Duas histórias, para começar. Na década de 1920, o escritor e político
Humberto de Campos visita, no Maranhão, um hospital de leprosos. Fica impressionado
com o atendimento, apesar da escassez de dinheiro. Procura o presidente da
República, Washington Luiz (vejam o simbolismo: o último mandatário da
República Velha), e lhe pede cem contos de réis para o leprosário. O presidente
reconhece o mérito, mas recusa. Humberto baixa o pedido, e Washington Luiz:
"Nem cinco [contos]. Porque, se der para um Estado, tenho que dar para
todos".
A outra história: conta-se que José Serra, ao assumir a pasta da Saúde -
onde teve a realização mais prestigiada de sua carreira - teria pedido aos
assessores uma planilha, mostrando as doenças que maiores males causam (mortes,
sofrimento etc.) e quanto o governo gasta com cada uma. Dessa maneira, fica
mais fácil ver onde o dinheiro público, sempre limitado, rende mais. A gestão
dá um salto de qualidade.
As duas histórias, separadas por setenta anos, mostram duas formas opostas -
mesmo que ambas bem intencionadas - de atuar o governo nas áreas sociais. Na
primeira, só sai dinheiro com padrinho. Por sorte do leprosário, um homem
ilustre o conheceu. (Por azar, o presidente não foi convencido da prioridade do
gasto...). Na segunda, não precisamos de padrinhos. O sistema de dados do
governo já indica o que se deve priorizar. Mais que isso: no primeiro caso, o
cobertor é sempre curto. Sem o favoritismo, nada funciona. Com ele, funciona só
para alguns. No segundo caso, o cobertor é ajustado para evitar, ao menos, que
se morra de frio. Há a intenção, mais que isso, a possibilidade de garantir uma
cobertura social universal - ou quase.
Cidadãos precisam acompanhar avanços do Estado
Em outros tempos, só conhecia as coisas quem as enxergasse. Hoje, com o
avanço nas comunicações e, finalmente, a Internet, podemos ter dados adequados
sobre educação, saúde, estradas, enfim, sobre quase tudo o necessário para a
gestão. Se Humberto de Campos não visitasse o hospital, ninguém saberia dele.
Hoje, saberia mesmo a distância. No passado, não era só questão de favor ou
proteção. Era questão de simples conhecimento. Hoje, podemos conhecer tudo o que
importa. E além disso, ao contrário do presidente para quem a questão social
era um caso de polícia, ela se tornou central na missão do Estado.
A chave para sair da miopia, do clientelismo, do favor e do tratamento
desigual é antes de tudo um sistema de dados. É preciso o poder público ter
informações corretas para agir. Depois disso, é definir as prioridades e ir à
luta. Vejam os programas sociais. Substituem, com vantagem, as cestas básicas
que os governos davam por meio de políticos locais. Hoje, cada vez mais os
programas de complementação de renda informatizam dados e os aplicam segundo
critérios definidos. Ou vejam o que os auditores do Tribunal de Contas
descobriram em 2009: que 1700 beneficiários do Pro-Uni eram donos de carros
novos. Para chegarem a esse dado, cruzaram os nomes do Pro-Uni com os do
Renavam, o cadastro nacional de veículos. Obviamente, essas pessoas não
mereciam ser bolsistas. Seguramente, os gestores do Pro-Uni não foram
desonestos ao lhes darem bolsas, mas o TCU mostrou competência raras vezes
vista ao criticar erros na concessão.
Isso não é tecnocracia. Os critérios continuam sendo políticos. Mas têm de
ser explicitados. Por exemplo, a complementação de renda pode exigir que os
filhos estudem, que as grávidas façam exame pré-natal, que o desempregado ou
subempregado faça treinamento. Essas condições são políticas, mas não
partidárias ou politiqueiras. E os portais de transparência permitem ver se
estão sendo seguidas - ou não. Esses são avanços monumentais na gestão e,
também, na democracia.
O importante é que esses progressos não são de um partido só. Ocorrem na
esfera federal, em muitos Estados e municípios. Foram se tornando regra, creio
eu, desde o governo FHC. O PT deu-lhes continuidade. Vejam o exemplo do Provão,
o exame nacional de cursos universitários, que permite que os vestibulandos e
suas famílias saibam a qualidade da faculdade tentada. O PT se opôs a ele
enquanto era oposição, mas aprimorou-o, com o Enade, uma vez no governo. Os
avanços de que falo constituem políticas de Estado.
Mas há um grande senão nisso tudo. Ou dois. O primeiro é que nem sempre a
mídia acompanha o que acontece. O segundo é que a sociedade não acompanha
mesmo. A imprensa por vezes usa os dados para avaliar avanços e recuos do
Brasil. Os grandes jornais são atentos aos mapas da exclusão social e da
violência. O Valor vai mais longe, na avaliação fundada em dados, talvez por
ter um público que entende de economia e, portanto, de planilhas. Mas o debate
essencial na mídia, sobre os governantes eleitos, não leva em conta os dados de
melhora ou piora da saúde e educação.
O pior mesmo é que os eleitores mal têm ideia disso tudo. Quem sabe do Ideb,
o indicador de desenvolvimento da educação brasileira, talvez o maior feito do
governo passado na educação? É mais fácil falar de corrupção. Então, ficamos
com uma visão impressionista e maledicente da política, por parte de quem
deveria controlá-la, os eleitores; um acompanhamento limitado da gestão, pela
mídia; e um Estado - insisto, não só o federal, mas nas três instâncias de
governo - que a sociedade nem sabe direito o que ele faz. Nosso Estado é
provavelmente melhor do que imaginamos. Mas, para saber disso e controlá-lo,
precisamos nos esforçar por entender o que ele está fazendo. Ele avançou mais
do que nós. Meios para conhecê-lo há. Temos que nos dar a este trabalho.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na
Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico (26/11/12)
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