrariamente à opinião de importantes próceres do PT, esse partido se recusou a enveredar por uma via de aliança com o PMDB, agremiação partidária congressualmente majoritária, preterida em favor de uma coalizão com partidos de menor representação, quase todos legendas de baixa densidade programática, fundamentalmente preocupados com a reprodução política dos seus quadros dirigentes, para os quais a conquista de posições fortes na administração pública era a chave para o atendimento de suas clientelas locais. Assim, seu programa de mudanças, além de contingenciado pelas reservas da época quanto à sua capacidade de garantir a estabilidade financeira - pedra de toque da conjuntura do primeiro governo Lula -, tornava-se dependente de uma coalizão estranha ou indiferente à agenda política que o tinha conduzido à vitória eleitoral.
A matéria bruta da Ação Penal 470, o mensalão, foi gestada no interior e a partir dessa decisão política de perseguir objetivos de mudança social desancorada de uma ativa esfera pública democrática, que importava a mobilização dos movimentos sociais, que logo, aliás, seriam postos sob a influência de agências estatais, quando não estatalizados tout court, convertendo-se a política num quase monopólio da chefia do Executivo. Aos partidos dessa bizarra coalizão presidencial, tangidos a ela com a expectativa de extrair recursos públicos para sua reprodução eleitoral, caberia conceder apoio parlamentar às iniciativas governamentais, enquanto ao Executivo, pelas vias decisionistas do direito administrativo, caberia realizar a agenda de mudanças avaliada como compatível com as circunstâncias.
Tal cálculo político, certamente exótico ao campo da esquerda, encontrou seu coroamento na política de massificação da política social com os programas assistenciais, revestindo a sociedade do estatuto do prático inerte de que falava Jean-Paul Sartre, massa passiva a ser conduzida por uma inteligência posta acima dela. Como um prático inerte, politicamente imobilizada, salvo nos períodos eleitorais, quando suas ações eram pautadas pelas legendas partidárias, a sociedade viveu mais um ciclo de modernização econômica, fortemente aparentado com os ciclos que se sucederam a partir dos anos 1930, tendo, de fato, experimentado, pela ação afirmativa de políticas públicas conduzidas pelo Estado, uma significativa incorporação ao mundo dos direitos de parcelas da população até então à sua margem. Mas a sociedade que emerge desse experimento de mudança por cima, se conhece a modernização, não irrompe para o moderno.
Filha de um tipo particular de revolução passiva, na forma tão bem caracterizada pelo sociólogo Francisco de Oliveira em seu ensaio Hegemonia às Avessas (São Paulo, Boitempo, 2010), a sociedade que dela resulta traz em si duas marcas negativas, ambas sáfaras à floração de uma cultura política democrática: a da restauração do poder político das oligarquias tradicionais, às quais se propiciaram os meios para a preservação do seu domínio local; e a valorização sans phrase da dimensão do interesse, numa versão chapada e imune à política. Os sobrenomes e a genealogia de tantos envolvidos na presente sucessão municipal testemunham isso, assim como aí estão os ecos na política dos cultos religiosos centrados na ideologia da prosperidade.
Com esse quadro, não é de espantar que a política pareça ter migrado para o mundo fechado dos tribunais.
Professor-pesquisador da PUC-Rio, é coordenador do Centro de Estudos Direito e sociedade (CEDES)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O depoimento dramático de uma educadora de VV

Nesses últimos quatro anos a  história da educação de Vila Velha é uma história trágica.
Nada poderia surpreender em uma administração que teve quatro secretários de educação ao sabor das conveniências políticas. A educação foi tratada como moeda de troca em balcão de negócios em nome de uma pretensa governabilidade. Até nas mãos de vereador a educação foi entregue e sacrificada. 
Os números do IDEB/2012 não mentem: Vila Velha caiu na avaliação do MEC. Mentiram as propagandas governamentais e mente, agora, o horário político do prefeito-candidato com seus números ilusionistas sobre escolas e creches.
O depoimento dramático da profa. Cristina Ramos é a tradução fiel da angústia e desespero dos profissionais da Educação. É um grito preso na garganta, um grito parado no ar, um grito sufocado pelo medo e clima de perseguição e intimidação implantado na rede municipal de ensino. Até quando???

Um depoimento dramático:


"Mais uma vez, torna-se claro o descaso do Prefeito Neucimar com a Educação. Além de não cumprir o piso salarial, de coagir funcionários,de contratar assessores , de não cumprir nenhuma promessa feita para a Educação, de mentir com relação ao número de escolas - umef's e umeis - que construiu em sua desastrosa gestão, como se não bastasse TUDO isso, esta semana ele deu mais uma prova de sua falta de competência. 
Falo isso porque será que uma pessoa que está na vida pública por tanto tempo, desconhece que existem leis e regras que devem ser cumpridas em período pré-eleitoral?
Desde a semana passada, nós funcionários contratados da Educação (professores, pedagogos e cuidadoras) estamos sendo feitos de peteca nas mãos da Secretaria de Educação, uma vez que chegam os Diretores e nos avisam que nossos contratos foram cancelados e nos mandam para casa. Depois, em total mostra de ineficiência, esses mesmos Diretores nos ordenam retornar as escolas e que na verdade não deveríamos nem ter ido embora. E, para completar a falta de respeito conosco, mais uma vez, o Diretor vem comunicar-nos que uma equipe da SEMED virá pessoalmente na escola dar-nos um pé em nossos traseiros! 
É vergonhoso como tratam a questão da Educação! Até hoje, faltando 3 meses para acabar o ano letivo, escolas ainda sofrem com a falta de professores e Diretores manipuladamente mansos, dão "jeitinhos" para que as turmas não sejam dispensadas e colocam em salas de aulas pessoas que não possuem vínculo com o município, regendo aulas de forma despreparada e totalmente ilegal! Até quando vamos admitir isso? A falta de respeito virou um marco nessa gestão! 
Tento entender se esse prefeito não tem competência, não tem inteligência ou se é realmente um misto das 2 coisas. 
Profissionais que fizeram planos para este ano letivo (incluindo a parte financeira, sim) são mandados embora, as escolas continuam mais desfalcadas do que já estavam e quem paga o preço altíssimo desse desrespeito são nossos alunos. 
E, para fechar com chave de ouro este Circo de Horrores, somos obrigados a ouvirmos de nossos Cordeirinhos Diretores que os profissionais estão indo embora porque a OPOSIÇÃO denunciou ao MP a contratação. Pelo amor de DEUS, ninguém vê que na verdade a falta de compromisso desse prefeito fez com que as chamadas desses profissionais fossem perdendo a validade por causa do período eleitoral? Ninguém avisou a este senhor que aqui em Vila Velha não se faz o que ele quer? Que existem seres pensantes fora das portas de vidro da Prefeitura que estão perplexos com a falta de entendimento e conhecimento jurídico dele??? Não vamos mais tolerar essas aberrações!!! Fora descaso!!!  (Profa. Cristina Ramos)."

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Carlos Nelson Coutinho (1943-2012)


Nascido em Itabuna, na Bahia, em 1943, morreu nesta manhã de 20 de setembro, no Rio de Janeiro, o filósofo e cientista político Carlos Nelson Coutinho. Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lecionava na Escola de Serviço Social, Carlos Nelson deixa um legado amplo na área da produção cultural e também na área política.
Militante do PCB por muitos anos, desde a juventude, Carlos Nelson escreveu mais de uma dezena de livros, a começar por Literatura e humanismo, lançado no final dos anos 1960 pela Editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira. Em Literatura e humanismo, já estão presentes algumas qualidades que o distinguiriam nos anos seguintes, como a clareza de pensamento, a escrita elegante e a percepção refinada de autores fundamentais, como atesta o ensaio sobre Graciliano Ramos. Também neste livro inaugural está presente a influência decisiva do filósofo húngaro Georg Lukács, cujas ideias sobre o realismo norteavam as pesquisas do então jovem crítico brasileiro.
Nos anos 1970, Carlos Nelson conheceu o exílio em Bolonha — terra em que se afirmara por décadas o seu amado Partido Comunista Italiano, outra das referências político-intelectuais imprescindíveis para entender o nosso autor — e, posteriormente, em Paris. Foi membro eminente do “grupo de Armênio Guedes”, que, dentro do PCB, buscava a renovação do comunismo brasileiro a partir da questão democrática, vista — a democracia — como a alternativa mais produtiva aos caminhos e descaminhos da modernização “prussiana” do capitalismo brasileiro, que havia conhecido um novo impulso a partir da ditadura implantada em 1964. Neste sentido, Carlos Nelson se notabilizou, já na volta do exílio, pelo ensaio “A democracia como valor universal”, fortemente inovador na cultura comunista, exatamente por ter como assumida fonte de inspiração o pensamento político amadurecido em torno do antigo PCI, muito especialmente Enrico Berlinguer e Pietro Ingrao.
A partir deste momento, incorpora-se vigorosamente à reflexão de Carlos Nelson a presença de Antonio Gramsci: pode-se dizer que, a partir de uma original interpretação de Lukács e Gramsci — isto é, dos temas da ontologia do ser social e da política tal como estabelecida nos países de estrutura “ocidental” —, tenha se estruturado a produção posterior de Carlos Nelson Coutinho, até o livro mais recente, De Rousseau a Gramsci. Ensaios de teoria política, publicado em 2011.
Nos últimos meses, mesmo abalado pela doença, Carlos Nelson dedicava-se a uma história da filosofia, testemunho da enorme erudição e inquietação intelectual  que o acompanhou por toda a vida. Nos anos 1980, com a crise do PCB e o afastamento de grande parte dos “eurocomunistas” brasileiros, Carlos Nelson passaria pelo PSB (expressão do seu interesse pelo socialismo democrático), pelo PT e, a partir de 2003, pelo PSOL. Estas opções políticas, naturalmente, deixaram marca na produção teórica do nosso autor, que está destinada a ser tema de estudos e reflexões por parte de todos aqueles que se preocupam com o destino do humanismo, da democracia e do socialismo no nosso tempo.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.

domingo, 16 de setembro de 2012

Os segredos de Valério (Veja)

"Lula era o chefe"

Seis semanas depois de iniciado o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o escândalo do mensalão, que Lula e o PT tentaram dissimular como sendo uma "farsa da oposição" ou "invenção da imprensa golpista", mostrou-se de uma realidade absoluta e incontestável. As primeiras condenações à prisão já foram lavradas pelos ministros do Tribunal e outras ainda virão até o veredicto final, o que deve ocorrer em meados de novembro. O Brasil e os brasileiros, portanto, já ganharam o ano com a demonstração de maturidade e independência da Justiça e com a certeza de que a nação conta com uma imprensa livre, corajosa e obcecada pela busca da verdade, cujo trabalho desencavou o escândalo e o manteve vivo com constantes revelações até que os culpados fossem confrontados com seu destino perante o tribunal.

VEJA se orgulha de ter desempenhado um papel fundamental em mais esse processo de depuração da vida política nacional. Foram os repórteres da revista que captaram os primeiros sinais da doença que tomava conta de Brasília ao publicarem o vídeo em que um diretor dos Correios embolsava uma propina em dinheiro vivo. A partir daí. VEJA foi puxando o fio da meada até constatar que. ao que tudo indicava, a podridão havia subido a rampa do Palácio do Planalto e se instalado nas imediações e até no próprio gabinete presidencial. Em sua edição de 13 de julho de 2005. VEJA colocou na capa os resultados de uma pesquisa nacional de opinião pública dando conta de que para 45% dos entrevistados o então presidente Lula nada sabia do mensalão. enquanto para 39% ele sabia mas não se envolvera diretamente na operação e para 16% Lula sabia e tivera participação direta nas malfeitorias. Depois, a revista revelou que em pelo menos cinco situações Lula fora alertado sobre o que se passava a sua volta. Em outra reportagem de capa. VEJA trouxe a primeira forte evidência de que os 16% ouvidos na pesquisa estavam certos: Lula sabia e se envolvera. Os repórteres da revista informavam que o pivô financeiro do escândalo, o publicitário mineiro Marcos Valério. estava a ponto de procurar a Justiça e contar tudo sobre o envolvimento de Lula em troca do alívio da pena pelo mecanismo da delação premiada. "Vocês vão se ferrar. Avisa ao barbudo que tenho bala contra ele", disse Valério a João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados e hoje réu já condenado no processo do mensalão pelo STF. VEJA relatou a bem-sucedida operação do PT para acalmar Valério, oferecendo-lhe proteção.

Uma reportagem exclusiva desta edição do editor Rodrigo Rangel, da sucursal de Brasília, feita com base em revelações de Marcos Valério a parentes, amigos e associados, reabre de forma incontornável a questão da participação do ex-presidente no mensalão. ""Lula era o chefe", vem repetindo Valério com mais frequência e amargura agora que já foi condenado pelo STF. podendo, no fim do julgamento, ver sua pena chegar a mais de 100 anos de reclusão. Valério não quis dar entrevista sobre as acusações diretas do envolvimento de Lula que ele vem fazendo. Mas não desmentiu nada.

Os segredos do Mensalão

O empresário Marcos Valério, apontado como o operador do esquema, diz que, em troca do seu silêncio, recebeu garantias do PT de uma punição branda. Condenado pelo STF por vários crimes, cujas penas podem chegar a 100 anos de prisão, ele revela que o ex-presidente Lula sabia de tudo e que o caixa para subornar políticos foi muito maior: 350 milhões de reais.

Rodrigo Rangel

Faltavam catorze minutos para as 7 da manhã da última quarta-feira quando o empresário Marcos Valério, o pivô financeiro do mensalão, parou seu carro em frente a uma escola, em Belo Horizonte. Alvo das mais pesadas condenações no julgamento que está em curso no Supremo Tribunal Federal (STF), ele tem cumprido religiosamente a tarefa de levar o filho todos os dias ao colégio. Desce do carro, acompanha o menino até o portão e se despede com um beijo no rosto. Chega mais cedo para evitar ser visto pelos outros pais e alunos e vai embora depressa, cabisbaixo. "O PT me transformou em bandido”, desabafa. Valério sabe que essa rotina em breve será interrompida. Ele é o único dos 37 réus do mensalão que não tem um átimo de dúvida sobre seu futuro. Na semana passada. o publicitário foi condenado por lavagem de dinheiro, crime que acarreta pena mínima de três anos de prisão. Computadas as punições pelos crimes de corrupção ativa e peculato, já decididas, mais evasão de divisas e formação de quadrilha, ainda por julgar, a sentença de Marcos Valério pode passar de 100 anos de reclusão. Mesmo com todas as atenuantes da lei penal brasileira, não é improvável que ele termine seus dias na cadeia. Valério tem culpa no cartório, mas fica evidente que ele está carregando sobre os ombros uma carga penal que, por justiça, deveria estar mais bem distribuída entre patentes bem mais altas na hierarquia do mensalão. É isso que mais martiriza a alma de Valério neste momento, uma dor que ele tenta amenizar lembrando, sempre que pode, que seu silêncio sobre os responsáveis maiores acima dele está lhe custando muito caro.

Apontado como o responsável pela engenharia financeira que possibilitou ao PT montar o maior esquema de corrupção da história, Valério enfrenta um dilema. Nos últimos dias, ele confidenciou a pessoas próximas detalhes do pacto que havia firmado com o partido. Para proteger os figurões, conta que assumiu a responsabilidade por crimes que não praticou sozinho e manteve em segredo histórias comprometedoras que testemunhou quando era o "predileto" do poder. Em troca do silêncio, recebeu garantias. Primeiro, de impunidade. Depois, quando o esquema teve suas entranhas expostas pela Procuradoria-Geral da República, de penas mais brandas. Valério guarda segredos tão estarrecedores sobre o mensalão que não consegue mais reter só para si — mesmo que agora, desiludido com a falsa promessa de ajuda dos poderosos que ele ajudou, tenha um crescente temor de que eles possam se vingar dele de forma ainda mais cruel. Os segredos de Valério, se revelados, põem o ex-presidente Lula no epicentro do escândalo do mensalão. Sim, no comando das operações. Sim. Lula, que, fiel a seu estilo, fez de tudo para não se contagiar com a podridão à sua volta, mesmo que isso significasse a morte moral e política de companheiros diletos. Valério teme, e fala a pessoas próximas, que se contar tudo o que sabe estará assinando a pior de todas as sentenças — a de sua morte: "Vão me matar. Tenho de agradecer por estar vivo até hoje".

Sua mulher, Renilda Santiago, já tentou o suicídio três vezes. Há duas semanas, ela telefonou a uma amiga para dizer que iria a um reduto do tráfico encravado na região central de Belo Horizonte comprar uma arma. Avisou que havia decidido dar um tiro na cabeça. Renilda está mergulhada em crise aguda de depressão. Os dois filhos do casal vivem dramas à pane. Meses atrás, o menino, de 11 anos, tentou fazer um teste de admissão em uma escola mais perto de casa, mas a diretora nem deixou o garoto começar a prova. A direção da escola não queriaí entre seus alunos o filho de Marcos Valério. A filha mais velha, de 21 anos, passou por constrangimentos cruéis. Em um debate na faculdade de psicologia, o assunto escolhido pelos colegas foi justamente o comportamento do pai dela. Humilhada, ela saiu da sala. Chega a ser assustador, mesmo que previsível, que as pessoas esqueçam a mais consagrada prática cristã, civilizada e jurídica — a de que os filhos não devem pagar pelos erros dos pais. Marcos Valério sofre de síndrome do pânico e praticamente não prega os olhos à noite. Sobre o PT e seus antigos parceiros ele vem dizendo: "Eu detesto esse pessoal. Esse povo acabou com a minha vida. me fez de um tamanho que eu não sou. O PT me fez de escudo, me usou como um boy de luxo. Mas eles se ferraram porque agora vai todo mundo para o ralo". O medo ainda constrange Marcos Valério a limitar suas revelações a pessoas próximas. Até quando?

MENSALÃO

“O caixa do PT foi de 350 milhões de reais”

A acusação do Ministério Público Federal sustenta que o mensalão foi abastecido do 55 milhões de reais tomados por empréstimo por Marcos Valério junto aos bancos Rural e BMG, que se domaram a 74 milhões, desviados da Visanet, fundo abastecido com dinheiro público e controlado pelo Banco do Brasil. Segundo Marcos Valério, esse é o valor é subestimado. Ele conta que o caixa real do mensalão era o triplo do descoberto pela polícia e denunciado pelo MP. Valério diz que pelas arcas do esquema passaram pelo menos 350 milhões de reais. “Da SMP&B vão achar só os 55 milhões, mas o caixa era muito maior. O caixa do PT foi de 350 milhões de reais, com dinheiro de outras empresas que nada tinham a ver com a SMP&B nem com a DNA” afirma o empresário. Esse caixa paralelo, conta ele, era abastecido com dinheiro oriundo de operações tão heterodoxas quanto os empréstimos fictícios, tomados por suas empresas para pagar políticos aliados do PT. Havia doações diretas diante da perspectiva de obter facilidades no governo. "Muitas empresas davam via empréstimos, outras não." O fiador dessas operações, garante Valério, era o próprio presidente da República.

Lula teria se empenhado pessoalmente na coleta de dinheiro para a engrenagem clandestina, cujos contribuintes tinham algum interesse no governo federal. Tudo corria por fora, sem registros formais, sem deixar nenhum rastro. Muitos empresários, relata Marcos Valério, se reuniam com o presidente, combinavam a contribuição e em seguida despejavam dinheiro no cofre secreto petista. O controle dessa contabilidade cabia ao então tesoureiro do partido. Delúbio Soares, que é réu no processo do mensalão e começa a ser julgado nos próximos dias pelos crimes de formação de quadrilha e corrupção ativa. O papel de Delúbio era, além de ajudar na administração da captação, definir o nome dos políticos que deveriam receber os pagamentos determinados pela cúpula do PT, com o aval do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, acusado no processo como o chefe da quadrilha do mensalão: "Dirceu era o braço direito do Lula, um braço que comandava”. Valério diz que, graças a sua proximidade com a cúpula petista no auge do esquema, em 2003 e 2004, teve acesso à contabilidade real. Ele conta que a entrada e a saída de recursos foram registradas minuciosamente em um livro guardado a sete chaves por Delúbio. Pelo seu relato, o restante do dinheiro desse fundão teve destino semelhante ao dos 55 milhões de reais obtidos por meio dos empréstimos fraudulentos tomados pela DNA e pela SMP&B. Foram usados para remunerar correligionários e aliados. Os valores calculados por Valério delineiam um caixa clandestino sem paralelo na política. Ele fala em valores dez vezes maiores que a arrecadação declarada da campanha de Lula nas eleições presidenciais de 2002.

O PRESIDENTE

“Lula era o chefe”

A ira de Marcos Valério desafia a defesa clássica do ex-presidente Lula de que não sabia do Mensalão e nada teve a ver com o esquema arquitetado em seu primeiro mandato. Com a segurança de quem transitava com desenvoltura pelos gabinetes oficiais, inclusive os palacianos, e era considerado um parceiro preferencial pela cúpula petista, Valério afirma que Lula “comandava tudo". Em sua própria defesa, diz que como operador dos pagamentos não passava de um “boy de luxo" de uma estrutura que tinha o então presidente no topo da cadeia de comando. "Lula era o chefe”, repete Valário às pessoas mais próximas. A afirmação se choca com todas as versões apresentadas por Lula desde que o esquema foi descoberto, em 2005. Primeiro, escudou-se no argumento de que tudo não passou do uso de dinheiro "não contabilizado” que havia sobrado das campanhas políticas, prática suprapartidária e recorrente na política brasileira — não por acaso tem sido essa a estratégia de defesa dos mensaleiros no STF. Num segundo momento, Lula se disse traído e pediu desculpas à nação em rede de televisão.

A rota de fuga de Lula evoluiu mais tarde para a negação completa, com a tese nefelibata de que o mensalão nunca existiu, tendo sido apenas uma armação das elites para abreviar seu mandato. A narrativa de Valério coloca Lula não apenas como sabedor do que se passava, mas no comando da operação. Valério não esconde que se encontrou com Lula diversas vezes no Palácio do Planalto. Ele faz outra revelação: “Do Zé ao Lula era só descer a escada. Isso se faz sem marcar. Ele dizia vamos lá embaixo, vamos”. O Zé é o ex-ministro José Dirceu, cujo gabinete ficava no 4o andar do Palácio do Planalto, um andar acima do gabinete presidencial. A frase famosa e enigmática de José Dirceu no auge do escândalo — "Tudo que eu faço é do conhecimento de Lula” — ganha contornos materiais depois das revelações de Valério sobre os encontros em palácio. Marcos Valério reafirma que Dirceu não pode nem deve ser absolvido pelo Supremo Tribunal, mas faz uma sombria ressalva. “Não podem condenar apenas os mequetrefes. Só não sobrou para o Lula porque eu, o Delúbio e o Zé não falamos”, disse na semana passada, em Belo Horizonte. Indagado, o ex-presidente não respondeu.

PACTO

“Meu contato era o Okamotto”

Há menos de dois meses, VEJA revelou a existência de encontros secretos entre Marcos Valério e Paulo Okamotto, petista estrelado que desempenha a tarefa de assessor financeiro, ou tesoureiro, de Lula. Procurado para explicar por que se reunia com o principal operador do mensalão. Okamotto disse que os encontros serviam apenas para discutir política. Não, não era bem assim. Marcos Valério tinha um pacto com o PT, e Paulo Okamotto era o fiador desse pacto. “Eu não falo com todo mundo no PT. O meu contato com o era o Paulo Okamotto”, disse Valério em uma conversa reservada dias atrás. É o próprio Valério quem explica a missão de Okamotto: "O papel dele era tentar me acalmar“.

O empresário conta que conheceu o Japonês, como o petista é chamado, no ápice do escândalo. Valério diz que, na véspera de seu primeiro depoimento à CPI que investigava o mensalão, Okamotto o procurou. “A conversa foi na casa de uma funcionária minha. Era para dizer o que eu não devia falar na CPI”, relembra. O pedido era óbvio.

Okamotto queria evitar que Valério implicasse Lula no escândalo. Deu certo durante muito tempo. Em troca do silêncio de Valério, o PT, por intermédio de Okamotto, prometia dinheiro e proteção. A relação se tomaria duradoura, mas nunca foi pacífica. Em momentos de dificuldade, Okamotto era sempre procurado. Quando Valério foi preso pela primeira vez, sua mulher viajou a São Paulo com a filha para falar com Okamotto. Renilda Santiago queria que o assessor de Lula desse um jeito de tirar seu marido da cadeia. Disse que ele estava preso injustamente e que o PT precisava resolver a situação. A reação de Okamotto causa revolta em Valério até hoje. "Ele deu um safanão na minha esposa. Ela foi correndo para o banheiro, chorando." O empresário jura que nunca recebeu nada do PT, Já a promessa de proteção, segundo Valério, girava em tomo de um esforço que o partido faria para retardar o julgamento do mensalão no Supremo e, em último caso, tentar amenizar a sua pena. "Prometeram não exatamente absolver, mas diziam: ‘Vamos segurar, vamos isso. vamos aquilo’... Amenizar", conta. Por muito tempo, Marcos Valério acreditou que daria certo. Procurado, Okamotto não se pronunciou.

PODER

“0 Delúbio dormia no Alvorada“

Dos tempos em que gozava das intimidades do poder em Brasília, Marcos Valério diz guardar muitas lembranças. Algumas revelam a desenvoltura com que personagens centrais do mensalão transitavam no coração do governo Lula antes da eclosão do maior escândalo de corrupção da história política do país. Valério lembra das vezes em que Delúbio Soares, seu interlocutor frequente até a descoberta do esquema, participava de animados encontros à noite no Palácio da Alvorada, que não raro servia de pernoite para o ex-tesoureiro petista. "O Delúbio dormia no Alvorada. Ele e a mulher dele iam jogar baralho com Lula à noite. Alguma vez isso ficou registrado lá dentro? Quando você quer encontrar (alguém), você encontra, e sem registro." O operador do mensalão deixa transparecer que ele próprio foi a uma dessas reuniões noturnas no Alvorada. Sobre sua aproximação com o PT. Valério conta que, diferentemente do que os petistas dizem há sete anos, ele conheceu Delúbio durante a campanha de 2002. Quem apresentou a ele o petista foi Cristiano Paz. seu ex-sócio, que intermediava uma doação à campanha de Lula. A primeira conversa foi em Belo Horizonte, dentro de um carro. a caminho do Aeroporto da Pampulha. Nessa ocasião, conta. Delúbio lhe pediu ajuda. "Ele precisava de uma empresa para servir de espelho para pegar um dinheiro”. A parceria deu certo e desaguou no mensalão. Hoje, os dois estão no banco dos réus. Valério se sente injustiçado. Especialmente na pane da acusação que diz respeito ao desvio de recursos públicos do Banco do Brasil. Ele jura que esse dinheiro não caiu no caixa da corrupção. "No processo tem todas as notas fiscais que comprovam que esse dinheiro foi gasto com publicidade. Não estou falando que não mereço um tapa na orelha. Não é isso. Concordo em ser condenado por aquilo que eu fiz.”

EMPRÉSTIMO

"O banco ia emprestar dinheiro para uma agência quebrada?"

Os ministros do STF já consideraram fraudulentos os empréstimos concedidos pelo Banco Rural às agências de publicidade que abasteceram o mensalão. Para Valério, a decisão do Rural de liberar o dinheiro — com garantias fajutas e José Genoino e Delúbio Soares como fiadores — não foi um favor a ele, mas ao governo Lula. "Você acha que chegou lá o Marcos Valério com duas agências quebradas e pediu: "Me empresta aí 30 milhões de reais pra eu dar pro PT"? O que um dono de banco ia responder?" Valério se lembra sempre de José Augusto Dumont, então presidente do Rural. "O Zé Augusto, que não era bobo. falou assim: "Pra você eu não empresto". Eu respondi: "Vai lá e conversa com o Delúbio"."" A partir daí a solução foi encaminhada. Os empréstimos, diz Valério, não existiriam sem o aval de Lula e Dirceu. "Se você é um banqueiro, você nega um pedido do presidente da República"?" Foram essas mesmas credenciais palacianas, segundo ele, que lhe abriram as portas no Banco Central para interceder pela suspensão da liquidação extrajudicial do Banco Mercantil de Pernambuco, que interessava ao Rural. Valério foi destacado para cuidar do assunto em Brasília. Uma tarefa executada com todas as facilidades e privilégios. "Valério chegou lá no Banco Central e foi atendido. Você acha que o Banco Central receberia um imbecil qualquer, dono de uma agência de publicidade quebrada?"

"Nojento e vexatório"

Ex-superintendente do Banco Rural em Brasília, Lucas da Silva Roque foi um dos principais colaboradores nas investigações da Polícia Federal destinadas a desbaratar a quadrilha do mensalão. Foi ele quem revelou onde estavam os recibos que mostraram quais políticos receberam dinheiro para votar com o governo Lula no Congresso. Nesta entrevista, Roque conta que pagou um preço alto por agir de forma correta e relata um plano ambicioso urdido pela cúpula da instituição financeira em parceria com José Dirceu. Eles queriam montar um banco popular, do qual Rural e BMG seriam sócios, para conceder empréstimos consignados aos aposentados. Um negócio companheiro e bilionário.

Por que o senhor decidiu ajudar a polícia?

Não tinha nada a temer. Não entrei no jogo deles, não sou bandido. Fui mandado para a agência do Rural em Brasília para moralizá-la, porque ali estava uma bagunça. 0 que estava acontecendo no banco era acintoso, nojento e vexatório. 0 delegado disse que queria todos os documentos. Apontei onde estavam as caixas. Àquela altura, já estava tudo encaminhado para fazer sumir as provas, mandando-as de Brasília para Minas Gerais. Mostrei onde estavam os documentos e falei para o delegado que procurasse papéis também numa construtora, que servia de almoxarifado do banco.

Como a diretoria reagiu à sua colaboração com a PF?

Fui atacado de tudo quanto é jeito. Me colocaram em um porão que não era uma agência bancária, depois em uma loja de shopping que foi fechada por ser irregular. Pior, mandaram me avisar que eu estava proibido de aparecer na diretoria do banco. Isso foi em outubro de 2005. Virei a Geni. Fui demitido em agosto de 2010. Eu, minha esposa e meus filhos fomos achincalhados na rua como mensaleiros. Tive sérios problemas de saúde, perdi meu casamento.

O senhor tinha relação de proximidade com Marcos Valério. Ele disse a algumas pessoas que teve um encontro com Lula na Granja do Torto. Vários encontros. É verdade?

Sim, ele deixava para viajar para Belo Horizonte no sábado à noite para passar lá.

Levado por quem?

Delúbio Soares, Silvinho Pereira e José Dirceu.

Quais eram os planos da cúpula do Banco Rural e dos petistas?

Eles tinham um projeto de montar um banco popular com a CUT. Juntariam o Banco Rural, o BMG, a CUT. Era um projeto com capital de 1 bilhão de reais.

Quem capitaneava esse projeto?

Eram os bandidos do mensalão. Como o PT não tinha cultura bancária, o Rural e o BMG seriam sócios. Um banco privado com a participação da CUT, que direcionaria todos os beneficiários do INSS para tomar dinheiro em empréstimos consignados nessa instituição popular. Quando o mensalão estourou, o projeto foi abortado.

FONTE: REVISTA VEJA, EDIÇÃO 2287 – ANO 45 Nº 38, 19 DE SETEMBRO DE 2012.

Critérios para a definição do voto

Momento de escolha e definição de voto.
Pegando carona no artigo do professor Leonardo Avritzer, UFMG, "não é muito bom fazer, ao mesmo tempo, análise política e prescrição". Mas, é importante registrar  e sublinhar essas tres observações: 
a) desconfiar das campanhas que parecem ser muito caras. Em geral, estas campanhas estão sendo financiadas por fortes interesses privados;
b) fugir de candidatos que tenham condenações legais anteriores ou muitos processos na Justiça;
c) buscar candidatos que defendam interesses e valores específicos de forma corajosa, em vez de repetir generalidades.
Concluindo: "quem votar assim, estará mais próximo de contribuir para a formação do interesse público."
(Fonte: Aliás/O Estado de São Paulo).

sábado, 15 de setembro de 2012

Padres, bispos e pastores ainda influenciam no voto de fiéis (Reginaldo Prandi/entrevista)

LUCAS NEVES


A capacidade de padres, bispos e pastores de influírem no voto de seus fiéis caiu sensivelmente nos últimos anos, mas não a ponto de os candidatos a cargos majoritários poderem dispensar aparições ao lado de líderes religiosos e declarações públicas de apoio destes --aproximação na qual, dias atrás, o petista Fernando Haddad (PT) afirmou ver "risco de fundamentalismo".
O diagnóstico é do professor sênior do departamento de sociologia da USP Reginaldo Prandi, 66, que estuda religiões. Segundo ele, com a modernização dos cultos, o controle sobre as escolhas dos devotos se afrouxou. Para ganhar uma eleição, entretanto, prossegue o professor, ainda é preciso "responder ao jogo de pressões e fazer acordos".
"[As igrejas] Vão querer saber que compromissos o candidato assumirá com a religião", diz Prandi, referindo-se à defesa do afastamento entre política e fé feita em público por Haddad.
Prandi vê o líder das pesquisas em São Paulo, Celso Russomanno (PRB), "com os pés em duas, três canoas", por ter de acenar tanto para o eleitor da entidade que sustenta seu partido, a Igreja Universal, quanto para o de denominações rompidas com esta e para o de fora do segmento evangélico.
Leia abaixo trechos da entrevista dele à Folha.
Folha - Que poder líderes religiosos cortejados por candidatos têm de efetivamente pautar o voto dos fiéis?
Reginaldo Prandi - Os deputados federais evangélicos são 73, o que significa 15% do total. Na população, os evangélicos somam 20%, 22%. Ou seja, estão subrepresentados no Congresso. Se você seguisse rigorosamente a ideia de que o eleitor sempre vota com a igreja dele, seriam mais.
Mesmo as religiões voltadas a temáticas mais tradicionais se modernizam, liberalizam-se para atender as demandas da sociedade. [O controle] Vai ficando mais frouxo. É possível que, dentro de uma igreja, haja segmentos que sigam o que as lideranças dizem. Mas não todos mais. E cada vez menos.
Em meio a declarações de apoio de religiosos a oponentes de Haddad, o petista disse que pedir votos em igrejas não era "compatível". Pode-se prescindir do endosso de padres e pastores?
Ele não pode dizer o que vai fazer ou não [a esta altura]. Não sabe que perguntas o eleitor vai fazer. Como candidato, para ganhar, tem de responder a esse jogo de pressões e fazer acordos. Vão querer saber que compromissos ele assumirá com a religião.
Se temas como fé e aborto ficassem de fora [do debate eleitoral], as religiões não saberiam o que dizer. Vão fazer uma proposta de nova sociedade, de novo homem? Não têm essa capacidade. Vão trabalhar naquilo que sabem e que a sociedade lhes permitiu, que é a intimidade, a moralidade.
Justamente um "tema da moralidade", o aborto, foi tido como decisivo para que houvesse um segundo turno em 2010. Por que assuntos dessa rubrica influem tanto em quadros eleitorais?
Há uma parte da população sensível a isso. Para muita gente, pensar nesse tema como objeto de decisão pessoal é complicado. Implica em ter mais segurança a respeito de si mesmo, do outro, dos valores.
E aí as religiões se apropriam dessa dificuldade e aprisionam mentes em caixas fechadas, de modalidade estreita, reacionária, mas, ao mesmo tempo, fácil: não pode, e ponto final.
Russomanno tenta se desvincular da Igreja Universal do Reino de Deus, que tem forte ascendência sobre o partido dele, o PRB. Mas já prometeu regularizar igrejas e disse que gostaria que houvesse uma por quarteirão. Ao oscilar entre distanciamento e aproximação da religião, não confunde o eleitor?
Isso vem da própria condição dele, de vir de um partido controlado pela Universal. No campo evangélico, há muitas igrejas que se opõem a ela, mesmo entre as que nasceram dela. Além disso, ele sabe que precisa do voto católico. E por isso diz que ªgostaria que houvesse uma igreja por quarteirãoº, sem especificar qual. Mas também busca o não religioso. Enfim, está no centro de uma teia de contradições, com os pés em duas, três canoas.
Gabriel Chalita (PMDB) está em encruzilhada parecida?
Para os católicos, ele representa um candidato carismático, associado a outros líderes carismáticos [como o padre Fábio Melo, com quem lançou livro]. É fruto de um processo de negação do interesse da Igreja Católica pelos grandes problemas ligados a justiça e distribuição de renda. Mas também procura mostrar a face do pedagogo, de secretário da Educação [de Geraldo Alckmin]. Sabe que, para ampliar seu eleitorado, tem de expandir sua fonte institucional de origem.
O prefeito Gilberto Kassab (PSD) regularizou templos evangélicos e revisou planejamentos viários para viabilizar novas edificações ligadas a grupos religiosos. Até que ponto essas medidas podem alavancar as intenções de voto em José Serra (PSDB)?
Isso é o que as igrejas querem. Esperam isso de um governante: que aumente a sua liberdade, que dê a elas prerrogativas e direitos que a Igreja Católica sempre teve. Do ponto de vista do Kassab, não chega a comprometer [sua gestão], porque é de se esperar que o Estado não interfira nas religiões.
Mas o fato de essas ações se concentrarem num período pré-eleitoral não dá a elas um caráter de moeda de troca?
Sim. Mas isso não acontece só em relação às igrejas. Por exemplo, as pessoas depredam muito as placas de sinalização pela cidade. Como o trabalho é caro, só alguns meses antes da eleição elas são trocadas. O momento ideal é aquele em que se deseja que as pessoas sintam que suas demandas foram atendidas.
Fonte: Folha de São Paulo

Igrejas não têm votos para garantir a vitória, mas ameaçam os candidatos (Reginaldo Prandi)

Eleição e religião não se dão bem em ambiente democrático. No passado, a religião interferia em todos os aspectos da vida em sociedade. Com a modernidade, as diferentes esferas da cultura ganharam autonomia, e a religião perdeu influência e poder. A religião ficou pequena, restrita a interferir apenas na vida íntima das pessoas, agarrou-se a temas da moralidade individual. Não é pouco, mas ela quer mais: voltar a ter maior influência. E faz o que sabe: usa o moralismo para intervir na política.
Os evangélicos são o ramo religioso mais envolvido na política brasileira. Elegem representantes, criam partidos e não hesitam em usar as eleições para pressionar, ameaçar e chantagear políticos, partidos e governos temerosos de perder aliados e votos.
Já mostraram ter força: têm 15% dos deputados federais. E se apropriam dos votos dos fiéis para uso das igrejas. Isso não ocorre em denominações modernas em que os fiéis têm autonomia de escolha. Nas mais retrógradas, porém, os fiéis são mantidos como cidadãos menores, e seus líderes escolhem por eles.
Em eleições majoritárias, essas igrejas não têm votos suficientes para eleger candidatos próprios. No fazer das alianças, se esforçam em vender a imagem de que são capazes de decidir uma eleição.
Candidatos sem vínculo com a religião aceitam o jogo, beijam a mão do bispo, saem em peregrinação por templos que desconhecem, renegam projetos que possam ofender os aliados religiosos da hora.
Nunca houve, contudo, comprovação de que um candidato tenha ganhado ou perdido uma eleição majoritária por apoio ou veto de igrejas.
Nesta campanha não faltam candidatos batendo à porta de igrejas em busca de bênçãos que não combinam com suas posições nem com valores republicanos.
Ninguém quer correr riscos. Sobretudo quando o campeão de intenção de voto do momento, Celso Russomanno, é de um partido controlado por uma igreja neopentecostal.
Mas os votos da igreja que lhe dá sustentação são insuficientes. Ele precisa de votos dos não evangélicos. A encenação é dupla: ser da igreja para os de dentro, para não perder os votos da casa, e não ser da igreja para os de fora, para ter o voto dos demais.
REGINALDO PRANDI é professor da USP.(Folha de São Paulo)