Existe um ditado antigo que diz: “Quem sai aos seus não degenera”. Como todo dito popular tem aí uma dose de sabedoria vinda da observação e, claro, um outro tanto de bobagem, porque sabemos que não existe nada tão absoluto. No entanto, falando de música brasileira podemos identificar acentos ou sotaques dos mais antigos nos artistas contemporâneos e esse é um exercício que adoro fazer.
Quando me encantei por Cazuza, perdidamente, percebi em suas canções qualquer coisa de Dolores Duran. Isso me intrigava e não perdi a chance de perguntar quando pude. Bola dentro. Fiquei feliz em saber que ele conhecia muito a obra dela e ainda as derramadas interpretações de Dalva de Oliveira e Maysa. Um compositor de baladas e de rock and roll. Maravilhoso, não é?
A mesma alegria eu sinto quando ouço de Patricia Polayne, compositora de Sergipe, que usou a célula rítmica do coco de Aracaju pra fazer seu som com produtor pernambucano, clima brit pop do Cocteau Twins e letras que lembram cordel falando de circo e de amor.
Naná Vasconcelos, que já correu o mundo mostrando sua música e tocou com os maiores feras do jazz, nunca se esquece dos maracatus de Dona Santa que ele frequentava assombrado ainda bem menino nos ombros da mãe. As alfaias e as caixas de Pernambuco também estão na percussão de Eder o Rocha, do Mestre Ambrósio, e no tambor que Karina Buhr usa para compor, mesmo que seja canção de amor – pois é do ritmo que vem o som e o ritmo veio das ruas do Recife.
São muitos os sotaques, como se diz no Boi do Maranhão. Rita Ribeiro e Zeca Baleiro dançavam nessas festas. Zeca tem uma canção que eu gosto especialmente chamada Boi de Haxixe: “Quando piso em flores / Flores de todas as cores / Vermelho sangue, verdeoliva, azul colonial / Me dá vontade de voar sobre o planeta / Sem ter medo da careta / Na cara do temporal...”: música que homenageia as festas juninas de São Luiz – que tem outra cor e outro som. Nas rodas tem pandeirão que esquenta o couro na fogueira, tem sotaque de orquestra, de matraca e de zabumba.
Rita também honra a tradição de sua terra cantando os sambas de seu Antonio Vieira, compositor popular, elegante e educado senhor que tive o prazer de conhecer. São dele Banho Cheiroso, Tem Quem Queira e Cocada, músicas que fazem parte do repertório mais feliz dessa maranhense de voz privilegiada.
O País agora está descobrindo a música do Pará. A mistura do carimbó com a guitarrada e os computadores. Vem com força amazônica a geração de Gaby Amarantos e Felipe Cordeiro, que fazem música com forte acento regional, contaminam novas produções pelo País afora e rendem suas homenagens aos mestres Pio Lobato e Dona Onete.
Do Ceará veio a guitarra personalíssima de Fernando Catatau – que tem sido requisitado por nove entre dez novas vozes femininas, produziu Arnaldo Antunes e acaba de se reunir com Fagner em show histórico no Sesc Pompeia em São Paulo. Linda ideia. Das velas do Mucuripe à solidão paulistana de um cidadão instigado. Tradição e modernidade.
Mas não é só de Nordeste que vive a nossa mistura. Filipe Catto é um jovem cantor gaúcho que reverencia Lupicínio Rodrigues na dramaticidade e na ironia de seu repertório. Ele faz música de cabaret pop e transforma o rock dos conterrâneos do Cachorro Grande em canção. Seu primeiro disco, Fôlego, acaba de sair.
Karina Zeviani em breve lançará seu primeiro CD em terra Brasilis. Amoça saiu de Jaboticabal, correu o mundo como modelo, cantou com o Thievery Corporation e no descoladíssimo Nouvelle Vague.
Quando compõe é a menina que corria atrás da banda. Vem aí um trabalho lindo, sereno, simples como as coisas do interior. E quem fala de seu quintal fala para o mundo.
Tudo isso é parte da diversidade cultural brasileira que se reflete na música popular. Quando falo da tradição não é para ser careta, mas é para reconhecer, para ter na mão o fio da meada que dá nesse amálgama de que fala Jorge Mautner. Nenhum povo faz isso tão bem e o mais bonito da época que estamos vivendo é que temos acesso a essa produção tão incrível quanto diversa.
Lembro quando Fernanda Porto gravou Baque Virado, parceria com a pernambucana Alba Carvalho: “Ouço batuques e maracatus na TV, que país é esse que a gente nunca vê?” Foi-se o tempo. Tá tudo aí pra quem quiser ver. E ouvir.
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