O presidente esquecido e resgatado pela história
“João Goulart — Uma Biografia” é uma poderosa contribuição à memória
do país, ao materializar anos de pesquisa a respeito de um período pouco
estudado da política brasileira: os anos Goulart, que culminaram com o
golpe de 1964
João Goulart
Salatiel Soares Correia
Espacial para o Jornal Opção
31 de março de 1964. Dois homens poderosos travavam um diálogo decisivo, que mudaria os rumos do Brasil. Estava em jogo a normalidade democrática, no país sob a ameaça de avanço do comunismo. Militares, a classe trabalhadora, os sindicatos, as ligas camponesas, enfim, a sociedade brasileira vivia naquele momento um clima bastante tenso. Os Estados Unidos, do presidente Lyndon Johnson, estavam informados e pronto a agir e, caso necessário fosse, enviariam porta-aviões americanos para a costa brasileira. Não foi preciso, os militares brasileiros agiram.
Posto isso, reproduzamos o dialogo em questão:
— Presidente, o senhor é capaz de me prometer que vai se desligar dos comunistas e decretar medidas concretas a esse respeito?
— General, sou um homem político. Tenho compromisso com os partidos e não posso abandoná-los ante a pressão dos militares. Não posso também deixar de lado as forças populares que me apoiam.
— Então, presidente, nada podemos fazer. E isto é a opinião dos generais aqui presentes.
Ao escutar isso, fiel ao seu estilo, o presidente tentou negociar o que àquela altura mostrava ser um conflito inegociável.
— Por que o general não vem ao Rio, conferenciar comigo e com os demais comandantes do Exército? Creio que arranjaremos as coisas.
— Não posso atender, presidente. Tenho compromissos com a linha de conduta que tracei para mim desde quando ministro da Guerra, contra o comunismo e em defesa do Exército, e não posso traí-la.
Estava deflagrado o estopim para revolução (ou golpe) de 1964. Calaram-se por mais de 20 anos as liberdades democráticas no país.
Os atores desse diálogo histórico por telefone, repleto de tensão, eram os dois mais poderosos homens do Brasil: de um lado, o presidente da República, João Belchior Goulart, mais conhecido por Jango; de outro, seu amigo, compadre e poderoso comandante do segundo Exército, general Amaury Kruel.
Quem estava com a razão? Difícil responder ante o calor dos acontecimentos. Eram, ambos, homens de caráter. O presidente estava sendo fiel às suas bases de apoio, centradas nas esquerdas e nos sindicatos; o general, caso não agisse, correria o risco de perder a legitimidade no comando das tropas.
É procurando retratar esse importante período histórico da nossa vida política que um brilhante historiador da Universidade Federal Fluminense, Jorge Ferreira, prestou uma enorme contribuição à memória política do país, ao materializar anos de pesquisa a respeito de um período pouco estudado e até certo ponto esquecido da política brasileira: os anos Goulart, que culminaram com a revolução (ou golpe) de 1964.
A obra se torna mais completa por incluir um período pouco conhecido da vida do ex-presidente João Goulart: os sofridos anos de exílio no Uruguai e na Argentina.
A obra é grandiosa pela posição do autor durante a gestação de seus escritos: procurou tão somente compreender e apontar os fatos, sem exercer qualquer espécie de paixão ante os acontecimentos. “João Goulart — Uma Biografia”, do professor Jorge Ferreira, é o mais completo relato da era Jango.
Herdeiro do getulismo
Oriundo de uma das famílias mais ricas dos pampas gaúchos, João Goulart herdou uma sólida fortuna dos pais. Dotado de um faro inegável para os negócios, Jango era, como ele mesmo se definia, um estancieiro. Multiplicou seu patrimônio ao ponto de se tornar o maior pecuarista do Rio Grande do Sul.
Foi esse Jango, amigo dos filhos de Getúlio Vargas, que conviveu com a velha raposa no seu exílio em São Borja. No momento do maior ostracismo político, ele se tornou o amigo de todas as horas. Vargas viu nele um talento que seus próprios filhos não tinham: a vocação política.
De volta ao poder, agora pelos braços do povo, Getúlio se tornou novamente presidente da nação brasileira. A partir daquele momento, a carreira política do deputado estadual João Goulart alçou voo nacional. Secretário do Interior e Justiça do Rio Grande do Sul, já eleito deputado federal, chegou a ministro do Trabalho. No ministério, Jango se revelou o grande executor do trabalhismo varguista. Sua devoção no atendimento às demandas provenientes das classes populares confundiu as elites econômicas do país. Elites, aliás, a que Jango pertencia. Era um paradoxo.
João Goulart, ministro do Trabalho dos tempos democráticos do getulismo, teve de lidar com um Brasil bastante mobilizado para as lutas políticas. Sua extrema preocupação com os mais desamparados não combinava com o homem rico, oriundo da nata da sociedade rio-grandense. Não se tratava de estratégia política. Jango era mesmo assim: um homem simples e bondoso.
A respeito do modo Jango de ser, conta-nos Jorge Ferreira que “a atuação de Goulart no ministério chocou amplos setores conservadores da sociedade brasileira — civis e militares. Afinal, um homem nascido entre as elites sociais, rico empresário rural, exercendo um cargo ministerial estava recebendo, em seu próprio gabinete, trabalhadores, sindicalistas e pessoas comuns, a maioria de origem social humilde”. Chegava ao ponto de tirar dinheiro da carteira quando antevia impedimentos burocráticos para resolver problemas dos desfavorecidos que diretamente o procuravam. E mais que isso: era comum encontrar o ministro do Trabalho de Getúlio nos subúrbios cariocas participando de festas. “Muito comuns, por exemplo, eram convites para jantar em embaixadas”. Jango sempre mandava representante, pois preferia “estar com sindicalistas e pessoas do povo”. João Pinheiro Neto, amigo próximo e auxiliar, atesta a maneira leve e educada de ser do ex-presidente. Para ele, “Jango era um homem extremamente educado, incapaz de indelicadezas e de exercitar qualquer espécie de autoritarismo. Jamais se referia negativamente a quem quer que fosse, mesmo aos seus desafetos mais exaltados e mais intolerantes”. Depoimento similar é o de Wilson Fadul, outro auxiliar próximo: “Ele não fazia reclamações de ninguém. Nunca ouvi dele uma palavra grosseira em relação aos inimigos, mesmo no exílio. Tratava-se de uma pessoa extremamente bem-educada”.
Era comum também encontrá-lo na companhia das mais bonitas e desejadas vedetes da época de ouro da noite carioca: as de Carlos Machado. “Solteiro, galanteador, conhecia as melhores casas noturnas.” Foi um eterno namorador, mesmo depois de se casar tardiamente com a bela Maria Tereza Goulart, oriunda da classe média de sua cidade natal, São Borja. Era um pai amoroso, um marido extremamente apaixonado pela esposa, mesmo dando suas conhecidas “puladas de cerca”.
O marido de dona Maria Tereza tinha uma grande qualidade, cada vez mais incomum nos dias de hoje, quando se trata de homens públicos: era incorruptível. Quanto a essa qualidade pessoal de Jango, Jorge Ferreira reproduz em seus escritos o testemunho do mais próximo assessor, Hugo de Faria. Este entrava no gabinete do então ministro sem bater à porta. Numa dessas entradas testemunhou uma conversa de Jango com outro nome de expressão da época, o ministro da Fazenda Osvaldo Aranha, a respeito de um estranho pedido, “na conversa, o ministro do trabalho pedia cinco milhões de cruzeiros”. De imediato, pensou: “mais uma negociata, que horrível”. Logo percebeu que estava enganado: não se tratava de corrupção, pois naquele momento Jango desgastava seu prestígio político com o ministro da Fazenda em torno de uma causa nobre, típica do trabalhismo getulista: obter garantias para os trabalhadores sem emprego. A partir daquele momento, o austero Hugo de Faria passou a admirar o herdeiro político de Getúlio Vargas e a e crer na sua sinceridade de propósitos.
O suicídio de Vargas
Se existe um acontecimento que causou profundos danos emocionais a Jango foi o suicídio de Getúlio Vargas. Goulart perdeu não só o seu mentor político, mas o homem que amava como se ama a um pai. Era um amor recíproco. Até no último momento de sua vida a confiança da velha raposa dos pampas em Jango era irrestrita. A ponto de Getúlio, antes do suicídio, entregar-lhe um documento importante, que só seria aberto depois da sua morte: sua carta testamento. No sepultamento, veio a emoção: Jango chorou. Chorou abalado não só pelo conteúdo da carta, mas pelo discurso que tinha acabado de fazer à beira do túmulo. “Até a volta, doutor Getúlio Vargas. Vai como foram os grandes homens. Tu que soubeste morrer, levas neste momento o abraço do povo brasileiro, levas o abraço dos humildes, levas o abraço daqueles que de mãos calejadas e honradas constroem a grandeza da nossa pátria. Nós estamos contigo e contigo está o povo brasileiro.”
Assim se despediu do seu mentor político e assim se manteve fiel ao ideário trabalhista. O suicídio de Getúlio Vargas manteve seu herdeiro político mais vivo que nunca. Candidato a vice-presidente na chapa de Juscelino Kubitschek — aliança PSD e PTB — Jango viu atestada sua imensa popularidade. Teve mais votos que o presidente eleito, fato que, a princípio, não deixou de provocar certo ciúme em Juscelino. Ciúme apagado pelo tempo, pois Jango e Juscelino se tornaram não só aliados políticos, mas amigos íntimos. Foram incontáveis as vezes que decisões importantes para o país foram tomadas na cozinha do apartamento de Jango, no Rio de Janeiro. Em todas elas, o ritual era o mesmo: Jango diante de um de seus passatempos preferidos — cozinhar. Cozinhar tendo como convidado frequente aquele mineiro lá de Diamantina que, por acaso, era o presidente da República.
Findo o governo JK, a presença de Jango — sedimentada por sua imensa popularidade e pelo legado getulista — continuou mais viva que nunca no primeiro time da política nacional. Novamente candidato a vice-presidente, agora na chapa de Jânio Quadros — a chapa Jan-Jango — ganhou as eleições. Iniciava-se assim o governo que não terminou: o de Jânio Quadros que, como todos sabem, logo renunciou. Atribui-se essa renuncia a um errôneo cálculo político de Jânio, que tinha a intenção de voltar nos braços do povo.
Jango estava numa viagem à China no momento da renúncia de Jânio Quadros. Aliás, uma viagem bem-sucedida, ante a amabilidade do líder Mao Tsé-Tung e do discurso que fez para mais de 10 mil chineses.
Viagem à China, reforma agrária, incentivo à organização sindical, politização das Forças Armadas. Certamente, esses foram ingredientes que influenciaram para que parcelas dos militares se insurgissem contra aquilo que não queriam: João Goulart presidente do Brasil.
Eis aí o estopim para o desencadeamento de um importante movimento deflagrado pelos então governadores do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (cunhado de Jango) e Mauro Borges Teixeira, de Goiás: a Cadeia da Legalidade, que possibilitou a posse do vice-presidente e a saída negociada para uma breve experiência de mudança no sistema político do país: o parlamentarismo.
A cadeia da legalidade
Estando João Goulart em missão oficial na China — viagem maquiavelicamente orquestrada por Jânio Quadros, com o intuito de reforçar a imagem de ligação de Jango aos comunistas —, o país ficou sem comando político. Parcela dos militares resistia à posse de Jango. Ante a incerteza da posse, nascia assim o movimento que ficou conhecido na história brasileira como Cadeia da Legalidade, comandada pelo então governador Leonel Brizola, com participação ativa do chefe do Executivo goiano, Mauro Borges Teixeira.
Por essa razão, os transmissores da rádio gaúcha Guaíba foram transferidos para a sede do governo gaúcho, no Palácio Piratini. De lá, Brizola comandou a cadeia radiofônica composta por 150 rádios do Rio Grande do Sul, que transmitiam para o Brasil e para o exterior, em inglês, espanhol e alemão, pronunciamentos que exaltavam a importância de se manter a ordem legal do país. E essa legalidade só poderia ser mantida com a posse do vice-presidente, que se encontrava no exterior.
Quanto à importância desse movimento, Jorge Ferreira nos relata em seus escritos que “a Cadeia da Legalidade foi de fundamental importância para o movimento, ao difundir mensagens de diversas entidades políticas e grupos sociais na defesa da ordem democrática”. E acrescenta: “Angariou a simpatia da opinião pública internacional. Nos microfones, Leonel Brizola desacatava os movimentos militares, desmoralizando-os publicamente”.
Avaliando a importância desse movimento na lupa do tempo, creio ser possível compreender a razão de tanta resistência dos militares contra o cunhado de Jango. Daí vem a dúvida: não seria a cassação de Brizola e a perda da histórica legenda trabalhista, entregue ao fisiológico PTB da então deputada Ivete Vargas uma retaliação à atuação de Brizola nos tempos da Cadeia da Legalidade? Não seria o crescimento do Partido dos Trabalhadores a aposta numa oposição mais confiável que a comandada pelo PDT de Brizola? Infelizmente, o velho bruxo Golbery do Couto, grande estrategista e homem de inegável inteligência, não está mais entre nós para dirimir essas dúvidas.
O parlamentarismo no Brasil
A cena não poderia ser mais apropriada: uma multidão aguardava na sede do Palácio Piratini, em Porto Alegre, a volta de Jango para tomar posse como legítimo presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Porto Alegre resistira, o Brasil resistira, Brasília o esperava.
Todos o queriam. Todos se sacrificaram a ponto de exporem suas vidas, ante a divisão das Forças Armadas, na iminência de um enfrentamento bélico. Todos estavam ali esperando pelo seu discurso, que simbolizaria uma tomada de posição em prol do presidencialismo. Jango aparecia na sacada do palácio e acenava, mas nada falava. A cena se repetia: a multidão gritava, e ele continuava mudo. Impaciente, o povo, desconhecendo o que ocorrera nos bastidores para tal atitude, começou a gritar: Covarde! Covarde! “Relatos afirmam que várias mulheres tiraram as roupas íntimas e as ofertaram a Jango. Para um homem como ele, era humilhante.”
Jango pagou o preço para evitar a luta armada no Brasil: teve de negociar, do Uruguai — tendo Tancredo Neves como interlocutor —, três pontos de que o Exército não abria mão: o silêncio, a não ida do cunhado a sua posse e a mudança do presidencialismo para o sistema parlamentarista. A decisão de Jango evitou o sacrifício da vida de milhares de brasileiros. Julgue o leitor por si mesmo a justificativa dele ao cunhado: “Olha Brizola, se nós podemos ter um entendimento e chegar ao governo com alguns poderes diminuídos, o importante é que cheguemos lá e evitemos o derramamento de sangue. Depois é depois. Nós evitamos o conflito, porque, em uma guerra civil, conflitos dessa dimensão, a gente sabe como entra, mas depois não sabe nunca como sai”.
Do presidencialismo à queda
A experiência parlamentarista mostrou ser inadequada, dividia o poder entre o primeiro-ministro e o presidente. E um presidente fraco carecia de autoridade para implementar no país a principal bandeira do trabalhismo: as reformas de base, principalmente a maior delas — a agrária.
Com a volta do sistema presidencialista, Jango, fiel ao seu estilo de hábil negociador, tentava, sem reprimir, frenar o avanço avassalador que tiveram as esquerdas em seu governo. Crescia a pressão dos sindicatos, das ligas camponesas — principalmente a comandada por Francisco Julião — e crescia algo que inquietava cada vez mais os militares: o partido comunista. Seu estilo negociador era visto pelos adversários como fraqueza. E Jango não era fraco, nem tampouco comunista. Quanto a isso, ele mesmo diz: “Não sou nem nunca fui comunista. Minha política foi eminentemente nacionalista, e foram os monopólios nacionais e estrangeiros que fomentaram a revolta, preocupados com as leis de nacionalização do petróleo e da reforma agrária. Além disso, minha política beneficiou uma enorme massa de deserdados do povo brasileiro”.
Uma série de episódios influenciaram para a queda do presidente João Goulart. Todos esses acontecimentos sinalizavam a clara opção política de Jango no sentido de marchar com as esquerdas em torno de sua principal bandeira: as reformas de base.
Não resta dúvida de que o mais significativo gesto nesse sentido ocorreu no dia 13 de março de 1964, quando Jango tomou uma importante decisão pessoal: ir ao comício da Central do Brasil. Para as esquerdas, a ida do presidente a esse comício representou explicito apoio às reformas sociais em gestação no país, tendo a reforma agrária como a principal delas. Entretanto, para a direita, o fato serviu de alerta. Alerta em torno do que há certo tempo já se articulava: o rompimento do jogo democrático.
Embora esse acontecimento tenha sido o mais significativo, outros ajudaram a sedimentar a revolução (ou golpe) de 1964. Por exemplo, o apoio do governo aos escalões inferiores das Forças Armadas. Esse apoio era visto pela cúpula militar como quebra de dois princípios invioláveis para a caserna: da hierarquia e da disciplina. As constantes mudanças nos ministérios militares, o apoio a associações de sargentos, soldados e cabos era malvista pelos escalões superiores das três armas. Nesse sentido, sua ida à festa do Automóvel Clube, na posse dos sargentos, e o apoio à rebelião dos marinheiros foram sedimentando cada vez mais a ira de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. A revolução (ou golpe) foi o resultado de um complexo processo que uniu toda a direita da política brasileira a um parceiro muito temeroso do avanço do comunismo: os Estados Unidos. Mais uma vez, a história se repetia: Jango quis evitar o derramamento de sangue. Antevia uma sangrenta guerra civil. O espírito guerreiro de Brizola insistia na resistência armada. O espírito conciliador de Jango preferiu o exílio. Caiu de pé. Disse ao cunhado, ao decidir-se pela retirada: “Eu verifico o seguinte: que a minha permanência no governo terá de ser à custa de derramamento de sangue em defesa do meu mandato. Seguirei para algum lugar do país, onde aguardarei os acontecimentos. Não renunciarei, entretanto. Mande tomar as providências para me dirigir ao aeroporto”. Ao ouvir isso Brizola, retrucou: “Tu nunca mais vais voltar para o Brasil deste jeito”. Não poderiam ser mais proféticas as palavras do então governador do Rio Grande do Sul. Jango nunca mais voltou.
O exílio sem volta
Banzo, o eterno desejo da volta à terra natal. Certamente foi esse o sentimento que mais corroeu o ex-presidente no seu longo exílio sem volta. Ao contrário do que se especulou, há fortes evidências de que Jango não morreu envenenado. Seu biógrafo vai, ao longo de seus escritos, mostrando os constantes sintomas que sinalizavam problemas cardíacos. Não gostava de ir a médicos. Aliado a isso, cultivava maus hábitos para uma pessoa com problemas cardíacos. Bom de garfo, amante de comidas gordurosas, apreciador de uísque, fumante inveterado. Fatores que contribuíram para o seu falecimento aos 57 anos.
Logo no seu primeiro ano de exílio, envelheceu consideravelmente. Embora fosse riquíssimo no Brasil, Jango chegou com poucos recursos no Uruguai. Sua vida e sua fortuna foram vasculhadas e nada que o desabonasse foi encontrado. A origem desta era absolutamente lícita. Ao perceberem isso, os militares deixaram de implicar com seus bens.
Com um faro inato para perceber oportunidades, tudo em que Jango punha a mão gerava dinheiro. No intervalo em que teve a vida vasculhada, com poucos recursos disponíveis, logo voltou a ser um homem rico no Uruguai. E mais rico ainda ficou com a liberação de seus negócios no Brasil, comandados por gente de sua confiança. Chegou a ser um dos maiores investidores na economia uruguaia.
Não obstante, Jango era um homem bastante generoso. Recebia várias cartas com pedidos de ajuda e nunca se negava a auxiliar os que precisavam. Mais de uma centena de pessoas dependia diretamente do auxílio do herdeiro do getulismo.
No exílio, teve de conviver com as eternas picuinhas do governo brasileiro: recusa de concessão de passaporte brasileiro, vigilância constante do Serviço Nacional de Informações, pedidos negados de regresso ao país e até dificuldades, depois de morto, para que fosse enterrado em São Borja, sua terra natal.
Com o endurecimento do regime uruguaio, recebeu convite do presidente Juan Domingo Perón para migrar para a Argentina. Viveu seus últimos anos em Buenos Aires. Perón sabia de suas habilidades e, por desfrutar da amizade do chefe do governo argentino, Jango acabou se tornando um auxiliar próximo. No entanto, o cunhado de Brizola carregava consigo a tristeza do banzo. Infelizmente, a previsão de Leonel estava certa: Jango não conseguiu em vida retornar à terra que tanto amava.
O julgamento da história
A política nos ensina a enxergar o propósito de suas ações. A boa ação política visa sempre o bem comum; a má ação, o bem próprio. Nada mais verdadeiro, na política rasteira, de que “os fins justificam os meios”.
Se existe um político brasileiro que fez questão de não se valer dessa máxima — e até a combateu —, esse homem público se chama João Belchior Goulart. A imagem de fraqueza que lhe foi atribuída pelos adversários e por parcela das Forças Armadas mostrou ser inverídica. Coisas assim, só o tempo revela.
Não tenham dúvidas de que episódios como a opção pelo exílio e pelo parlamentarismo evitaram sangrentas guerras civis nos momentos de maior agitação e mobilização do país. Os meios, lícitos, determinaram os fins conquistados. Alie-se a isso a habilidade de Jango para negociar em momentos de grande tensão. Seu temperamento ajudava. Era um homem calmo, educado e muito tratável.
Creio ser oportuno, no momento em que encerro este ensaio, resgatar a imagem da infância de Getúlio Vargas, relatada na seminal biografia de autoria do jornalista Lira Neto. Getúlio recorda que, nos momentos de ira paterna, se escondia no alto de um umbuzeiro e de lá só descia quando a raiva do pai, ante o seu “sumiço”, se transformasse em preocupação.
O líder político que mais tempo mandou no Brasil disse que também agiu assim nos momentos de grande tensão que teve de enfrentar. Só “descia do umbuzeiro” na hora certa, no momento adequado. Agiu assim na revolução de 1930, pois só abraçou a causa de fato no momento em que a situação estava delineada. Só nesse momento tomava uma decisão. Isso, em política, se chama astúcia.
Jango não mostrou ter a mesma astúcia do padrinho. Sua decisão de seguir com os movimentos de esquerda foi tomada quando a situação ainda não estava delineada. Desceu do umbuzeiro na hora errada. Pagou um alto preço por isso. 1964 e os duros anos da ditadura nos mostraram uma nova realidade, sem as liberdades democráticas. Entretanto, João Goulart foi um político sincero e obstinado. Tinha um projeto para o Brasil, projeto esse totalmente inserido no nacionalismo getulista. Tem seu lugar na história política do país. Vem de uma época que já não existe mais. Uma época em que o exercício da atividade política era sinal de grandeza.
Salatiel Pedrosa Soares Correia é engenheiro, bacharel e mestre em Planejamento. É autor, entre outros , do livro “Goiás, a Globalização e o Futuro”.
Espacial para o Jornal Opção
31 de março de 1964. Dois homens poderosos travavam um diálogo decisivo, que mudaria os rumos do Brasil. Estava em jogo a normalidade democrática, no país sob a ameaça de avanço do comunismo. Militares, a classe trabalhadora, os sindicatos, as ligas camponesas, enfim, a sociedade brasileira vivia naquele momento um clima bastante tenso. Os Estados Unidos, do presidente Lyndon Johnson, estavam informados e pronto a agir e, caso necessário fosse, enviariam porta-aviões americanos para a costa brasileira. Não foi preciso, os militares brasileiros agiram.
Posto isso, reproduzamos o dialogo em questão:
— Presidente, o senhor é capaz de me prometer que vai se desligar dos comunistas e decretar medidas concretas a esse respeito?
— General, sou um homem político. Tenho compromisso com os partidos e não posso abandoná-los ante a pressão dos militares. Não posso também deixar de lado as forças populares que me apoiam.
— Então, presidente, nada podemos fazer. E isto é a opinião dos generais aqui presentes.
Ao escutar isso, fiel ao seu estilo, o presidente tentou negociar o que àquela altura mostrava ser um conflito inegociável.
— Por que o general não vem ao Rio, conferenciar comigo e com os demais comandantes do Exército? Creio que arranjaremos as coisas.
— Não posso atender, presidente. Tenho compromissos com a linha de conduta que tracei para mim desde quando ministro da Guerra, contra o comunismo e em defesa do Exército, e não posso traí-la.
Estava deflagrado o estopim para revolução (ou golpe) de 1964. Calaram-se por mais de 20 anos as liberdades democráticas no país.
Os atores desse diálogo histórico por telefone, repleto de tensão, eram os dois mais poderosos homens do Brasil: de um lado, o presidente da República, João Belchior Goulart, mais conhecido por Jango; de outro, seu amigo, compadre e poderoso comandante do segundo Exército, general Amaury Kruel.
Quem estava com a razão? Difícil responder ante o calor dos acontecimentos. Eram, ambos, homens de caráter. O presidente estava sendo fiel às suas bases de apoio, centradas nas esquerdas e nos sindicatos; o general, caso não agisse, correria o risco de perder a legitimidade no comando das tropas.
É procurando retratar esse importante período histórico da nossa vida política que um brilhante historiador da Universidade Federal Fluminense, Jorge Ferreira, prestou uma enorme contribuição à memória política do país, ao materializar anos de pesquisa a respeito de um período pouco estudado e até certo ponto esquecido da política brasileira: os anos Goulart, que culminaram com a revolução (ou golpe) de 1964.
A obra se torna mais completa por incluir um período pouco conhecido da vida do ex-presidente João Goulart: os sofridos anos de exílio no Uruguai e na Argentina.
A obra é grandiosa pela posição do autor durante a gestação de seus escritos: procurou tão somente compreender e apontar os fatos, sem exercer qualquer espécie de paixão ante os acontecimentos. “João Goulart — Uma Biografia”, do professor Jorge Ferreira, é o mais completo relato da era Jango.
Herdeiro do getulismo
Oriundo de uma das famílias mais ricas dos pampas gaúchos, João Goulart herdou uma sólida fortuna dos pais. Dotado de um faro inegável para os negócios, Jango era, como ele mesmo se definia, um estancieiro. Multiplicou seu patrimônio ao ponto de se tornar o maior pecuarista do Rio Grande do Sul.
Foi esse Jango, amigo dos filhos de Getúlio Vargas, que conviveu com a velha raposa no seu exílio em São Borja. No momento do maior ostracismo político, ele se tornou o amigo de todas as horas. Vargas viu nele um talento que seus próprios filhos não tinham: a vocação política.
De volta ao poder, agora pelos braços do povo, Getúlio se tornou novamente presidente da nação brasileira. A partir daquele momento, a carreira política do deputado estadual João Goulart alçou voo nacional. Secretário do Interior e Justiça do Rio Grande do Sul, já eleito deputado federal, chegou a ministro do Trabalho. No ministério, Jango se revelou o grande executor do trabalhismo varguista. Sua devoção no atendimento às demandas provenientes das classes populares confundiu as elites econômicas do país. Elites, aliás, a que Jango pertencia. Era um paradoxo.
João Goulart, ministro do Trabalho dos tempos democráticos do getulismo, teve de lidar com um Brasil bastante mobilizado para as lutas políticas. Sua extrema preocupação com os mais desamparados não combinava com o homem rico, oriundo da nata da sociedade rio-grandense. Não se tratava de estratégia política. Jango era mesmo assim: um homem simples e bondoso.
A respeito do modo Jango de ser, conta-nos Jorge Ferreira que “a atuação de Goulart no ministério chocou amplos setores conservadores da sociedade brasileira — civis e militares. Afinal, um homem nascido entre as elites sociais, rico empresário rural, exercendo um cargo ministerial estava recebendo, em seu próprio gabinete, trabalhadores, sindicalistas e pessoas comuns, a maioria de origem social humilde”. Chegava ao ponto de tirar dinheiro da carteira quando antevia impedimentos burocráticos para resolver problemas dos desfavorecidos que diretamente o procuravam. E mais que isso: era comum encontrar o ministro do Trabalho de Getúlio nos subúrbios cariocas participando de festas. “Muito comuns, por exemplo, eram convites para jantar em embaixadas”. Jango sempre mandava representante, pois preferia “estar com sindicalistas e pessoas do povo”. João Pinheiro Neto, amigo próximo e auxiliar, atesta a maneira leve e educada de ser do ex-presidente. Para ele, “Jango era um homem extremamente educado, incapaz de indelicadezas e de exercitar qualquer espécie de autoritarismo. Jamais se referia negativamente a quem quer que fosse, mesmo aos seus desafetos mais exaltados e mais intolerantes”. Depoimento similar é o de Wilson Fadul, outro auxiliar próximo: “Ele não fazia reclamações de ninguém. Nunca ouvi dele uma palavra grosseira em relação aos inimigos, mesmo no exílio. Tratava-se de uma pessoa extremamente bem-educada”.
Era comum também encontrá-lo na companhia das mais bonitas e desejadas vedetes da época de ouro da noite carioca: as de Carlos Machado. “Solteiro, galanteador, conhecia as melhores casas noturnas.” Foi um eterno namorador, mesmo depois de se casar tardiamente com a bela Maria Tereza Goulart, oriunda da classe média de sua cidade natal, São Borja. Era um pai amoroso, um marido extremamente apaixonado pela esposa, mesmo dando suas conhecidas “puladas de cerca”.
O marido de dona Maria Tereza tinha uma grande qualidade, cada vez mais incomum nos dias de hoje, quando se trata de homens públicos: era incorruptível. Quanto a essa qualidade pessoal de Jango, Jorge Ferreira reproduz em seus escritos o testemunho do mais próximo assessor, Hugo de Faria. Este entrava no gabinete do então ministro sem bater à porta. Numa dessas entradas testemunhou uma conversa de Jango com outro nome de expressão da época, o ministro da Fazenda Osvaldo Aranha, a respeito de um estranho pedido, “na conversa, o ministro do trabalho pedia cinco milhões de cruzeiros”. De imediato, pensou: “mais uma negociata, que horrível”. Logo percebeu que estava enganado: não se tratava de corrupção, pois naquele momento Jango desgastava seu prestígio político com o ministro da Fazenda em torno de uma causa nobre, típica do trabalhismo getulista: obter garantias para os trabalhadores sem emprego. A partir daquele momento, o austero Hugo de Faria passou a admirar o herdeiro político de Getúlio Vargas e a e crer na sua sinceridade de propósitos.
O suicídio de Vargas
Se existe um acontecimento que causou profundos danos emocionais a Jango foi o suicídio de Getúlio Vargas. Goulart perdeu não só o seu mentor político, mas o homem que amava como se ama a um pai. Era um amor recíproco. Até no último momento de sua vida a confiança da velha raposa dos pampas em Jango era irrestrita. A ponto de Getúlio, antes do suicídio, entregar-lhe um documento importante, que só seria aberto depois da sua morte: sua carta testamento. No sepultamento, veio a emoção: Jango chorou. Chorou abalado não só pelo conteúdo da carta, mas pelo discurso que tinha acabado de fazer à beira do túmulo. “Até a volta, doutor Getúlio Vargas. Vai como foram os grandes homens. Tu que soubeste morrer, levas neste momento o abraço do povo brasileiro, levas o abraço dos humildes, levas o abraço daqueles que de mãos calejadas e honradas constroem a grandeza da nossa pátria. Nós estamos contigo e contigo está o povo brasileiro.”
Assim se despediu do seu mentor político e assim se manteve fiel ao ideário trabalhista. O suicídio de Getúlio Vargas manteve seu herdeiro político mais vivo que nunca. Candidato a vice-presidente na chapa de Juscelino Kubitschek — aliança PSD e PTB — Jango viu atestada sua imensa popularidade. Teve mais votos que o presidente eleito, fato que, a princípio, não deixou de provocar certo ciúme em Juscelino. Ciúme apagado pelo tempo, pois Jango e Juscelino se tornaram não só aliados políticos, mas amigos íntimos. Foram incontáveis as vezes que decisões importantes para o país foram tomadas na cozinha do apartamento de Jango, no Rio de Janeiro. Em todas elas, o ritual era o mesmo: Jango diante de um de seus passatempos preferidos — cozinhar. Cozinhar tendo como convidado frequente aquele mineiro lá de Diamantina que, por acaso, era o presidente da República.
Findo o governo JK, a presença de Jango — sedimentada por sua imensa popularidade e pelo legado getulista — continuou mais viva que nunca no primeiro time da política nacional. Novamente candidato a vice-presidente, agora na chapa de Jânio Quadros — a chapa Jan-Jango — ganhou as eleições. Iniciava-se assim o governo que não terminou: o de Jânio Quadros que, como todos sabem, logo renunciou. Atribui-se essa renuncia a um errôneo cálculo político de Jânio, que tinha a intenção de voltar nos braços do povo.
Jango estava numa viagem à China no momento da renúncia de Jânio Quadros. Aliás, uma viagem bem-sucedida, ante a amabilidade do líder Mao Tsé-Tung e do discurso que fez para mais de 10 mil chineses.
Viagem à China, reforma agrária, incentivo à organização sindical, politização das Forças Armadas. Certamente, esses foram ingredientes que influenciaram para que parcelas dos militares se insurgissem contra aquilo que não queriam: João Goulart presidente do Brasil.
Eis aí o estopim para o desencadeamento de um importante movimento deflagrado pelos então governadores do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (cunhado de Jango) e Mauro Borges Teixeira, de Goiás: a Cadeia da Legalidade, que possibilitou a posse do vice-presidente e a saída negociada para uma breve experiência de mudança no sistema político do país: o parlamentarismo.
A cadeia da legalidade
Estando João Goulart em missão oficial na China — viagem maquiavelicamente orquestrada por Jânio Quadros, com o intuito de reforçar a imagem de ligação de Jango aos comunistas —, o país ficou sem comando político. Parcela dos militares resistia à posse de Jango. Ante a incerteza da posse, nascia assim o movimento que ficou conhecido na história brasileira como Cadeia da Legalidade, comandada pelo então governador Leonel Brizola, com participação ativa do chefe do Executivo goiano, Mauro Borges Teixeira.
Por essa razão, os transmissores da rádio gaúcha Guaíba foram transferidos para a sede do governo gaúcho, no Palácio Piratini. De lá, Brizola comandou a cadeia radiofônica composta por 150 rádios do Rio Grande do Sul, que transmitiam para o Brasil e para o exterior, em inglês, espanhol e alemão, pronunciamentos que exaltavam a importância de se manter a ordem legal do país. E essa legalidade só poderia ser mantida com a posse do vice-presidente, que se encontrava no exterior.
Quanto à importância desse movimento, Jorge Ferreira nos relata em seus escritos que “a Cadeia da Legalidade foi de fundamental importância para o movimento, ao difundir mensagens de diversas entidades políticas e grupos sociais na defesa da ordem democrática”. E acrescenta: “Angariou a simpatia da opinião pública internacional. Nos microfones, Leonel Brizola desacatava os movimentos militares, desmoralizando-os publicamente”.
Avaliando a importância desse movimento na lupa do tempo, creio ser possível compreender a razão de tanta resistência dos militares contra o cunhado de Jango. Daí vem a dúvida: não seria a cassação de Brizola e a perda da histórica legenda trabalhista, entregue ao fisiológico PTB da então deputada Ivete Vargas uma retaliação à atuação de Brizola nos tempos da Cadeia da Legalidade? Não seria o crescimento do Partido dos Trabalhadores a aposta numa oposição mais confiável que a comandada pelo PDT de Brizola? Infelizmente, o velho bruxo Golbery do Couto, grande estrategista e homem de inegável inteligência, não está mais entre nós para dirimir essas dúvidas.
O parlamentarismo no Brasil
A cena não poderia ser mais apropriada: uma multidão aguardava na sede do Palácio Piratini, em Porto Alegre, a volta de Jango para tomar posse como legítimo presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Porto Alegre resistira, o Brasil resistira, Brasília o esperava.
Todos o queriam. Todos se sacrificaram a ponto de exporem suas vidas, ante a divisão das Forças Armadas, na iminência de um enfrentamento bélico. Todos estavam ali esperando pelo seu discurso, que simbolizaria uma tomada de posição em prol do presidencialismo. Jango aparecia na sacada do palácio e acenava, mas nada falava. A cena se repetia: a multidão gritava, e ele continuava mudo. Impaciente, o povo, desconhecendo o que ocorrera nos bastidores para tal atitude, começou a gritar: Covarde! Covarde! “Relatos afirmam que várias mulheres tiraram as roupas íntimas e as ofertaram a Jango. Para um homem como ele, era humilhante.”
Jango pagou o preço para evitar a luta armada no Brasil: teve de negociar, do Uruguai — tendo Tancredo Neves como interlocutor —, três pontos de que o Exército não abria mão: o silêncio, a não ida do cunhado a sua posse e a mudança do presidencialismo para o sistema parlamentarista. A decisão de Jango evitou o sacrifício da vida de milhares de brasileiros. Julgue o leitor por si mesmo a justificativa dele ao cunhado: “Olha Brizola, se nós podemos ter um entendimento e chegar ao governo com alguns poderes diminuídos, o importante é que cheguemos lá e evitemos o derramamento de sangue. Depois é depois. Nós evitamos o conflito, porque, em uma guerra civil, conflitos dessa dimensão, a gente sabe como entra, mas depois não sabe nunca como sai”.
Do presidencialismo à queda
A experiência parlamentarista mostrou ser inadequada, dividia o poder entre o primeiro-ministro e o presidente. E um presidente fraco carecia de autoridade para implementar no país a principal bandeira do trabalhismo: as reformas de base, principalmente a maior delas — a agrária.
Com a volta do sistema presidencialista, Jango, fiel ao seu estilo de hábil negociador, tentava, sem reprimir, frenar o avanço avassalador que tiveram as esquerdas em seu governo. Crescia a pressão dos sindicatos, das ligas camponesas — principalmente a comandada por Francisco Julião — e crescia algo que inquietava cada vez mais os militares: o partido comunista. Seu estilo negociador era visto pelos adversários como fraqueza. E Jango não era fraco, nem tampouco comunista. Quanto a isso, ele mesmo diz: “Não sou nem nunca fui comunista. Minha política foi eminentemente nacionalista, e foram os monopólios nacionais e estrangeiros que fomentaram a revolta, preocupados com as leis de nacionalização do petróleo e da reforma agrária. Além disso, minha política beneficiou uma enorme massa de deserdados do povo brasileiro”.
Uma série de episódios influenciaram para a queda do presidente João Goulart. Todos esses acontecimentos sinalizavam a clara opção política de Jango no sentido de marchar com as esquerdas em torno de sua principal bandeira: as reformas de base.
Não resta dúvida de que o mais significativo gesto nesse sentido ocorreu no dia 13 de março de 1964, quando Jango tomou uma importante decisão pessoal: ir ao comício da Central do Brasil. Para as esquerdas, a ida do presidente a esse comício representou explicito apoio às reformas sociais em gestação no país, tendo a reforma agrária como a principal delas. Entretanto, para a direita, o fato serviu de alerta. Alerta em torno do que há certo tempo já se articulava: o rompimento do jogo democrático.
Embora esse acontecimento tenha sido o mais significativo, outros ajudaram a sedimentar a revolução (ou golpe) de 1964. Por exemplo, o apoio do governo aos escalões inferiores das Forças Armadas. Esse apoio era visto pela cúpula militar como quebra de dois princípios invioláveis para a caserna: da hierarquia e da disciplina. As constantes mudanças nos ministérios militares, o apoio a associações de sargentos, soldados e cabos era malvista pelos escalões superiores das três armas. Nesse sentido, sua ida à festa do Automóvel Clube, na posse dos sargentos, e o apoio à rebelião dos marinheiros foram sedimentando cada vez mais a ira de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. A revolução (ou golpe) foi o resultado de um complexo processo que uniu toda a direita da política brasileira a um parceiro muito temeroso do avanço do comunismo: os Estados Unidos. Mais uma vez, a história se repetia: Jango quis evitar o derramamento de sangue. Antevia uma sangrenta guerra civil. O espírito guerreiro de Brizola insistia na resistência armada. O espírito conciliador de Jango preferiu o exílio. Caiu de pé. Disse ao cunhado, ao decidir-se pela retirada: “Eu verifico o seguinte: que a minha permanência no governo terá de ser à custa de derramamento de sangue em defesa do meu mandato. Seguirei para algum lugar do país, onde aguardarei os acontecimentos. Não renunciarei, entretanto. Mande tomar as providências para me dirigir ao aeroporto”. Ao ouvir isso Brizola, retrucou: “Tu nunca mais vais voltar para o Brasil deste jeito”. Não poderiam ser mais proféticas as palavras do então governador do Rio Grande do Sul. Jango nunca mais voltou.
O exílio sem volta
Banzo, o eterno desejo da volta à terra natal. Certamente foi esse o sentimento que mais corroeu o ex-presidente no seu longo exílio sem volta. Ao contrário do que se especulou, há fortes evidências de que Jango não morreu envenenado. Seu biógrafo vai, ao longo de seus escritos, mostrando os constantes sintomas que sinalizavam problemas cardíacos. Não gostava de ir a médicos. Aliado a isso, cultivava maus hábitos para uma pessoa com problemas cardíacos. Bom de garfo, amante de comidas gordurosas, apreciador de uísque, fumante inveterado. Fatores que contribuíram para o seu falecimento aos 57 anos.
Logo no seu primeiro ano de exílio, envelheceu consideravelmente. Embora fosse riquíssimo no Brasil, Jango chegou com poucos recursos no Uruguai. Sua vida e sua fortuna foram vasculhadas e nada que o desabonasse foi encontrado. A origem desta era absolutamente lícita. Ao perceberem isso, os militares deixaram de implicar com seus bens.
Com um faro inato para perceber oportunidades, tudo em que Jango punha a mão gerava dinheiro. No intervalo em que teve a vida vasculhada, com poucos recursos disponíveis, logo voltou a ser um homem rico no Uruguai. E mais rico ainda ficou com a liberação de seus negócios no Brasil, comandados por gente de sua confiança. Chegou a ser um dos maiores investidores na economia uruguaia.
Não obstante, Jango era um homem bastante generoso. Recebia várias cartas com pedidos de ajuda e nunca se negava a auxiliar os que precisavam. Mais de uma centena de pessoas dependia diretamente do auxílio do herdeiro do getulismo.
No exílio, teve de conviver com as eternas picuinhas do governo brasileiro: recusa de concessão de passaporte brasileiro, vigilância constante do Serviço Nacional de Informações, pedidos negados de regresso ao país e até dificuldades, depois de morto, para que fosse enterrado em São Borja, sua terra natal.
Com o endurecimento do regime uruguaio, recebeu convite do presidente Juan Domingo Perón para migrar para a Argentina. Viveu seus últimos anos em Buenos Aires. Perón sabia de suas habilidades e, por desfrutar da amizade do chefe do governo argentino, Jango acabou se tornando um auxiliar próximo. No entanto, o cunhado de Brizola carregava consigo a tristeza do banzo. Infelizmente, a previsão de Leonel estava certa: Jango não conseguiu em vida retornar à terra que tanto amava.
O julgamento da história
A política nos ensina a enxergar o propósito de suas ações. A boa ação política visa sempre o bem comum; a má ação, o bem próprio. Nada mais verdadeiro, na política rasteira, de que “os fins justificam os meios”.
Se existe um político brasileiro que fez questão de não se valer dessa máxima — e até a combateu —, esse homem público se chama João Belchior Goulart. A imagem de fraqueza que lhe foi atribuída pelos adversários e por parcela das Forças Armadas mostrou ser inverídica. Coisas assim, só o tempo revela.
Não tenham dúvidas de que episódios como a opção pelo exílio e pelo parlamentarismo evitaram sangrentas guerras civis nos momentos de maior agitação e mobilização do país. Os meios, lícitos, determinaram os fins conquistados. Alie-se a isso a habilidade de Jango para negociar em momentos de grande tensão. Seu temperamento ajudava. Era um homem calmo, educado e muito tratável.
Creio ser oportuno, no momento em que encerro este ensaio, resgatar a imagem da infância de Getúlio Vargas, relatada na seminal biografia de autoria do jornalista Lira Neto. Getúlio recorda que, nos momentos de ira paterna, se escondia no alto de um umbuzeiro e de lá só descia quando a raiva do pai, ante o seu “sumiço”, se transformasse em preocupação.
O líder político que mais tempo mandou no Brasil disse que também agiu assim nos momentos de grande tensão que teve de enfrentar. Só “descia do umbuzeiro” na hora certa, no momento adequado. Agiu assim na revolução de 1930, pois só abraçou a causa de fato no momento em que a situação estava delineada. Só nesse momento tomava uma decisão. Isso, em política, se chama astúcia.
Jango não mostrou ter a mesma astúcia do padrinho. Sua decisão de seguir com os movimentos de esquerda foi tomada quando a situação ainda não estava delineada. Desceu do umbuzeiro na hora errada. Pagou um alto preço por isso. 1964 e os duros anos da ditadura nos mostraram uma nova realidade, sem as liberdades democráticas. Entretanto, João Goulart foi um político sincero e obstinado. Tinha um projeto para o Brasil, projeto esse totalmente inserido no nacionalismo getulista. Tem seu lugar na história política do país. Vem de uma época que já não existe mais. Uma época em que o exercício da atividade política era sinal de grandeza.
Salatiel Pedrosa Soares Correia é engenheiro, bacharel e mestre em Planejamento. É autor, entre outros , do livro “Goiás, a Globalização e o Futuro”.
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