Por Kelvin Falcão Klein
O novo romance de Umberto Eco, “O cemitério de Praga”, tem todos os elementos que nos acostumamos a ver em um livro de Dan >kern 0pt
Por conta da trama policialesca, do clima de mistério e da alta vendagem que alcançou desde o lançamento, “O cemitério de Praga” tem sido comparado a outro grande sucesso de Eco, “O nome da rosa”. Ao contrário deste último, cuja história se passa em 1327, no isolamento de um mosteiro, “O cemitério de Praga” é mais recente: ocupa-se principalmente dos últimos 50 anos do século XIX, lidando principalmente com a efervescência social e cultural de Paris (que Walter Benjamin mais tarde definiria como “a capital do século XIX”). A obra conta a vida de Simone Simonini, um exímio falsário que, a serviço do poder da vez, produz documentos inverossímeis. Um deles acabaria dentro do panfleto antissemita “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, “explicando” os passos de um hipotético complô de rabinos para conquistar o mundo.
Ao fim da leitura, é impossível não se impressionar com a quantidade de referências movimentadas por Eco para a realização do romance. O autor inclusive acrescenta uma nota final, afirmando que a única personagem ficcional é o protagonista, Simonini — todos os outros são reais, e fizeram e falaram aquilo que fazem e falam em “O cemitério de Praga”.
O livro está construído como um best-seller: uma história repleta de assassinatos e reviravoltas, temperada com uma série de eventos históricos vistos dos bastidores, com direito a revelações indiscretas acerca dos hábitos de $igualmente históricas (Garibaldi, Napoleão, Victor Hugo).
Em algumas passagens, há um didatismo um pouco enfadonho, que torna as descrições longas demais, como em um verbete enciclopédico ou um livro de divulgação científica. Há, em “O cemitério de Praga”, uma compulsão em descrever todas as ligações possíveis, deixando os nexos entre eventos e pessoas perfeitamente visíveis, como se o autor não estivesse disposto a deixar tantos anos de pesquisa à mercê de um leitor despreparado (e diante da erudição de um medievalista com décadas de experiência e leituras, quem não está despreparado?).
A sucessão de volteios da narrativa deixa o leitor um pouco atordoado: os maçons se misturam aos satanistas, que por sua vez são confrontados com os anarquistas, os antissemitas, os mesmeristas e os jesuítas, tudo isso costurado pela perspectiva de um diário bastante lacunar de um homem — Simonini, $por delírios esquizoides, nos quais se imagina ser outro homem, o abade Dalla Piccola — que, eventualmente, também registra sua visão dos fatos em outro diário.
Contudo, talvez seja possível observar, no meio desse acúmulo de informações, uma reflexão acerca dos caminhos e possibilidades da História, ou ainda, sobre os limites da historiografia. Há uma série de menções, pela boca das personagens, ao caráter postiço do poder e da governabilidade: uns dizem que “não se neutralizam os espiões matando-os, mas passando-lhes notícias falsas”; outros dizem que é “melhor não possuir nenhum segredo, mas aparentar possuí-los”.
Ou seja, em “O cemitério de Praga” vemos uma preocupação constante em marcar o caráter fabricado e artificial dos fatos históricos — fre$tomados como mentiras muitas vezes repetidas. Simonini reconhecido por sua habilidade na falsificação de documentos, precisa mostrar serviço aos seus empregadores do governo. Chega à conclusão que, se denunciasse um complô, sua reputação aumentaria bastante: “O que torna fidedigno um informante da polícia?”, ele se pergunta. “A descoberta de um complô. Portanto, ele deveria organizar um complô para poder denunciá-lo”. É o que vemos, a partir de caminhos diversos, em livros como “Alvo noturno”, de Ricardo Piglia (autor de um texto sobre “teoria do complô”, publicado na edição número 2 da revista “serrote”), ou em várias obras dos norte-americanos Don DeLillo e Thomas Pynchon.
Talvez por trás da fachada de thriller histórico, “O cemitério de Pra$” guarde uma lição das repetições da História e de quão ingênuos são nossos tempos, que seguem adiante sem aprender com os erros do passado (ou sequer conhecê-los) . Essas recorrências temporais já ocupam Eco pelo menos desde “O nome da rosa”, de 1980: no suplemento que escreveu à obra (“Pós-escrito a ‘O nome da rosa’”, de 1984), Eco afirma que toda vez que alguém reclamou sobre a excessiva “modernidade” de alguma passagem, o trecho em questão era sempre uma citação direta a algum texto do século XIV.
“O cemitério de Praga” é um livro de entretenimento, que pode ser usufruído sem maior problematização acerca da “repetição da História como farsa”. Muitos críticos italianos atribuíram sua alta vendagem no país não apenas ao seu apelo folhetinesco, mas também à revisão e retomada que Eco faz da história italiana do século XIX (especialmente as campanhas de Garibaldi na Sicília e os confrontos de suas tropas com os austríacos). Mas há mais: o principal apelo de “O cemitério de Praga” é o de oferecer uma visão detalhada da gênese de um livro controverso e amplamente difundido ao longo do século XX, “Os Protocolos dos Sábios de Sião”. Fruto de uma série de colagens, “Os Protocolos” deram sustentação “documental” para o reforço do antissemitismo europeu no início do século XX (era livro de cabeceira de Hitler, sendo inclusive citado em “Minha luta”).
Um ponto a ser ressaltado na realização do romance é sua aparente distância do contemporâneo, quando, na realidade, Eco explora temas do presente (paranoia, conflitos religiosos, estados de exceção, intolerância) em um cenário já codificado historicamente, para melhor mostrar os disparates e os absurdos, só visíveis depois da ação do tempo. “A principal característica das pessoas”, afirma um personagem anarquista de nome Léo Taxil, “é que elas se dispõem a acreditar em tudo” — todo poder instituído, continua a narrativa, se baseia na manipulação da credulidade; e são algumas constatações desconfortáveis como essa que perduram depois de toda pirotecnia de “O cemitério de Praga”.
KELVIN FALCÃO KLEIN é doutorando em Teoria Literária na UFSC
O cemitério de Praga, de Umberto Eco. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Editora Record, 480 páginas. R$ 49,90.
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