Na noite das eleições municipais, a mensagem de uma jovem
universitária chegou com lágrimas na voz: "A oposição vendeu São Paulo
para o governo". Tão desafiadora que merece uma resposta igualmente
franca.
A derrota do PSDB na cidade onde nasceu, e no Estado que domina há
20 anos, se deve exclusivamente ao próprio partido. Não pode ser
atribuída a intuições geniais do adversário, pois o candidato tucano -
um dos mais expressivos nomes do partido - obteve menos de 30% do
eleitorado contra um mar de 33% de votos não válidos.
É triste admitir, mas José Serra não precisou de adversários para ser derrotado.
O PSDB foi vítima de seu próprio sucesso. Nascido como uma federação
de dissidências regionais do PMDB e do antigo PFL, logrou conquistar o
eleitorado de centro graças ao gênio político de Franco Montoro, que lhe
deu voz e horizonte político, reunindo um leque admirável de lideranças
regionais com experiência e capacidade governativa.
Com a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e, sobretudo, com
sua reeleição, em 1998, o PSDB cresceu demais e desordenadamente, mas
não o bastante para garantir uma maioria governativa. As vacas gordas
transmitiram doenças crônicas: o esgarçamento das bandeiras, o
caciquismo e uma crise de identidade que o impede de entender o seu
próprio eleitorado e definir rumos coerentes.
Fernando Henrique, o líder de maior sucesso eleitoral e político na
história tucana, jamais foi unanimidade no próprio partido. Seções
inteiras do PSDB repudiaram o Plano Real, que não teria passado sem o
apoio do PFL. Seções inteiras apoiaram Lula nas eleições de 1994. Em
1998, além de Lula, também apoiaram outro candidato. Lideranças
expressivas renegam até hoje a maior fonte da popularidade e da base
eleitoral do partido - o reconhecimento da estabilidade econômica e da
robustez financeira conquistadas sob sua liderança. Alinhando-se à visão
míope do PT, as candidaturas tucanas à Presidência no pós-FHC
esmeraram-se em tratar seu legado como a vergonha da família - abertura
da economia, privatizações, responsabilidade fiscal, reforma bancária,
moeda forte -, permitindo que Lula e o PT fossem os únicos beneficiários
do sucesso dessas políticas.
A perda da identidade abre as portas para o caciquismo: setores
inteiros do PSDB preferem perder para o adversário a ter de dividir a
vitória com o rival no próprio partido. Os caciques regionais bloqueiam a
ascensão de futuros rivais nas capitais, tática que explica como
lideranças fortes em 30 anos de domínio político - se contarmos desde
Mário Covas como prefeito de São Paulo - só conseguiram emplacar um
candidato em condições realmente competitivas em 2004, com Serra.
Sua quintessência é a coalizão de vetos, em vigor desde a sucessão
de FHC em 2002. Diferentes lideranças, por diferentes razões, embora
minoritárias, reúnem recursos de resistência suficientes para frustrar a
eleição do eventualmente consagrado pela maioria do partido.
Foi assim em 2002 com Serra, que chegou a ser derrotado em Estados
onde a coalizão tucana obteve vitória incontestável. Foi assim em 2006
com Geraldo Alckmin, que chegou ao segundo turno para ser hostilizado
publicamente por seu próprio partido. Foi assim em 2010 com Serra, que,
em que pesem seus erros de percurso, foi indiscutivelmente hostilizado
por seus próprios pares antes, durante e depois da campanha.
O esgarçamento das bandeiras resulta diretamente da extensão das
coalizões tucanas, para além do útil e do desejável. Para dar conta
desse esgarçamento basta deixar uma pergunta no ar: quem sabe quais as
posições da oposição tucana sobre a matriz energética brasileira desde o
ministério Dilma Rousseff; sobre o atual modelo de crescimento; sobre a
missão do Banco Central, sua tolerância com a inflação e o gasto
público; sobre o desmantelamento da Petrobrás e a paralisia da política
de exploração do pré-sal; sobre a política federal para enfrentar as
mudanças climáticas; sobre o nacionalismo comercial e cambial; sobre o
"controle social" da liberdade de imprensa?
Vivemos uma década de despolitização graças à capacidade do
ex-presidente Lula para manipular corações e mentes. Os partidos, as
ideias, os anseios de parte significativa do eleitorado foram ofuscados
pelo culto à personalidade e pelo maniqueísmo do "nós contra eles".
Em artigo publicado em Opinião Pública (vol. 13, n.º 2, 2007),
Elizabeth Balbachevsky e Denilde Holzhacker mostraram que o eleitor de
Lula em 2006 diferiu significativamente do seu eleitor em 2002. Naquela
eleição o voto em Lula não foi determinado, como nas eleições
anteriores, pela identidade do eleitor com o PT nem por sua inclinação
ideológica. Variáveis demográficas, como o nível de renda e de
escolaridade, foram mais importantes na propensão para votar em Lula.
Uma controvérsia foi criada sobre a emergência de uma nova realidade
social e política, o "lulismo", capaz de alterar definitivamente a
matriz do sistema partidário nacional.
As últimas eleições municipais, entretanto, evidenciam a perda de
fôlego do personalismo. Lula considerou questão de honra bater seus
adversários em dúzia e meia de cidades. Venceu em pouco mais de meia
dúzia. É visível, ademais, um realinhamento do voto nacional, com as
administrações municipais concentradas novamente em três grandes
partidos, um ao centro (PSDB), outro à direita (PMDB) e outro à esquerda
(PT). Com isso os tucanos precisam tomar algum rumo, pois há dois
partidos emergentes prontos para ocupar o seu lugar ao centro (PSB) e à
direita (PSD).
* PROFESSOR TITULAR DA
USP, É PESQUISADOR SÊNIOR DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA UNICAMP;
PROFESSORA ASSOCIADA DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP, É
VICE-COORDENADORA DO NUPPS/USP E MEMBRO DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS
DA UNICAMP
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 26/11/2012.
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