domingo, 21 de agosto de 2011

Indignai-vos! (ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA)

Faz três anos que o conheci.
Era verão na Provence e festejávamos o aniversário de um amigo. Ele lembrou seus 91 anos, serviu-me um copo de vinho, num gesto bíblico cortou o pão com as mãos e celebramos o bem viver, a amizade e o perfume de lavanda do verão provençal.

Quis saber se eu assistira a um filme chamado “Jules e Jim” — um cult da minha juventude — e se disse filho de uma mulher extraordinária. A personagem do filme, vivida por Jeanne Moreau, era sua mãe e com ela aprendera a amar e respeitar as mulheres.

Perguntava-se, angustiado, por que os jovens não se revoltavam contra um mundo tão injusto se até os prisioneiros dos campos de concentração se revoltavam. Stéphane Hessel, ele mesmo fugitivo de um campo nazista, último sobrevivente do grupo que redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano passado escreveu um pequeno livro, não mais que 13 páginas: “Indignai-vos!”

O resto da história é conhecido: milhões de exemplares vendidos, reedições em todas as línguas, escuta mundial. Acusados de não se interessar por política, enredados na internet, foram os jovens que ecoaram o apelo de um ancião que falava dos valores e esperanças que fizeram dele um resistente ao nazismo.

O eco veio das praças. Onde mais iriam esses jovens que já não se reconhecem no sistema político e que, na rede, não param de repetir esse desgosto? Não foram eles que abandonaram a política, foram os políticos que, perdendo autoridade moral, os abandonaram.

É na comparação com Hessel que David Cameron, primeiro-ministro inglês, preocupado em tirar do ar as redes sociais, parece ainda mais aturdido. Falta-lhe o sentimento do mundo que fez de Hessel, nonagenário, interlocutor da juventude. Falta-lhe a História vivida em primeira pessoa, ao pé da letra das convicções, exemplar.

Pensando que o vandalismo se combate tirando do ar as redes sociais, Cameron encarna a clássica piada do marido traído que resolve evitar o adultério tirando o sofá da sala.

A violência que incendiou a Inglaterra não tem a mesma seiva que alimenta a onda de protestos que perpassam os continentes. Pilhando os ícones do consumo de luxo os saqueadores ingleses subscrevem a lógica de um sistema econômico predatório, voraz , estimulador de uma competitividade selvagem, do cada um por si e todos contra todos — ninguém pelos mais fracos — que recria a selva e a seleção natural como ordem do mundo.

Como se surpreender que feras, famintas de tudo, estejam à solta nas ruas de Londres?

Os saques são o rebatimento no submundo da sociedade da escroquerie financeira que, por cima, inventa derivativos e saqueia a economia mundial e as economias de cada um, vangloriando- se de seu estilo agressivo.

Ninguém pensou em tirar do ar a internet quando nela circulavam os golpes de quem vive de produzir dívidas e cobrar por elas. Quando os bancos colapsam, e as falências se dão em castelos de cartas, a conta final vai para os Estados, logo, para nós todos. A crise, de fato, é esse sistema, desgovernado e impune, que já arruinou meia dúzia de países e ameaça destroçar outros tantos. A internet é só o sofá da sala.

Na contramão do quebra-quebra de Londres, no Cairo pede-se liberdade contra ditaduras corruptas, em Santiago educação de qualidade, em Tel Aviv mais políticas sociais e menos gastos militares, em Atenas e Madri o direito ao futuro. Nestes dias, em Bombaim, o fim da corrupção.

O denominador comum é um desejo insatisfeito de justiça quando a injustiça se apresenta como a ordem natural das coisas. Condenação da hipocrisiados que invocam leis que eles mesmos não respeitam, da democracia encenada como teatro do absurdo.

Os indignados não são uma ameaça à democracia, podem ser sua salvação. Como células-tronco, dão vida nova à política, esse tecido morto que hoje paralisa a democracia. "No hay crisis, es que ya no te quiero", dizem os jovens espanhóis.

Em Brasília, a presidente da República ataca a corrupção enfrentando a chantagem da ingovernabilidade. Governar não é dividir o butim. No Senado, Cristovam Buarque, fiel à sua biografia, lança uma frente pluripartidária pela ética. Pedro Simon, octogenário, convoca a sociedade. A OAB se movimenta. A UNE se cala. Esclerosada, não se lembra mais quem é. A indignação circula nas infovias que, como sabemos, fazem esquina com as ruas. A ética como política chega ao Brasil.

Moral da história: idosos rejuvenescem, acelerando o futuro. Hessel pode dormir tranquilo. A indignação que varre o mundo ressuscita os valores que inspiraram sua vida.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora.

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