domingo, 28 de agosto de 2011

Oito meses e alguma turbulência (Marco Aurélio Nogueira)

Há bons motivos para avaliarmos positivamente os primeiros meses do governo Dilma Rousseff, sobretudo se se considerarem as reais possibilidades de atuação com que contou. Empurrado e legitimado pelas urnas de 2010, ele se iniciou num momento em que o País estava com a moeda estabilizada, reduzindo a miséria e expandindo o mercado interno, graças à ampliação do crédito popular, aos programas de transferência de renda e à recuperação do emprego. Encontrou, portanto, uma sociedade animada pelos mecanismos consumistas típicos da modernidade atual, ou seja, uma sociedade menos solidária e mais competitiva, que extrai desta sua nova condição o oxigênio necessário para se relacionar de outro modo com o Estado. É uma sociedade que continua pedindo garantias, direitos e proteção, mas também aprofunda sua inserção nas trilhas da despolitização e passa a ver o mundo em termos mais mercantis, aliviando parcialmente a pressão sobre o Estado.

A face política e administrativa do Estado, por sua vez, se não corrigiu por inteiro seus problemas crônicos (ineficiência, inchaço, custo elevado, despreparo), também não piorou. A representação continuou como sempre, com uma classe política que deixa a desejar. A administração permaneceu contagiada pela dinâmica gerencial que se vem afirmando desde a reforma de 1994. Além do mais, está hoje submetida a um maior grau de fiscalização por parte da opinião pública, fato que a torna mais transparente e mais passível de controle. A corrupção não cresceu, mas sua percepção aumentou, o que faz com que denúncias se sucedam e o combate a ela passe a fazer parte da agenda pública e da agenda governamental.

Não é por outro motivo que os oito meses iniciais do novo governo foram vividos sob o signo da instabilidade ministerial. A fraqueza da equipe é flagrante. Ministros saíram por motivos relacionados a desvios de conduta ou a inabilidade. O Ministério não parece funcionar.

Parte dessa instabilidade se vincula à herança recebida por Dilma, que está longe de ser uma "herança maldita", como se ouve dizer em alguns ambientes. De qualquer modo, é um fardo. Aquilo que beneficiou a então candidata nas eleições de 2010 - o apoio de Lula, as realizações governamentais, as alianças feitas com o intuito de fornecer "governabilidade", a base parlamentar -, tudo isso, de repente, parece voltar-se contra o novo governo, dificultando sua arrumação. Afinal, cada presidente precisa imprimir sua própria marca ao governo que dirigirá, e nesse terreno não pode haver simples transferência de esquemas ou continuidade passiva, por mais que Dilma e Lula sejam carne da mesma carne e integrem o mesmo partido.

Não deveria estranhar, portanto, a existência de certos "ajustes de contas" entre os apoiadores do novo governo ou mesmo entre alas do PT. Nos primeiros oito meses esses ajustes foram tão intensos e eloquentes que ofuscaram planos e programas de ação do governo. O quadro acabou por ensejar certa confusão. O Brasil sem Miséria, por exemplo, complementa ou compete com o Bolsa-Família, é uma sua requalificação ou representa a abertura de outra frente de batalha, com distinta lógica e distintos protagonistas?

O legado dos oito anos de Lula não deu trégua aos oito meses de Dilma. Não poderia ter sido diferente. O período Lula imprimiu uma inflexão na vida nacional, seja pelo choque simbólico derivado da biografia de Lula e de seus traços carismáticos, seja pelas novas alianças que produziu, especialmente as que levaram a uma espécie de pacto informal entre o trabalho e o grande capital, seja, enfim, por sua própria agenda pessoal. Não deve ser fácil governar com a sombra de uma liderança popular que se recusa a sair de cena e espera o momento certo para retornar ao palácio. O esforço para se livrar dessa sombra ou, ao menos, neutralizá-la deve ter consumido boas horas de sono no Palácio do Planalto.

Muita gente acreditou que poderia pautar o governo com a ideia de "limpeza ética". A presidente reagiu à altura, e não sem razão. A meta de seu governo, disse, não é fazer "faxina" em ministérios suspeitos de corrupção, mas "fazer o País crescer e combater a pobreza". Há quem pense que o combate à corrupção deveria ocupar o centro da ação governamental, como se só pudesse haver bom governo depois que todos os corruptos fossem presos. Alguns se esquecem de olhar para o próprio quintal e outros imaginam que o governo é a fonte geradora de tudo o que há de errado no País. Falta bom senso por aí.

Uma coisa é combater a corrupção, outra é transformá-la na razão de ser da ação governamental. No primeiro caso, faz-se uma luta política cotidiana que não paralisa o governo. No segundo, o combate é moralista e "espetacular", atrapalhando a ação governamental. Achar corruptos é fácil, governar bem, difícil. Uma coisa não explica a outra. Um governo não é bom só porque combate a corrupção e não é mau só porque mantém prudência na luta contra ela. Como tudo na vida, virtus in medio est.

O equilíbrio demonstrado até agora pelo governo tem sido seu melhor alimento. A situação não lhe é totalmente favorável, há ventos soprando forte pelos lados da economia, a maioria parlamentar não é confiável e falta ao governo maior poder de articulação, seja em seu próprio interior e no âmbito das relações com os demais poderes, seja junto à opinião pública e à sociedade civil. O barco conta com uma timoneira tecnicamente qualificada e disposta a liderar o período governamental que terá pela frente. Sua densidade política, porém, ainda é baixa e ela dispõe de poucas bases próprias. Trata-se de uma situação que talvez nos ajude a entender as razões que mantiveram o governo enredado num matagal de pequenas questões.

O momento é de atenção. Tanto porque as águas em que navega são turbulentas quanto porque amigos, inimigos e adversários estão à espreita, prontos para subir ao palco.

Professor titular de teoria política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Nenhum comentário:

Postar um comentário