sábado, 29 de outubro de 2011

O suicídio de Steve Jobs (Álvaro Pereira Júnior)

Uma autoconfiança desmedida, de quem se julga mais poderoso que a própria natureza

Foi o que mais me chamou a atenção, no dia em que Steve Jobs morreu: em meio ao fluxo feroz de informações típico da CNN, o médico Sanjay Gupta, também repórter e apresentador do canal, disparou: "Há relatos de que, logo depois de descobrir que tinha câncer no pâncreas, Jobs não aceitou o tratamento indicado, e tentou controlar a doença apenas com uma dieta especial".

Nos dias seguintes, não se falou muito sobre isso, ou pelo menos não vi nem li. Mas, aos poucos, a situação foi se aclarando. Era aquilo mesmo: Jobs achou que driblaria a doença gravíssima à base de alimentos e energia cósmica. O biógrafo oficial, Walter Isaacson, revelou que houve até consultas a curandeiros.

Em nenhum lugar li uma descrição tão apavorante da doença de Jobs, e de como ele lidou com ela, como na reportagem "A Medical Gamble" ("Uma Aposta Médica", ou "Jogando com a Saúde", em tradução aproximada), de Sharon Begley, na "Newsweek".

Begley conta como Jobs atrasou o tratamento nove meses, enquanto tentava a tal dieta. E como, quando não havia mais o que fazer a não ser operar, ele foi submetido a uma cirurgia de nome assustador, "pancreatoduodenoctomia", descrita como uma das mais "complicadas e arriscadas" de toda a medicina, "mais do que cirurgia do cérebro". Mas já era tarde para uma cura efetiva.

A relutância de Jobs, sua recusa em aceitar os tratamentos prescritos a mortais comuns pode ser explicada, é claro, pelo viés psicológico. Um ego tão colossal que esmaga a razão. Uma autoconfiança desmedida, de quem se julga mais poderoso que a própria natureza (ou que Deus, conforme o gosto do leitor).
Mas não me arrisco nessa seara, muito mais bem explorada, neste mesmo espaço, por outros colunistas.
Prefiro falar de como a atitude de Jobs me parece típica da área onde ele nasceu, viveu e prosperou: o Vale do Silício, região de San Francisco, norte da Califórnia.

Por que talvez em nenhum outro ponto do planeta convivam tão colados o conhecimento científico de ponta e o misticismo. Ou, pior ainda, a mistura perversa de ciência e crendice (por exemplo: usar o conhecimento científico da composição dos alimentos para, a partir daí, acreditar que eles, sozinhos, sejam capazes de curar uma doença agressiva e fatal).

Os laboratórios de Stanford e Berkeley, as duas melhores universidades da região, revolucionam a física, fazem avançar a medicina, ampliam nosso conhecimento sobre o cosmos, desvendam as entranhas atômicas das moléculas.

Mas, nas ruas dessas mesmas cidades, viceja o pensamento "alternativo". Xamanismo, energizações, meditação, tudo isso encontra espaço ali. E tudo movido à ingenuidade e ao paternalismo tão característicos de americanos bem-intencionados. Segundo essa linha de pensamento, se algo é exótico, propalado por pessoas de sotaques estranhos, vindas de lugares distantes, então deve ser bom.

No Vale do Silício, impera o capitalismo em estado bruto (ou selvagem, de novo conforme o gosto de quem lê). Investidores tão ricos quanto impiedosos descarregam fortunas em novas empresas, que surgem às centenas e tentam entregar resultados em meio ao ambiente mais criativo e competitivo do mundo.
No entanto, a poucos quilômetros dali, nas esquinas das ruas Haight e Ashbury, em San Francisco, está o berço do movimento hippie, da paz, do amor e do desdém pelo conforto material.

Outra cidade da região, Berkeley, viu nascer, nos anos 60, o movimento pela liberdade de expressão, crucial na construção do pensamento contestador americano.

Mas foi na mesma Berkeley, nos laboratórios de Glenn Seaborg (Nobel em 1951), que se desenvolveram algumas das pesquisas mais importantes sobre a química dos elementos radiativos, essenciais para a fabricação da bomba atômica.

Jobs era filho dessas contradições californianas.

Difícil imaginar o convencional e "nerdy" Bill Gates, ex-aluno de computação em Harvard, recorrendo a dietas anticâncer e a xamãs, caso tivesse uma doença grave. Basta lembrar das centenas de milhões de dólares que a Fundação Bill e Melinda Gates destina à pesquisa médica (Jobs não tinha nenhuma atividade filantrópica conhecida).

Para se tratar, Jobs percorreu o mesmo caminho intuitivo e arriscado que usava para conceber seus produtos. Só que, dessa vez, seu oponente não era o mercado, que ele tão bem dominava, mas células tumorais em replicação descontrolada. Embate perdido, uma espécie de suicídio.
29/10/2011, Folha de São Paulo,

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