A capa do livro não me entusiasmou: uma foto de Wilson Simonal, usando a bandana tradicional que caracterizava seu figurino, sobre o título “Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga”. Minha interpretação foi rápida: lá vem mais uma obra tentando recuperar a importãncia de Simonal na música brasileira. Resisti à implicância e abri o livro. Me dei bem. O trabalho do historiador Gustavo Alonso, que a editora Record está mandando este mês para as livrarias, pretende mesmo entender o ostracismo a que Simonal foi relegado e recuperar sua importância, mas de uma maneira original, talvez da maneira mais original entre as que foram tentadas até agora.
O livro empreende uma viagem aos anos 60, período em que a música brasileira fazia parte da luta política travada no país. Para começar, Alonso recupera um gênero que, até gora, nem mesmo era considerado um gênero: a Pilantragem. “O conceito MPB foi forjado por meio da luta contra a ditadura, ecoando e catalisando a construção de uma memória de resistência que a própria sociedade vinha criando para si mesma”, escreve o autor, para explicar as canções de Bethãnias e Vandrés, consideradas a única coisa importante que era composta na época. “A História da MPB sempre foi privilegiada por pesquisadores, escritores, acadêmicos e jornalistas, muito mais do que qualquer outro gênero musical. É comum que artistas não identificados a este gênero estético-político sejam associados à baixa qualidade estética e à ‘alienação’ política.”
Então é isso. Muito antes de o nome de Simonal ser associado à imagem de dedo-duro a partir de a seu polêmico envolvimento na detenção ilegal de seu contador, como está mais do que explicado no documentário “Simonal — Ninguém sabe o duro que dei”, de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, o cantor já era associado à baixa qualidade, um alienado, um adesista e, portanto, não merecia fazer parte da História da nossa música.
“Certos artistas são silenciados pela memória hegemônica em nome de um conceito estético e político, apagando-se a vivência afetiva de milhões de brasileiros”, escreve Alonso, me fazendo lembrar que, lá em casa, a vitrola não parava de tocar Simonal, a Turma da Pilantragem, Regininha, Antônio Adolfo e A Brazuca, Turma da Pesada e uma certa fase de Marcos e Paulo Sérgio Valle. Por que nunca se fala deles quando se escreve sobre a música dos anos 60? É o que o livro de Gustavo Alonso explica.
Para ser mais polêmico, o autor é definitivo: a Pilantragem, um projeto estético da década de 60, inventado por Simonal, Carlos Imperial e Nonato Buzar, “buscava, como o Tropicalismo, fundir o que vinha ‘de fora’ com as tradições de ‘de dentro’. (...) Assim como a bossa nova teve em Tom Jobim o ‘maestro soberano’, a Pilantragem também teve seu cérebro musical: Cesar Camargo Mariano. Muito antes de ser conhecido e reconhecido pelos arranjos para Elis Regina na década de 70, ele já era um dos grandes responsáveis pelo movimento da Pilantragem, criando levadas inovadoras e sacudindo todo mundo com suingues dançantes através do instinto e da sensibilidade de Simonal.” Aí já há combustível suficiente para uma explosão e tanto nas entranhas da MPB, mas o livro é muito, muito mais inflamável.
A trajetória De Simonal é muitas vezes abandonada para o autor se debruçar sobre o tempo em que a música brasileira se dividia entre resistentes e adesistas. Um tempo de passeatas contra guitarras elétricas, do papel do jornal “O Pasquim” em determinar quem merecia ser ouvido (os resistentes) e quem não (os adesistas), da intolerância que quase acabou com a carreira de Ivan Lins, do preconceito que acabou com a carreira de Erlon Chaves... O livro traz ainda uma tese nova que promete reacender o velho debate: a transposição da imagem de Chico Buarque de adesista à resistente.
“A imagem do artista hoje é a do resistente ideal, louvado pela postura combativa e aguerrida na luta cultural contra o regime”, escreve Alonso. “No início da carreira, muitos tiveram dificuldades em associá-lo à luta contra a ditadura, pois ele quase sempre preferia compor temas lírico-amorosos e ‘alienados’.’’ O autor lembra que “Carolina”, de Chico, fez parte do repertório de Agnaldo Rayol no disco “As minhas preferidas”, uma seleção de canções “preferidas” do presidente Costa e Silva. E que a imagem de Chico só se transformou após o que ele chama de “breve” exílio do artista na Itália. Baseado em tese ainda não publicada do historiador italiano Luca Bacchini, o ivro é contundente: “Sabendo da sede da juventude italiana pelos mitos da América Latina, especialmente Che Guevara, a RCA (gravadora italiana) criou uma campanha publicitária que colocava Chico Buarque vítima da ditadura. Passou-se a vender a ideia de que ele era um exilado político, cantor de protesto expulso do país. Paradoxalmente, foi na Itália que Chico tornou-se o resistente ideal.
É lenha na fogueira da MPB. E bem que a MPB está precisando.
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