sábado, 15 de outubro de 2011

Sinatra é tema de simpático memorial afetivo

Viúva revela intimidades de que nem mesmo Gay Talese, autor de famoso ensaio sobre o cantor, poderia suspeitar

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

O que Gay Talese não conseguiu -falar com Frank Sinatra-, e por isso teve de fazer o que todo repórter faz desde Gutenberg -conversar com as pessoas ao redor do personagem-, Barbara Blakeley fez durante 22 anos, todos os dias. Não apenas falar com Sinatra, mas jantar, dormir, acordar e tomar o café da manhã com o homem, viajar junto (inclusive para o Rio), assistir a todos os seus shows e, muitas vezes, até ouvi-lo sussurrar ao seu ouvido "I get a kick out of you..." ["Tenho tesão por você..."] -o que Sinatra jamais faria com Talese.
É verdade que, para isso, Barbara Blakeley, depois de dois casamentos que não valeram, teve de se tornar Barbara Sinatra, o que aconteceu em 1976 e durou até a morte do cantor, em 1998. O resultado dessa convivência está no livro "Lady Blue Eyes - My Life with Frank", sendo o título uma referência a um dos apelidos de Frank, "Old Blue Eyes" (velho olhos azuis). Não é um marco da literatura nem do jornalismo novo ou velho. É uma memória -e, como todas as memórias, só recorda o que lhe convém-, mas contém revelações de que Talese, com toda a sua prosopopeia engomada, nunca poderia suspeitar. Exemplos?
O pai de Sinatra, Marty, siciliano, não falava inglês -Sinatra servia-lhe de intérprete, e os dois se adoravam. Em compensação, Sinatra tinha medo da mãe -na presença de Dolly, que morreu num acidente de avião quando ele tinha 61, voltava a ser o menino de Hoboken que ela espancava dia sim, dia não.
Sinatra gostava de cozinhar e, segundo Barbara, fazia isso muito bem -mas só macarrão, que comia todos os dias. Gostava de trocar receitas de temperos e de cozinhar para as visitas às 4h da manhã. Quando ia a restaurantes de amigos, metia-se pela cozinha e dava palpite no conteúdo das panelas. Estranho, sendo ele italiano, é que detestasse alho. Gostava também de pintar, embora esse fosse um hobby intermitente -não era como Tony Bennett, que fez da pintura sua segunda forma de expressão.
Com todo seu poder, Sinatra não tinha liberdade de movimentos. Ia muito a restaurantes, mas só podia entrar ou sair deles pela porta dos fundos, passando pela cozinha. Quando era hora de ir embora, um ou mais carros o esperavam na saída traseira, já com o motor ligado. Garçons e maîtres levavam gordas gorjetas para não avisar a repórteres ou paparazzi que ele estava no recinto.
Segundo Barbara, nunca houve homem mais gentil. Na sua presença, nenhuma mulher acendeu um cigarro, abriu a porta de um carro ou vestiu um casaco sem ajuda.
Mas era também um homem que passava uma "sensação de perigo" -sujeito a súbitas explosões de violência-, o que, para ela, era um dos componentes de seu inacreditável charme.
Sinatra era grande leitor, diz Barbara: literatura, história dos EUA, política, artes plásticas e biografias. Vivia recomendando livros ou presenteando amigos com eles.
Seu interesse em muitas disciplinas tornava-o um craque em palavras cruzadas -que fazia todo dia, sempre as mais difíceis, e diretamente a tinta.
Em sua fortaleza no deserto, em Palm Springs, Sinatra tinha uma coleção de trenzinhos de brinquedo que tomava um quarto inteiro -quilômetros de trilhos atravessando túneis e estações, do chão ao teto, e mais de 200 composições de máquinas e vagões de todos os estilos, origens e épocas, que ele manobrava com controle remoto. Na porta do aposento, uma placa dizia: "Aquele que morre com mais brinquedos ganha".
Sinatra nunca deixou escapar, mas Barbara achava que ele tinha a ambição de ser embaixador dos EUA na Itália. De Franklin Roosevelt a George W. Bush, foi amigo de todos os presidentes americanos, mas nenhum cogitou seu nome para o cargo. Talvez por conta das pessoas estranhas ("homens de cara feia e ternos mal cortados", escreveu Barbara) que às vezes entravam em sua vida e pareciam justificar as acusações de ligações com a máfia.
Fumou a vida inteira (Camel sem filtro) e, dos 30 anos até pouco antes de sua morte, aos 83, pode ter tomado uma garrafa de bourbon Jack Daniel's por dia. Mas não há registro de problemas vocais crônicos em sua história, nem de certos efeitos típicos do alcoolismo. Mesmo seus episódios de violência independiam da quantidade de álcool no tanque. E seis horas de sono bastavam para refazê-lo e deixá-lo pronto para mais um dia.
Sinatra perdeu cabelo muito cedo, e suas perucas eram fabricadas por Joe Paris, peruqueiro de Nova York.
Mas nunca as usava em casa, nem mesmo diante de visitas, e não se importava de que amigos o fotografassem sem elas.
Não se permitia ser anunciado ao entrar no palco. "Se até hoje não sabem quem eu sou, não estariam aqui", dizia. O show para 175 mil pessoas no Maracanã, em janeiro de 1980, foi, segundo Barbara, sua apresentação mais inesquecível -e olhe que ele cantou diante da Acrópole (Atenas), do Coliseu (Roma) e da Grande Pirâmide de Gizé (Egito), além de todos os night clubs importantes de EUA, Europa e Japão.
Senhor de todo o cancioneiro americano -o qual, em grande parte, foi estabelecido por ele-, Sinatra só cantava "My Way" e "Strangers in the Night" porque o público exigia (achava "muito óbvias" as duas canções). Em suas últimas apresentações, já beirando os 80 (e embora com todo o equipamento vocal em dia), ele se despedia da plateia dizendo: "Obrigado por me deixarem cantar para vocês".
O derradeiro show foi no dia 25 de fevereiro de 1995, no hotel Marriott de Palm Springs, para um concerto beneficente. Morreu três anos depois, em 14 de maio de 1998.
"Lady Blue Eyes" é apenas uma simpática memória afetiva. Barbara consegue escrever quase 400 páginas sem citar as duas filhas de Sinatra, Nancy e Tina, que ele adorava e com quem ela nunca se deu -sinal de que nem tudo foram dias de vinho e rosas entre ela e Frank. Ela impediu os podres de aflorar. Mas isso é tarefa para biógrafos, não para viúvas.

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