O salto para o continente novo da democracia política - definitivamente
considerada como conquista dos "de baixo", e não instância
"burguesa" que mascara ou domestica o conflito de classes - e a
consequente queima de navios ainda não foram dados, por esta ou aquela razão.
Estamos longe do que um pensador como Giuseppe Vacca chamou de requisito da
moderna convivência civil, a saber: a recíproca legitimação dos adversários no
contexto do Estado Democrático de Direito. Tal legitimação dificultaria
discursos "refundacionais" que fazem datar do surgimento de um
partido, e não da Carta de 1988, o novo início da História do Brasil e remetem
os adversários ao limbo da representação dos prévios 500 anos de predação da
Pátria e do seu povo.
Se de esquerda falamos - e se é um tronco da esquerda que desde 2002 mantém
firmemente nas mãos o poder central, com exceção do período de turbulências da
CPI dos Correios -, cabe revirar mais fundo o baú de ossos dessa família
política, em busca dos primeiros e ainda hesitantes sinais da sua
ocidentalização. Um sinal corajoso, por exemplo, veio de um notável documento
do PCB, antigo de quase seis décadas. Os especialistas em remexer naquele baú
sabem que se trata da Declaração de Março de 1958, da qual dois signatários,
Armênio Guedes e Jacob Gorender, são nossos contemporâneos e representam, cada
qual a seu modo, interpretações distintas do documento. E os especialistas
sabem também que ali começou um difícil caminho de revisão do nexo entre
democracia política e socialismo, ainda longe de chegar a um ponto maduro.
Nos termos da esquerda, havia ali, com instrumentos conceituais muitas vezes
datados, uma dialética tensa entre "questão nacional" e "questão
democrática". A primeira, embebida de retórica anti-imperialista (esse
mesmo anti-imperialismo que ainda hoje faz estragos, ao levar parte da
esquerda, não raramente, a simpatizar com "ridículos tiranos" ou
autocratas eleitoralmente competitivos), poderia, no entanto, obedecer já na
época a uma concepção não regressiva: tratava-se, afinal, de deslocar para
dentro do País o eixo das decisões fundamentais, sem prejuízo dos processos de internacionalização
da economia já fortemente operantes.
A questão democrática era ainda mais complicada, como não podia deixar de
ser para uma esquerda que desde o leninismo se acostumara a dissociar
socialismo e democracia. Aparecia aquela questão, no seu aspecto
"substantivo", como incorporação da massa rural à vida moderna, seja
pela difusão do sindicalismo e dos direitos a ele associados, seja pela reforma
agrária à custa do latifúndio improdutivo. E todo esse movimento ocorria no
quadro da legalidade de 1946 - uma legalidade formal, que, no entanto, não
convinha subestimar e significava um acréscimo decisivo na qualidade da
democracia: no modo de entendê-la e de praticá-la.
O avanço da questão formal da democracia na cultura comunista se daria,
paradoxalmente, nas duras condições da nova clandestinidade imposta em 1964. Um
avanço que também decorria, entre outras coisas, da verificação dos resultados
inesperados da modernização conservadora, como a diversificação da sociedade
civil e a imposição da centralidade da política democrática para a derrota do
regime militar.
Não é certo, contudo, que esse novo patamar da "questão
democrática"se tenha generalizado na esquerda. Seu partido hoje
hegemônico, de certa forma, esteve alheio a tais desdobramentos desde as origens.
Como sabemos, não importava muito a política de "frente ampla" aos
olhos de jovens quadros sindicais, para quem a CLT é que era "o AI-5 dos
trabalhadores". Frase forte, emblemática, que se converteria numa política
em que o dado bruto do social - das corporações e seus interesses - seria
sistematicamente confrontado com o político e suas instituições. Estas, de
resto, como o Parlamento, seriam apenas o palco por excelência de três ou
quatro centenas de "picaretas", dispostos, como numa feira livre, em
tabuleiros de compra e venda.
Se este argumento fizer sentido, voltamos a viver outro momento decisivo na
história da esquerda. Mais uma vez se requer a atualização da sua cultura ou, para
utilizar um termo em circulação, a própria refundação dessa mesma cultura, de
seus procedimentos e de suas categorias. A independência dos Poderes, a
autonomia do Ministério Público, a livre dialética parlamentar, bem como uma
sociedade civil desembaraçada de tutela estatal e de toda mitologia
salvacionista são traços inelimináveis de qualquer vida associada sob o signo
da liberdade.
A esquerda não deveria "sofrer" a democracia, como se fosse
concessão penosa e temporária aos "inimigos do povo", mas promovê-la,
ao lado de outras tendências, inclusive moderadas e conservadoras, como
conquista de civilização. Ou, ainda, deveria entender a democracia não como
caminho para o socialismo, mas o próprio caminho do socialismo, se formos
capazes de retirar deste último conceito a aura de autoritarismo que
persistentemente o ronda.
Luiz Sérgio Henriques, tradutor, ensaísta, é um , dos organizadores das obras
de Gramsci no Brasil e editor do site Gramsci e o Brasil e vice presidente da
Fundação Astrojildo Pereira.
Fonte: O Estado de S. Paulo (31/10/12)
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