Passei a terceira semana de julho em retiro espiritual com meus confrades dominicanos. No feriado de Corpus Christi, fiz o mesmo, durante três dias, com grupos de oração integrados por leigos. Neste mundo atordoado, notícias nos perseguem em todos os cantos e recantos. Solicitações se multiplicam. Retirar-se, recolher-se à solidão, estar consigo mesmo, é uma exigência espiritual e intelectual. Muitos indígenas o fazem ao passar da adolescência à idade adulta. Os esportistas se concentram nos dias precedentes a jogos e disputas.
Se logro produzir tantos artigos e livros (53 títulos em 35 anos. O 54º, um romance, sai no final deste mês), não é devido à equipe de fradinhos que, como sugere Ricardo Kotscho, ocupa-se, no porão do convento, a redigir, dia e noite, textos que assino. É graças a retiros literários. Pelo menos 120 dias do ano reservados à criação literária. Evito a agitação urbana e mantenho o celular desligado e a ansiedade contida.
Escrever, como diria Thomas Edison, não é mera questão de inspiração, e sim de transpiração. (João Ubaldo Ribeiro opina que a melhor inspiração é um fornido cheque do editor.) Para criar há que ralar. Ter a disciplina de renunciar a convites, festas, atrações, viagens. E dedicar-se seriamente ao trabalho de ler, escrever e pesquisar. Basta abrir as correspondências de Balzac e Flaubert para ter uma ideia de como se entregavam ciosamente ao ofício literário.
Ah, quantas narrativas jamais nos chegaram por ficarem retidas na imaginação de escritores que não se empenharam em virar autores! Quantas obras-primas literárias sorvidas em tulipas de chope nos bares da noite! A preguiça é um dos sete pecados capitais. Nome inadequado. Nada a ver com sombra, água fresca e jornal sem letras. Prefiro o termo sugerido pelo monge Cassiano (370-435): acídia, latinização do grego acédia. Acídia é o desânimo de cultivar a vida espiritual. De orar. De ler e meditar a palavra de Deus. De praticar a virtude e superar o vício. De abraçar os ensinamentos dos mestres espirituais.
Esta a importância do retiro espiritual: distanciar-se do burburinho cotidiano, livrar-se por uns dias da hipnose televisiva e do magnetismo internético, deixar o celular desligado e conectar-se ao silêncio, ao íntimo de si mesmo, para escutar melhor a voz divina e, assim, dilatar a capacidade de amar. Muitas vezes a resistência em retirar-se deriva do medo (inconfessado) de encontrar a si mesmo. De escutar a própria intuição, ouvir a voz do silêncio. É semelhante à resistência à terapia. Assim como há quem julgue que ela “é para loucos”, há quem considere que retiro “é para monges”.
Tenho amigos com imensa dificuldade de desconectar-se do dia a dia. São compulsiva e compulsoriamente antenados em tudo. Na verdade, ficam ligados no varejo. Não conseguem se empenhar no atacado. Deixam escapar por entre os dedos os talentos que possuem. Tornam-se, assim, presas fáceis da ansiedade e vítimas do estresse. São aptos ao infarto, pois nem sequer conseguem mastigar devagar o que ingerem.
Ainda que não haja oportunidade de fazer um retiro espiritual, ao menos a manhã ou a tarde de um domingo do mês deveria ser reservada ao isolamento. Bastaria visitar uma igreja, desfrutar a tranquilidade de um parque ou mesmo trancar-se em casa e meditar. Para o artista, retirar-se é imprescindível. A criação exige distanciamento. Krajcberg refugia-se no Sul da Bahia. Manoel de Barros, numa fazenda do Mato Grosso. Adélia Prado, em Divinópolis (MG). João Gilberto se impõe uma vida monástica em seu apartamento no Rio.
Talvez por isso Javé, em sua sabedoria, tenha primeiro criado a luz e, por fim, os seres humanos. Nossa excessiva tagarelice teria prejudicado a obra da Criação. E, como narrador invisível, Deus prefere ser conhecido por sua palavra e obra. Assim como nós, leitores, conhecemos Camões, Machado de Assis e Dostoiévski.
Frei Betto Jornalista e escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de Conversa sobre a fé e a ciência
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