sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Renovação (com sólida memória) ou irrelevância (Sergio Fausto)

Em artigo publicado neste espaço em 26/11, José Augusto G. de Albuquerque e Elizabeth Balbachevsky puseram com precisão o dedo nas feridas que têm levado à persistente perda de substância e vitalidade do PSDB.
O partido nasceu social-democrata não apenas no nome, mas na convicção de que faltavam políticas universais que incorporassem os cidadãos brasileiros ao universo dos direitos sociais previstos na Constituição de 1988; nasceu também crítico ao estatismo e ao protecionismo do Estado autoritário, exacerbados no período Geisel, que deixavam a economia encalhada à margem da nova dinâmica da economia global; nasceu igualmente antagônico à tradição patrimonialista e clientelista brasileira, que nos primeiros anos da democracia redobrou suas forças.
No governo FHC esse ideário ganhou expressão concreta. Venceu-se a crônica e grave enfermidade da hiperinflação, sem o que todo direito social previsto em lei não passaria de letra morta. Romperam-se monopólios estatais que estrangulavam o investimento em áreas-chave da economia brasileira e se estabeleceram regimes de competição regulada. Os resultados foram não menos que extraordinários nas áreas de telecomunicações e petróleo e gás. O acesso à educação fundamental generalizou-se, com o Fundef, estruturou-se o Sistema Único de Saúde e os programas de saúde da família tornaram-se realidade. O patrimonialismo e o clientelismo encontram freios institucionais na criação de agências reguladoras, na extinção da Legião Brasileira de Assistência, na implantação dos programas de transferência condicionada de renda, origem do Bolsa-Família.
Qual o sentido político de recordar agora esse passado aparentemente distante? Em primeiro lugar, porque nenhuma organização, assim como nenhum indivíduo, pode saber aonde vai se não sabe de onde veio. Nesse percurso o PSDB perdeu a identidade e se não a recuperar corre o risco de perder a relevância ante novos competidores pelo mesmo espaço político. Em segundo lugar, porque a matriz formada nos governos de Fernando Henrique Cardoso é a base a partir da qual o PSDB pode despregar estigmas que lhe foram atribuídos pela máquina de propaganda petista e lançar um programa consistente de oposição ao modelo de governo e poder que aí está. Essa matriz se formou pela integração nem sempre simples entre o melhor do pensamento e da formulação de políticas públicas produzidos nos anos 80/90. Originou-se ali um híbrido fértil com componentes liberais e social-democratas, devidamente "tropicalizados".
O estigma de "neoliberal" é produto de doses maciças de dogmatismo ideológico, oportunismo político e/ou desonestidade intelectual. Não corresponde à realidade de um governo que fortaleceu a presença estatal e aumentou o gasto público no ensino fundamental, na saúde, na assistência social, além de conduzir um amplo programa de reforma agrária. O mesmo se pode dizer em relação às privatizações e concessões de obras e serviços públicos. Onde estaria a "sanha privatista" de um governo que manteve a Petrobrás sob controle estatal, submetendo-a, isso sim, a um regime de competição regulada, e fortalecendo-a enquanto verdadeira companhia pública?
Os governos de Lula e Dilma têm méritos. O maior deles é o terem aproveitado e, em alguns casos, aprimorado e expandido instituições e programas criados nos governos anteriores, em especial nos de Fernando Henrique Cardoso, para promover a ascensão de milhões de brasileiros a patamares mais elevados de renda e consumo e a horizontes mais largos de realização pessoal e familiar. Houve também inovação nessa área, a exemplo do ProUni. Aplausos. Mas essas conquistas não estão consolidadas e tampouco são propriedade dos governos petistas. Além disso, não teriam sido possíveis sem as condições internacionais extraordinariamente favoráveis que prevaleceram até 2008 e mesmo após a crise internacional. Houve alguma virtù e muita fortuna.
Embora os rendimentos políticos da acelerada mobilidade social dos últimos anos continuem a fluir para o governo, os fatores econômicos que a impulsionaram já esbarram em limites importantes. Ante os riscos de perder seu imenso capital político e as dificuldades de buscar novos caminhos, não raro por dogmatismo ideológico e/ou ineficiência operacional, o atual governo insiste em medidas circunstanciais de estímulo ao consumo, sem pesar seus efeitos colaterais negativos, que vão do fiscal ao ambiental e podem vir a ser de natureza inflacionária também.
Enredado em suas próprias amarras, o governo debate-se num ativismo estéril e perigoso, como se vê na forma atabalhoada e arbitrária como articulou um objetivo meritório e pontual - a redução do custo da energia - com a questão muito mais ampla do marco regulatório do setor elétrico. Nada se compara, porém, ao desastre que se está produzindo no setor de petróleo e gás por força da irresponsável e ideológica mudança do regime regulatório para a exploração do pré-sal. Sobre o tema recomendo a leitura do excelente artigo de Adriano Pires na edição de 26/11 (B2) deste jornal.
Um programa de oposição não pode deixar de mostrar o vínculo profundo que existe entre a incapacidade operacional do governo e a infestação do aparelho do Estado por gentes sem qualificação técnica e sem independência profissional para resguardar o interesse público. O mais novo e recente escândalo, desta vez envolvendo a ex-chefe de gabinete da Presidência da República em São Paulo, apaniguada do ex-presidente Lula, com poderes para indicar diretores de agências reguladoras e dispor de passaporte diplomático, revela a que ponto chegamos!
O País clama por uma oposição à altura dos desafios e oportunidades que o quadro político apresenta. Ou o PSDB se ergue ou se condena à irrelevância. É agora ou jamais.
Sergio Fausto, Diretor Executivo do IFHC, é membro do GACINT-USP.
Fonte: O Estado de S.Paulo (29/11/12)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Um futuro para o PSDB? (José Augusto Guilhon Albuquerque e Elizabeth Balbachevsky)

Na noite das eleições municipais, a mensagem de uma jovem universitária chegou com lágrimas na voz: "A oposição vendeu São Paulo para o governo". Tão desafiadora que merece uma resposta igualmente franca.

A derrota do PSDB na cidade onde nasceu, e no Estado que domina há 20 anos, se deve exclusivamente ao próprio partido. Não pode ser atribuída a intuições geniais do adversário, pois o candidato tucano - um dos mais expressivos nomes do partido - obteve menos de 30% do eleitorado contra um mar de 33% de votos não válidos.

É triste admitir, mas José Serra não precisou de adversários para ser derrotado.

O PSDB foi vítima de seu próprio sucesso. Nascido como uma federação de dissidências regionais do PMDB e do antigo PFL, logrou conquistar o eleitorado de centro graças ao gênio político de Franco Montoro, que lhe deu voz e horizonte político, reunindo um leque admirável de lideranças regionais com experiência e capacidade governativa.

Com a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e, sobretudo, com sua reeleição, em 1998, o PSDB cresceu demais e desordenadamente, mas não o bastante para garantir uma maioria governativa. As vacas gordas transmitiram doenças crônicas: o esgarçamento das bandeiras, o caciquismo e uma crise de identidade que o impede de entender o seu próprio eleitorado e definir rumos coerentes.

Fernando Henrique, o líder de maior sucesso eleitoral e político na história tucana, jamais foi unanimidade no próprio partido. Seções inteiras do PSDB repudiaram o Plano Real, que não teria passado sem o apoio do PFL. Seções inteiras apoiaram Lula nas eleições de 1994. Em 1998, além de Lula, também apoiaram outro candidato. Lideranças expressivas renegam até hoje a maior fonte da popularidade e da base eleitoral do partido - o reconhecimento da estabilidade econômica e da robustez financeira conquistadas sob sua liderança. Alinhando-se à visão míope do PT, as candidaturas tucanas à Presidência no pós-FHC esmeraram-se em tratar seu legado como a vergonha da família - abertura da economia, privatizações, responsabilidade fiscal, reforma bancária, moeda forte -, permitindo que Lula e o PT fossem os únicos beneficiários do sucesso dessas políticas.

A perda da identidade abre as portas para o caciquismo: setores inteiros do PSDB preferem perder para o adversário a ter de dividir a vitória com o rival no próprio partido. Os caciques regionais bloqueiam a ascensão de futuros rivais nas capitais, tática que explica como lideranças fortes em 30 anos de domínio político - se contarmos desde Mário Covas como prefeito de São Paulo - só conseguiram emplacar um candidato em condições realmente competitivas em 2004, com Serra.

Sua quintessência é a coalizão de vetos, em vigor desde a sucessão de FHC em 2002. Diferentes lideranças, por diferentes razões, embora minoritárias, reúnem recursos de resistência suficientes para frustrar a eleição do eventualmente consagrado pela maioria do partido.

Foi assim em 2002 com Serra, que chegou a ser derrotado em Estados onde a coalizão tucana obteve vitória incontestável. Foi assim em 2006 com Geraldo Alckmin, que chegou ao segundo turno para ser hostilizado publicamente por seu próprio partido. Foi assim em 2010 com Serra, que, em que pesem seus erros de percurso, foi indiscutivelmente hostilizado por seus próprios pares antes, durante e depois da campanha.

O esgarçamento das bandeiras resulta diretamente da extensão das coalizões tucanas, para além do útil e do desejável. Para dar conta desse esgarçamento basta deixar uma pergunta no ar: quem sabe quais as posições da oposição tucana sobre a matriz energética brasileira desde o ministério Dilma Rousseff; sobre o atual modelo de crescimento; sobre a missão do Banco Central, sua tolerância com a inflação e o gasto público; sobre o desmantelamento da Petrobrás e a paralisia da política de exploração do pré-sal; sobre a política federal para enfrentar as mudanças climáticas; sobre o nacionalismo comercial e cambial; sobre o "controle social" da liberdade de imprensa?

Vivemos uma década de despolitização graças à capacidade do ex-presidente Lula para manipular corações e mentes. Os partidos, as ideias, os anseios de parte significativa do eleitorado foram ofuscados pelo culto à personalidade e pelo maniqueísmo do "nós contra eles".

Em artigo publicado em Opinião Pública (vol. 13, n.º 2, 2007), Elizabeth Balbachevsky e Denilde Holzhacker mostraram que o eleitor de Lula em 2006 diferiu significativamente do seu eleitor em 2002. Naquela eleição o voto em Lula não foi determinado, como nas eleições anteriores, pela identidade do eleitor com o PT nem por sua inclinação ideológica. Variáveis demográficas, como o nível de renda e de escolaridade, foram mais importantes na propensão para votar em Lula. Uma controvérsia foi criada sobre a emergência de uma nova realidade social e política, o "lulismo", capaz de alterar definitivamente a matriz do sistema partidário nacional.

As últimas eleições municipais, entretanto, evidenciam a perda de fôlego do personalismo. Lula considerou questão de honra bater seus adversários em dúzia e meia de cidades. Venceu em pouco mais de meia dúzia. É visível, ademais, um realinhamento do voto nacional, com as administrações municipais concentradas novamente em três grandes partidos, um ao centro (PSDB), outro à direita (PMDB) e outro à esquerda (PT). Com isso os tucanos precisam tomar algum rumo, pois há dois partidos emergentes prontos para ocupar o seu lugar ao centro (PSB) e à direita (PSD).


* PROFESSOR TITULAR DA USP, É PESQUISADOR SÊNIOR DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA UNICAMP; PROFESSORA ASSOCIADA DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP, É VICE-COORDENADORA DO NUPPS/USP E MEMBRO DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA UNICAMP

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 26/11/2012.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

“João Goulart — Uma Biografia”


O presidente esquecido e resgatado pela história
“João Goulart — Uma Biografia” é uma poderosa contribuição à memória do país, ao materializar anos de pesquisa a respeito de um período pouco estudado da política brasileira: os anos Goulart, que culminaram com o golpe de 1964
João Goulart
Salatiel Soares Correia
Espacial para o Jornal Opção
31 de março de 1964. Dois homens poderosos travavam um diálogo decisivo, que mudaria os rumos do Brasil. Estava em jogo a normalidade democrática, no país sob a ameaça de avanço do comunismo. Militares, a classe trabalhadora, os sindicatos, as ligas camponesas, enfim, a sociedade brasileira vivia naquele momento um clima bastante tenso. Os Estados Unidos, do presidente Lyndon Johnson, estavam informados e pronto a agir e, caso necessário fosse, enviariam porta-aviões americanos para a costa brasileira. Não foi preciso, os militares brasileiros agiram.

Posto isso, reproduzamos o dialogo em questão:

— Pre­si­dente, o senhor é capaz de me pro­meter que vai se desligar dos comunistas e decretar medidas concretas a esse respeito?

— General, sou um homem político. Tenho compromisso com os partidos e não posso abandoná-los ante a pressão dos militares. Não posso também deixar de lado as forças populares que me apoiam.

— Então, presidente, nada podemos fazer. E isto é a opinião dos generais aqui presentes.
Ao escutar isso, fiel ao seu estilo, o presidente tentou negociar o que àquela altura mostrava ser um conflito inegociável.

— Por que o general não vem ao Rio, conferenciar comigo e com os demais comandantes do E­xército? Creio que arranjaremos as coisas.

— Não posso atender, presidente. Tenho compromissos com a linha de conduta que tracei para mim desde quando ministro da Guerra, contra o comunismo e em defesa do Exército, e não pos­so traí-la.

Estava deflagrado o estopim para revolução (ou golpe) de 1964. Calaram-se por mais de 20 anos as liberdades democráticas no país.

Os atores desse diálogo histórico por telefone, repleto de tensão, eram os dois mais poderosos homens do Brasil: de um lado, o presidente da República, João Belchior Goulart, mais conhecido por Jango; de outro, seu amigo, compadre e poderoso comandante do segundo Exército, general Amaury Kruel.

Quem estava com a razão? Difícil responder ante o calor dos acontecimentos. Eram, ambos, homens de caráter. O presidente estava sendo fiel às suas bases de apoio, centradas nas esquerdas e nos sindicatos; o general, caso não agisse, correria o risco de perder a legitimidade no comando das tropas.

É procurando retratar esse importante período histórico da nossa vida política que um brilhante historiador da Universidade Federal Fluminense, Jorge Ferreira, prestou uma enorme contribuição à memória política do país, ao materializar anos de pesquisa a respeito de um período pouco estudado e até certo ponto esquecido da política brasileira: os anos Goulart, que culminaram com a revolução (ou golpe) de 1964.

A obra se torna mais completa por incluir um período pouco conhecido da vida do ex-presidente João Goulart: os sofridos anos de exílio no Uruguai e na Argentina.

A obra é grandiosa pela posição do autor durante a gestação de seus escritos: procurou tão somente compreender e apontar os fatos, sem exercer qualquer espécie de paixão ante os acontecimentos. “João Goulart — Uma Biografia”, do professor Jorge Ferreira, é o mais completo relato da era Jango.
Herdeiro do getulismo

Oriundo de uma das famílias mais ricas dos pampas gaúchos, João Goulart herdou uma sólida fortuna dos pais. Dotado de um faro inegável para os negócios, Jango era, como ele mesmo se definia, um estancieiro. Multiplicou seu patrimônio ao ponto de se tornar o maior pecuarista do Rio Grande do Sul.

Foi esse Jango, amigo dos filhos de Getúlio Vargas, que conviveu com a velha raposa no seu exílio em São Borja. No momento do maior ostracismo político, ele se tornou o amigo de todas as horas. Vargas viu nele um talento que seus próprios filhos não tinham: a vocação política.

De volta ao poder, agora pelos braços do povo, Getúlio se tornou novamente presidente da nação brasileira. A partir daquele momento, a carreira política do deputado estadual João Goulart alçou voo nacional. Secretário do Interior e Justiça do Rio Grande do Sul, já eleito deputado federal, chegou a ministro do Trabalho. No ministério, Jango se revelou o grande executor do trabalhismo varguista. Sua devoção no atendimento às demandas provenientes das classes populares confundiu as elites econômicas do país. Elites, aliás, a que Jango pertencia.  Era um paradoxo.

João Goulart, ministro do Tra­balho dos tempos democráticos do getulismo, teve de lidar com um Brasil bastante mobilizado para as lutas políticas. Sua extrema preocupação com os mais desamparados não combinava com o homem rico, oriundo da nata da sociedade rio-grandense. Não se tratava de estratégia política. Jango era mesmo assim: um homem simples e bondoso.

A respeito do modo Jango de ser, conta-nos Jorge Ferreira que “a atuação de Goulart no ministério chocou amplos setores conservadores da sociedade brasileira — civis e militares. Afinal, um homem nascido entre as elites sociais, rico empresário rural, exercendo um cargo ministerial estava recebendo, em seu próprio gabinete, trabalhadores, sindicalistas e pessoas comuns, a maioria de origem social humilde”. Chegava ao ponto de tirar dinheiro da carteira quando antevia impedimentos burocráticos para resolver problemas dos desfavorecidos que diretamente o procuravam. E mais que isso: era comum encontrar o ministro do Trabalho de Getúlio nos subúrbios cariocas participando de festas. “Muito comuns, por exemplo, eram convites para jantar em embaixadas”. Jango sempre mandava representante, pois preferia “estar com sindicalistas e pessoas do povo”. João Pinheiro Neto, amigo próximo e auxiliar, atesta a maneira leve e educada de ser do ex-presidente. Para ele, “Jango era um homem extremamente educado, incapaz de indelicadezas e de exercitar qualquer espécie de autoritarismo. Jamais se referia negativamente a quem quer que fosse, mesmo aos seus desafetos mais exaltados e mais intolerantes”. Depoimento similar é o de Wilson Fadul, outro auxiliar próximo: “Ele não fazia reclamações de ninguém. Nunca ouvi dele uma palavra grosseira em relação aos inimigos, mesmo no exílio. Tratava-se de uma pessoa extremamente bem-educada”.

Era comum também encontrá-lo na companhia das mais bonitas e desejadas vedetes da época de ouro da noite carioca: as de Carlos Machado. “Solteiro, galanteador, conhecia as melhores casas noturnas.” Foi um eterno namorador, mesmo depois de se casar tardiamente com a bela Maria Tereza Goulart, oriunda da classe média de sua cidade natal, São Borja. Era um pai amoroso, um marido extremamente apaixonado pela esposa, mesmo dando suas conhecidas “puladas de cerca”.

O marido de dona Maria Tereza tinha uma grande qualidade, cada vez mais incomum nos dias de hoje, quando se trata de homens públicos: era incorruptível. Quanto a essa qualidade pessoal de Jango, Jorge Ferreira reproduz em seus escritos o testemunho do mais próximo assessor, Hugo de Faria. Este entrava no gabinete do então ministro sem bater à porta. Numa dessas entradas testemunhou uma conversa de Jango com outro nome de expressão da época, o ministro da Fazenda Osvaldo Aranha, a respeito de um estranho pedido, “na conversa, o ministro do trabalho pedia cinco milhões de cruzeiros”. De imediato, pensou: “mais uma negociata, que horrível”. Logo percebeu que estava enganado: não se tratava de corrupção, pois naquele momento Jango desgastava seu prestígio político com o ministro da Fazenda em torno de uma causa nobre, típica do trabalhismo getulista: obter garantias para os trabalhadores sem emprego. A partir daquele momento, o austero Hugo de Faria passou a admirar o herdeiro político de Getúlio Vargas e a e crer na sua sinceridade de propósitos.
O suicídio de Vargas

Se existe um acontecimento que causou profundos danos emocionais a Jango foi o suicídio de Getúlio Vargas. Goulart perdeu não só o seu mentor político, mas o homem que amava como se ama a um pai. Era um amor recíproco. Até no último momento de sua vida a confiança da velha raposa dos pampas em Jango era irrestrita. A ponto de Getúlio, antes do suicídio, entregar-lhe um documento importante, que só seria aberto depois da sua morte: sua carta testamento. No sepultamento, veio a emoção: Jango chorou. Chorou abalado não só pelo conteúdo da carta, mas pelo discurso que tinha acabado de fazer à beira do túmulo. “Até a volta, doutor Getúlio Vargas. Vai como foram os grandes homens. Tu que soubeste morrer, levas neste momento o abraço do povo brasileiro, levas o abraço dos humildes, levas o abraço daqueles que de mãos calejadas e honradas constroem a grandeza da nossa pátria. Nós estamos contigo e contigo está o povo brasileiro.”

Assim se despediu do seu mentor político e assim se manteve fiel ao ideário trabalhista. O suicídio de Getúlio Vargas manteve seu herdeiro político mais vivo que nunca. Candidato a vice-presidente na chapa de Juscelino Kubitschek — aliança PSD e PTB — Jango viu atestada sua imensa popularidade. Teve mais votos que o presidente eleito, fato que, a princípio, não deixou de provocar certo ciúme em Juscelino. Ciúme apagado pelo tempo, pois Jango e Juscelino se tornaram não só aliados políticos, mas amigos íntimos. Foram incontáveis as vezes que decisões importantes para o país foram tomadas na cozinha do apartamento de Jango, no Rio de Janeiro. Em todas elas, o ritual era o mesmo: Jango diante de um de seus passatempos preferidos — cozinhar.  Cozinhar tendo como convidado frequente aquele mineiro lá de Diamantina  que, por acaso, era o presidente da República.

Findo o governo JK, a presença de Jango — sedimentada por sua imensa popularidade e pelo legado getulista — continuou mais viva que nunca no primeiro time da política nacional. Novamente candidato a vice-presidente, agora na chapa de Jânio Quadros — a chapa Jan-Jango — ganhou as eleições. Iniciava-se assim o governo que não terminou: o de Jânio Quadros que, como todos sabem, logo renunciou. Atribui-se essa renuncia a um errôneo cálculo político de Jânio, que tinha a intenção de voltar nos braços do povo.

Jango estava numa viagem à China no momento da renúncia de Jânio Quadros. Aliás, uma viagem bem-sucedida, ante a amabilidade do líder Mao Tsé-Tung e do discurso que fez para mais de 10 mil chineses.

Viagem à China, reforma agrária, incentivo à organização sindical, politização das Forças Armadas. Certamente, esses foram ingredientes que influenciaram para que parcelas dos militares se insurgissem contra aquilo que não queriam: João Goulart presidente do Brasil.

Eis aí o estopim para o desencadeamento de um importante movimento deflagrado pelos então governadores do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (cunhado de Jango) e Mauro Borges Teixeira, de Goiás: a Cadeia da Legalidade, que possibilitou a posse do vice-presidente e a saída negociada para uma breve experiência de mudança no sistema político do país: o parlamentarismo.
A cadeia da legalidade

Estando João Goulart em missão oficial na China — viagem maquiavelicamente orquestrada por Jânio Quadros, com o intuito de reforçar a imagem de ligação de Jango aos comunistas —, o país ficou sem comando político. Parcela dos militares resistia à posse de Jango. Ante a incerteza da posse, nascia assim o movimento que ficou conhecido na história brasileira como Cadeia da Legalidade, comandada pelo então governador Leonel Brizola, com participação ativa do chefe do Executivo goiano, Mauro Borges Teixeira.

Por essa razão, os transmissores da rádio gaúcha Guaíba foram transferidos para a sede do governo gaúcho, no Palácio Piratini. De lá, Brizola comandou a cadeia radiofônica composta por 150 rádios do Rio Grande do Sul, que transmitiam para o Brasil e para o exterior, em inglês, espanhol e alemão, pronunciamentos que exaltavam a importância de se manter a ordem legal do país. E essa legalidade só poderia ser mantida com a posse do vice-presidente, que se encontrava no exterior.

Quanto à importância desse movimento, Jorge Ferreira nos relata em seus escritos que “a Cadeia da Legalidade foi de fundamental importância para o movimento, ao difundir mensagens de diversas entidades políticas e grupos sociais na defesa da ordem democrática”. E acrescenta: “Angariou a simpatia da opinião pública internacional. Nos microfones, Leonel Brizola desacatava os movimentos militares, desmoralizando-os publicamente”.

Avaliando a importância desse movimento na lupa do tempo, creio ser possível compreender a razão de tanta resistência dos militares contra o cunhado de Jango. Daí vem a dúvida: não seria a cassação de Brizola e a perda da histórica legenda trabalhista, entregue ao fisiológico PTB da então deputada Ivete Vargas uma retaliação à atuação de Brizola nos tempos da Cadeia da Legalidade? Não seria o crescimento do Partido dos Trabalhadores a aposta numa oposição mais confiável que a comandada pelo PDT de Brizola? Infelizmente, o velho bruxo Golbery do Couto, grande estrategista e homem de inegável inteligência, não está mais entre nós para dirimir essas dúvidas.
O parlamentarismo no Brasil

A cena não poderia ser mais apropriada: uma multidão aguardava na sede do Palácio Piratini, em Porto Alegre, a volta de Jango para tomar posse como legítimo presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Porto Alegre resistira, o Brasil resistira, Brasília o esperava.

Todos o queriam. Todos se sacrificaram a ponto de exporem suas vidas, ante a divisão das Forças Armadas, na iminência de um enfrentamento bélico. Todos estavam ali esperando pelo seu discurso, que simbolizaria uma tomada de posição em prol do presidencialismo. Jango aparecia na sacada do palácio e acenava, mas nada falava. A cena se repetia: a multidão gritava, e ele continuava mudo. Im­paciente, o povo, desconhecendo o que ocorrera nos bastidores para tal atitude, começou a gritar: Covarde! Covarde! “Relatos afirmam que várias mulheres tiraram as roupas íntimas e as ofertaram a Jango. Para um homem como ele, era humilhante.”

Jango pagou o preço para evitar a luta armada no Brasil: teve de negociar, do Uruguai — tendo Tancredo Neves como interlocutor —, três pontos de que o Exército não abria mão: o silêncio, a não ida do cunhado a sua posse e a mudança do presidencialismo para o sistema parlamentarista. A decisão de Jango evitou o sacrifício da vida de milhares de brasileiros. Julgue o leitor por si mesmo a justificativa dele ao cunhado: “Olha Brizola, se nós podemos ter um entendimento e chegar ao governo com alguns poderes diminuídos, o importante é que cheguemos lá e evitemos o derramamento de sangue. Depois é depois. Nós evitamos o conflito, porque, em uma guerra civil, conflitos dessa dimensão, a gente sabe como entra, mas depois não sabe nunca como sai”.
Do presidencialismo à queda

A experiência parlamentarista mostrou ser inadequada, dividia o poder entre o primeiro-ministro e o presidente. E um presidente fraco carecia de autoridade para implementar no país a principal bandeira do trabalhismo: as reformas de base, principalmente a maior delas — a agrária.

Com a volta do sistema presidencialista, Jango, fiel ao seu estilo de hábil negociador, tentava, sem reprimir, frenar o avanço avassalador que tiveram as esquerdas em seu governo. Crescia a pressão dos sindicatos, das ligas camponesas — principalmente a comandada por Francisco Julião — e crescia algo que inquietava cada vez mais os militares: o partido comunista. Seu estilo negociador era visto pelos adversários como fraqueza. E Jango não era fraco, nem tampouco co­munista. Quanto a isso, ele mesmo diz: “Não sou nem nunca fui comunista. Minha política foi eminentemente nacionalista, e foram os monopólios nacionais e estrangeiros que fomentaram a revolta, preocupados com as leis de nacionalização do petróleo e da reforma agrária. Além disso, minha política beneficiou uma enorme massa de deserdados do povo brasileiro”.

Uma série de episódios influenciaram para a queda do presidente João Goulart. Todos esses acontecimentos sinalizavam a clara opção política de Jango no sentido de marchar com as esquerdas em torno de sua principal bandeira: as reformas de base.

Não resta dúvida de que o mais significativo gesto nesse sentido ocorreu no dia 13 de março de 1964, quando Jango tomou uma importante decisão pessoal: ir ao comício da Central do Brasil. Para as esquerdas, a ida do presidente a esse comício representou explicito apoio às reformas sociais em gestação no país, tendo a reforma agrária como a principal delas. Entretanto, para a direita, o fato serviu de alerta. Alerta em torno do que há certo tempo já se articulava: o rompimento do jogo democrático.

Embora esse acontecimento tenha sido o mais significativo, outros ajudaram a sedimentar a revolução (ou golpe) de 1964. Por exemplo, o apoio do governo aos escalões inferiores das Forças Armadas. Esse apoio era visto pela cúpula militar como quebra de dois princípios invioláveis para a caserna: da hierarquia e da disciplina. As constantes mudanças nos ministérios militares, o apoio a associações de sargentos, soldados e cabos era malvista pelos escalões superiores das três armas. Nesse sentido, sua ida à festa do Automóvel Clube, na posse dos sargentos, e o apoio à rebelião dos marinheiros foram sedimentando cada vez mais a ira de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. A revolução (ou golpe) foi o resultado de um complexo processo que uniu toda a direita da política brasileira a um parceiro muito temeroso do avanço do comunismo: os Estados Unidos. Mais uma vez, a história se repetia: Jango quis evitar o derramamento de sangue. Antevia uma sangrenta guerra civil. O espírito guerreiro de Brizola insistia na resistência armada. O espírito conciliador de Jango preferiu o exílio. Caiu de pé. Disse ao cunhado, ao decidir-se pela retirada: “Eu verifico o seguinte: que a minha permanência no governo terá de ser à custa de derramamento de sangue em defesa do meu mandato. Seguirei para algum lugar do país, onde aguardarei os acontecimentos. Não renunciarei, entretanto. Mande tomar as providências para me dirigir ao aeroporto”. Ao ouvir isso Brizola, retrucou: “Tu nunca mais vais voltar para o Brasil deste jeito”. Não poderiam ser mais proféticas as palavras do então governador do Rio Grande do Sul. Jango nunca mais voltou.
O exílio sem volta

Banzo, o eterno desejo da volta à terra natal. Certamente foi esse o sentimento que mais corroeu o ex-presidente no seu longo exílio sem volta. Ao contrário do que se especulou, há fortes evidências de que Jango não morreu envenenado. Seu biógrafo vai, ao longo de seus escritos, mostrando os constantes sintomas que sinalizavam problemas cardíacos. Não gostava de ir a médicos. Aliado a isso, cultivava maus hábitos para uma pessoa com problemas cardíacos. Bom de garfo, amante de comidas gordurosas, apreciador de uísque, fumante inveterado. Fatores que contribuíram para o seu falecimento aos 57 anos.

Logo no seu primeiro ano de exílio, envelheceu consideravelmente. Embora fosse riquíssimo no Brasil, Jango chegou com poucos recursos no Uruguai. Sua vida e sua fortuna foram vasculhadas e nada que o desabonasse foi encontrado. A origem desta era absolutamente lícita. Ao perceberem isso, os militares deixaram de implicar com seus bens.

Com um faro inato para perceber oportunidades, tudo em que Jango punha a mão gerava dinheiro. No intervalo em que teve a vida vasculhada, com poucos recursos disponíveis, logo voltou a ser um homem rico no Uruguai. E mais rico ainda ficou com a liberação de seus negócios no Brasil, comandados por gente de sua confiança. Chegou a ser um dos maiores investidores na economia uruguaia.

Não obstante, Jango era um homem bastante generoso. Recebia várias cartas com pedidos de ajuda e nunca se negava a auxiliar os que precisavam. Mais de uma centena de pessoas dependia diretamente do auxílio do herdeiro do getulismo.

No exílio, teve de conviver com as eternas picuinhas do governo brasileiro: recusa de concessão de passaporte brasileiro, vigilância constante do Serviço Nacional de Informações, pedidos negados de regresso ao país e até dificuldades, depois de morto, para que fosse enterrado em São Borja, sua terra natal.

Com o endurecimento do regime uruguaio, recebeu convite do presidente Juan Domingo Perón para migrar para a Argentina. Viveu seus últimos anos em Buenos Aires. Perón sabia de suas habilidades e, por desfrutar da amizade do chefe do governo argentino, Jango acabou se tornando um auxiliar próximo. No entanto, o cunhado de Brizola carregava consigo a tristeza do banzo. Infelizmente, a previsão de Leonel estava certa: Jango não conseguiu em vida retornar à terra que tanto amava.
O julgamento da história

A política nos ensina a enxergar o propósito de suas ações. A boa ação política visa sempre o bem comum; a má ação, o bem próprio. Nada mais verdadeiro, na política rasteira, de que “os fins justificam os meios”.

Se existe um político brasileiro que fez questão de não se valer dessa máxima — e até a combateu —, esse homem público se chama João Belchior Goulart. A imagem de fraqueza que lhe foi atribuída pelos adversários e por parcela das Forças Armadas mostrou ser inverídica. Coisas assim, só o tempo revela.

Não tenham dúvidas de que episódios como a opção pelo exílio e pelo parlamentarismo evitaram sangrentas guerras civis nos momentos de maior agitação e mobilização do país. Os meios, lícitos, determinaram os fins conquistados. Alie-se a isso a habilidade de Jango para negociar em momentos de grande tensão. Seu temperamento ajudava. Era um homem calmo, educado e muito tratável.

Creio ser oportuno, no momento em que encerro este ensaio, resgatar a imagem da infância de Getúlio Vargas, relatada na seminal biografia de autoria do jornalista Lira Neto. Getúlio recorda que, nos momentos de ira paterna, se escondia no alto de um umbuzeiro e de lá só descia quando a raiva do pai, ante o seu “sumiço”, se transformasse em preocupação.

O líder político que mais tempo mandou no Brasil disse que também agiu assim nos momentos de grande tensão que teve de enfrentar. Só “descia do umbuzeiro” na hora certa, no momento adequado.  Agiu assim na revolução de 1930, pois só abraçou a causa de fato no momento em que a situação estava delineada. Só nesse momento tomava uma decisão. Isso, em política, se chama astúcia.

Jango não mostrou ter a mesma astúcia do padrinho. Sua decisão de seguir com os movimentos de esquerda foi tomada quando a situação ainda não estava delineada. Desceu do umbuzeiro na hora errada. Pagou um alto preço por isso. 1964 e os duros anos da ditadura nos mostraram uma nova realidade, sem as liberdades democráticas.  Entretanto, João Goulart foi um político sincero e obstinado. Tinha um projeto para o Brasil, projeto esse totalmente inserido no nacionalismo getulista. Tem seu lugar na história política do país. Vem de uma época que já não existe mais. Uma época em que o exercício da atividade política era sinal de grandeza.
Salatiel Pedrosa Soares Correia é engenheiro, bacharel e mestre em Planejamento. É autor, entre outros , do livro “Goiás, a Globalização e o Futuro”.

Gestão por indicadores (Renato Janine Ribeiro)

Duas histórias, para começar. Na década de 1920, o escritor e político Humberto de Campos visita, no Maranhão, um hospital de leprosos. Fica impressionado com o atendimento, apesar da escassez de dinheiro. Procura o presidente da República, Washington Luiz (vejam o simbolismo: o último mandatário da República Velha), e lhe pede cem contos de réis para o leprosário. O presidente reconhece o mérito, mas recusa. Humberto baixa o pedido, e Washington Luiz: "Nem cinco [contos]. Porque, se der para um Estado, tenho que dar para todos".
 
A outra história: conta-se que José Serra, ao assumir a pasta da Saúde - onde teve a realização mais prestigiada de sua carreira - teria pedido aos assessores uma planilha, mostrando as doenças que maiores males causam (mortes, sofrimento etc.) e quanto o governo gasta com cada uma. Dessa maneira, fica mais fácil ver onde o dinheiro público, sempre limitado, rende mais. A gestão dá um salto de qualidade.
 
As duas histórias, separadas por setenta anos, mostram duas formas opostas - mesmo que ambas bem intencionadas - de atuar o governo nas áreas sociais. Na primeira, só sai dinheiro com padrinho. Por sorte do leprosário, um homem ilustre o conheceu. (Por azar, o presidente não foi convencido da prioridade do gasto...). Na segunda, não precisamos de padrinhos. O sistema de dados do governo já indica o que se deve priorizar. Mais que isso: no primeiro caso, o cobertor é sempre curto. Sem o favoritismo, nada funciona. Com ele, funciona só para alguns. No segundo caso, o cobertor é ajustado para evitar, ao menos, que se morra de frio. Há a intenção, mais que isso, a possibilidade de garantir uma cobertura social universal - ou quase.

 
Cidadãos precisam acompanhar avanços do Estado
 
Em outros tempos, só conhecia as coisas quem as enxergasse. Hoje, com o avanço nas comunicações e, finalmente, a Internet, podemos ter dados adequados sobre educação, saúde, estradas, enfim, sobre quase tudo o necessário para a gestão. Se Humberto de Campos não visitasse o hospital, ninguém saberia dele. Hoje, saberia mesmo a distância. No passado, não era só questão de favor ou proteção. Era questão de simples conhecimento. Hoje, podemos conhecer tudo o que importa. E além disso, ao contrário do presidente para quem a questão social era um caso de polícia, ela se tornou central na missão do Estado.
 
A chave para sair da miopia, do clientelismo, do favor e do tratamento desigual é antes de tudo um sistema de dados. É preciso o poder público ter informações corretas para agir. Depois disso, é definir as prioridades e ir à luta. Vejam os programas sociais. Substituem, com vantagem, as cestas básicas que os governos davam por meio de políticos locais. Hoje, cada vez mais os programas de complementação de renda informatizam dados e os aplicam segundo critérios definidos. Ou vejam o que os auditores do Tribunal de Contas descobriram em 2009: que 1700 beneficiários do Pro-Uni eram donos de carros novos. Para chegarem a esse dado, cruzaram os nomes do Pro-Uni com os do Renavam, o cadastro nacional de veículos. Obviamente, essas pessoas não mereciam ser bolsistas. Seguramente, os gestores do Pro-Uni não foram desonestos ao lhes darem bolsas, mas o TCU mostrou competência raras vezes vista ao criticar erros na concessão.
 
Isso não é tecnocracia. Os critérios continuam sendo políticos. Mas têm de ser explicitados. Por exemplo, a complementação de renda pode exigir que os filhos estudem, que as grávidas façam exame pré-natal, que o desempregado ou subempregado faça treinamento. Essas condições são políticas, mas não partidárias ou politiqueiras. E os portais de transparência permitem ver se estão sendo seguidas - ou não. Esses são avanços monumentais na gestão e, também, na democracia.
 
O importante é que esses progressos não são de um partido só. Ocorrem na esfera federal, em muitos Estados e municípios. Foram se tornando regra, creio eu, desde o governo FHC. O PT deu-lhes continuidade. Vejam o exemplo do Provão, o exame nacional de cursos universitários, que permite que os vestibulandos e suas famílias saibam a qualidade da faculdade tentada. O PT se opôs a ele enquanto era oposição, mas aprimorou-o, com o Enade, uma vez no governo. Os avanços de que falo constituem políticas de Estado.
 
Mas há um grande senão nisso tudo. Ou dois. O primeiro é que nem sempre a mídia acompanha o que acontece. O segundo é que a sociedade não acompanha mesmo. A imprensa por vezes usa os dados para avaliar avanços e recuos do Brasil. Os grandes jornais são atentos aos mapas da exclusão social e da violência. O Valor vai mais longe, na avaliação fundada em dados, talvez por ter um público que entende de economia e, portanto, de planilhas. Mas o debate essencial na mídia, sobre os governantes eleitos, não leva em conta os dados de melhora ou piora da saúde e educação.
 
O pior mesmo é que os eleitores mal têm ideia disso tudo. Quem sabe do Ideb, o indicador de desenvolvimento da educação brasileira, talvez o maior feito do governo passado na educação? É mais fácil falar de corrupção. Então, ficamos com uma visão impressionista e maledicente da política, por parte de quem deveria controlá-la, os eleitores; um acompanhamento limitado da gestão, pela mídia; e um Estado - insisto, não só o federal, mas nas três instâncias de governo - que a sociedade nem sabe direito o que ele faz. Nosso Estado é provavelmente melhor do que imaginamos. Mas, para saber disso e controlá-lo, precisamos nos esforçar por entender o que ele está fazendo. Ele avançou mais do que nós. Meios para conhecê-lo há. Temos que nos dar a este trabalho.
 
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
 
Fonte: Valor Econômico (26/11/12)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Violência e distensão (Marco Aurélio Nogueira)

Passado quase um mês do segundo turno das eleições que consagraram Fernando Haddad como futuro prefeito de São Paulo, daria até para dizer que a cidade experimenta um bem-vindo clima de distensão política, após os confrontos eleitorais que ninguém mais quer lembrar, tão ruins foram. Daria mesmo, não fosse a violência.
 
Ao aumentar dramaticamente de intensidade, a violência vem produzindo mortes em cascata, quase sempre sob a forma de execuções sumárias de autoria desconhecida. Homens encapuzados, que surgem das sombras, mas não só. Medo e pânico nas famílias, sobretudo nas periferias urbanas. É uma situação que faz a cidade ficar meio à deriva e põe em xeque a política de segurança seguida pelos governos estaduais nos últimos anos, evidenciando a ineficiência dos métodos repressivos por ela recomendados e em nome dela praticados.
 
Embora anunciada há tempo pelos estudiosos da área, a situação ainda não passou para o plano propriamente político, no qual deverá ser avaliada com outros critérios. Os paulistanos - mas não somente eles - estão à espera de explicações, além, evidentemente, de medidas que desarmem a bomba em que parecem viver. Querem saber, por exemplo, por que a polícia paulista é tão temida e mal vista quanto o PCC, a ponto de ser percebida como tão responsável quanto os criminosos pela violência que saiu do controle. A sucessão de revides, chacinas, vinganças e extermínios expõe a céu aberto a falta que faz uma visão clara de polícia, de política de segurança e de gestão democrática da segurança pública. Políticas de segurança movidas a tiros, como se se estivesse numa "guerra não declarada" permanente, são a estrada mais curta para o fracasso. Todos perdem com elas, a começar dos mais frágeis. Pelo respeito a seus cidadãos e a seus policiais, vitimados igualmente pelo fracasso que se prolonga, São Paulo merece coisa melhor.
A opinião pública também quer saber por que é que somente agora um ministro de Estado - José Eduardo Cardoso, da Justiça - resolveu denunciar a situação calamitosa e indigna dos cárceres brasileiros, verdadeiras usinas de degradação e alimento poderoso para a violência. Virá de sua denúncia oportuna alguma medida concreta que modifique a situação, modernize e humanize as prisões do País?
 
As três instâncias federativas - União, Estados e municípios - estão envolvidas até a medula com o tema. São corresponsáveis pela situação a que se chegou. O mais correto, portanto, o mais criterioso e o mais democrático, é que arregacem as mangas, se deem as mãos e cooperem entre si. Efetivamente, em termos práticos, não de modo retórico e protocolar.
Seria trágico, por exemplo, se disputas partidárias e cálculos eleitorais terminassem por se interpor entre governantes do PT e do PSDB e complicassem o tratamento cooperativo e solidário do problema.
Por isso não há como deixar de saudar o clima de distensão política das últimas semanas. É um novo ponto de partida. Ele não implica nem significa o cancelamento das diferenças e dos conflitos interpartidários, até porque, com a derrota do PSDB na cidade que era sua menina dos olhos, o partido terá de afiar as armas da crítica para tentar voltar a crescer. É de esperar que deixe de lado o estilo belicoso e adjetivado (improdutivo em termos de imagem e de sedução da cidadania) e adote a contundência analítica, que certamente será ouvida pela população e recebida com atenção pelo PT. Com mais adjetivos que substantivos, olhando mais para trás que para a frente, nada acontecerá de positivo para o partido.
 
Da parte do PT, e especialmente do prefeito Fernando Haddad, o momento não é mais de júbilo e comemoração da vitória, mas de início de um trabalho de construção que justifique os votos obtidos. Aqui também pouca serventia terão a retórica inflamada, o discurso da confrontação e da destruição dos adversários, como se fossem inimigos. Trata-se muito mais de ponderar, agregar, congregar, ainda que sem abrir mão da identidade e das pretensões.
 
Fernando Haddad tem talento para empreender esse movimento. Flutua com bastante independência dentro do PT. Parece sinceramente determinado a fazer um governo que contribua para pôr em novas bases o relacionamento entre os políticos, com suas siglas, e entre os políticos, os governantes e a população. Mostrou suas cartas logo depois de fechadas as urnas, quando, em entrevista a O Estado de S. Paulo (31/10), pediu que se levasse em consideração o seu passado, que, segundo ele, é um "testemunho" da sua "disposição para construir consensos em torno de propostas que atendam ao interesse público". Com a frase quis valorizar sua trajetória, mas também estabeleceu um princípio de conduta, reforçado com a declaração de que gestos de distensão "são importantes para mostrar que divergências são discutidas durante a campanha".
Deu um recado para fora, para o mundo político, e para dentro, para seu partido, que ainda tem integrantes que permanecem "em campanha", dispostos a aproveitar a onda para esmagar seus adversários e "inimigos". Para ambos, o novo prefeito enfatizou que o seu será um "governo de coalizão", mas que não fará "toma lá, dá cá" e resistirá com firmeza e serenidade ao assédio e à pressão desenfreada por cargos. Não loteará seu secretariado. O norte a ser seguido será o plano de governo aprovado nas urnas. Nas primeiras nomeações que fez, de alto teor técnico, foi o que se viu.
 
Da Prefeitura da maior cidade do País pode despontar uma perspectiva animadora. Se ela se confirmar, e for complementada com iniciativas semelhantes das demais instâncias da Federação e do conjunto dos partidos democráticos, contribuirá sobremaneira para que se estabilize outra plataforma de relacionamento intergovernamental no País, com a qual problemas gravíssimos como o da segurança pública e da violência poderão ser muito mais bem equacionados.
 
Marco Aurélio Nogueira - professor titular de teoria política e diretor do instituto de políticas públicas e relações internacionais da UNESP
 
Fonte: O Estado de S. Paulo, 24/11/2012

domingo, 25 de novembro de 2012

Virar a página da Ação Penal 470 (Luiz Werneck Vianna)

Dois importantes processos da vida republicana, a sucessão municipal e a Ação Penal 470, já são deixados para trás, páginas viradas do nosso folhetim, mas que deixam boas lições para que se recuperem os fios dessa obra coletiva que tem sido a nossa História desde a democratização do País nos idos de 1985. A melhor delas está na oportunidade para o pleno assentamento da República e de suas instituições, na esteira de um julgamento, pela mais alta Corte do Judiciário, de membros influentes da coalizão partidária governamental, quase todos condenados a penas severas, sendo, como notório, que oito dos seus magistrados foram selecionados, para a aprovação do Senado Federal, por livre discrição da chefia do Poder Executivo sob comando do PT.
 
Nesse episódio, a autonomia do Poder Judiciário experimentou o seu batismo de fogo, podendo-se sustentar - tal como na modelagem da pequena obra-prima de Philippe Nonet e Philip Selznick Direito e Sociedade: a Transição ao Sistema Jurídico Responsivo (Editora Revan, Rio de Janeiro, 2010) - que agora completamos, cabalmente, a passagem do tipo de Direito Repressivo, em que o direito se encontra subordinado aos fins do poder político, para o do Direito Autônomo, um governo de leis, e não de homens. Sempre se pode tentar desqualificar o ineditismo dessa passagem com o fato de que é da tradição das nossas Constituições republicanas dispor sobre o princípio da autonomia do Judiciário. Mas uma coisa é o caráter simbólico das leis e algo bem diverso, a sua efetiva eficácia, como agora, quando que elas se impuseram, diante de uma circunstância concreta e por fatos delituosos determinados, a um poder político vitorioso em três sucessões presidenciais consecutivas, submetendo a julgamento e condenando vários dos seus dirigentes.
 
Os efeitos em cascata dessa decisão devem reforçar as instâncias de controle do poder, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas. Mas, sobretudo, em razão da alta voltagem com que a opinião pública se envolveu no curso da longa tramitação do julgamento, ora em finalização, no Supremo Tribunal Federal (STF), já consagram a Carta de 88 e o papel da Corte Suprema como seu guardião, uma vez que, bem para além de se manifestarem sobre um caso penal concreto, os juízes se detiveram nas suas repercussões sobre a concepção de República na forma que o poder extraordinário do constituinte deu à luz, em que muitos pareciam estar presentes numa sessão do Senado Romano.
 
Os maus presságios sobre a Carta Magna, em que tantos identificaram mais um instrumento simbólico, do tipo das Constituições programáticas, características dos tempos de fastígio do Welfare State (Estado de bem-estar social), se já tinham sido infirmados de modo robusto pela prática política, inclusive pela ação do PT - partido que, na verdade, foi um dos principais responsáveis por conceder vida a muitos dos seus novos institutos, como o das ações de controle de constitucionalidade das leis e o das ações civis públicas, com frequência consorciado ao Ministério Público -, se dissiparam no ar. A nossa Lei Maior e as suas instituições, com o processo da Ação Penal 470, foram, afinal, recepcionadas, para brincar com as palavras, pela opinião pública.
 
Os sinais emitidos pela sucessão municipal, por sua vez, com seus resultados, em boa parte, favoráveis a candidatos e partidos de programas orientados por agendas de políticas públicas socialmente inclusivas, puseram em evidência que os canais e instrumentos da democracia política são aptos a conceder passagem às expectativas por mudança social, dispensando atalhos, em particular os sombrios. Deve-se interpretar a firme defesa de princípios e valores que se fez ouvir do plenário do STF, bem longe de uma chave moralista vazia de conteúdo, como a confirmação dos rumos traçados pelo constituinte, inequívocos em sua disposição farta de meios para que os fins da democratização social venham a ser atingidos pela via da República e de suas instituições.
 
Nesse sentido, contrariamente ao que muitos sugerem, o episódio que ora se encerra não guarda relação com o intrincado tema da judicialização da política. Em linguagem de Jürgen Habermas, um inimigo notório de intervenções judiciais no campo da política, o julgamento do Supremo Tribunal, tudo bem contado, fixou-se na salvaguarda do "núcleo dogmático" - uma expressão dele - de uma Constituição democrática, qual seja nos procedimentos que garantam uma livre e igual competição política a fim de que a soberania popular não seja contaminada, ou pior, colonizada pelo poder da administração e do sistema econômico.
 
Daí o paradoxo irônico desse julgamento, uma vez que as razões emitidas em seus votos pelos magistrados, membros de uma Corte não poucas vezes acusada de usurpar poderes do Legislativo - o caso do reconhecimento civil da união afetiva das relações homoeróticas, entre outros, é paradigmático -, que calaram mais fundo na opinião pública, versaram sobre o tema da soberania popular e da sua representação, que teriam sido objeto de emasculação pelo poder político.

A sociedade, seus três Poderes, partidos, sua esfera pública não saem iguais ao que eram antes dessa Ação Penal 470. Decerto que não foi uma revolução, que, entre nós, nunca merece esse nome, como as de 1930 e de 1964, que apenas mudaram para conservar o que já estava lá. Para o bem ou para o mal, nossa História não é amiga da ruptura, mas ficou à vista de todos que já passou a hora da reforma de nossas instituições políticas, de criarmos partidos representativos da nossa rica vida social de hoje, e não essa coleção patética de siglas a nuclear em torno de si pequenos interesses paroquiais vivendo da política, material comburente dessa forma nefasta de presidencialismo de coalizão que nos governa sem alma e sem direção, embora nunca perca de vista seus objetivos de reprodução.

Professor-pesquisador da PUC-RJ

Fonte: O Estado de S. Paulo

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Por que Luciano Rezende ganhou a eleição? (Joca Simonetti)


Passadas algumas semanas da eleição municipal, pouco - quase nada - foi debatido sobre as razões do resultado eleitoral. O mais que se disse ficou na superfície, no marqueteiro, no jingle, no gesto da mudança. Imaginar que isso tenho decidido a eleição é menosprezar o eleitor de Vitória e a própria política.
Tenho convicções firmes sobre a política. Uma de que o eleitor sempre vota de acordo com que acredita vai tornar sua vida melhor. Outra de que o eleitor sempre escolhe uma utopia, que a razão do voto é como a razão da fé: a crença não redutível à razão de que assim o mundo, a cidade, a vida será melhor. E o eleitor de Vitória é sofisticado, decide com base nessas motivações de forma bastante sutil e inteligente.
Afastada a hipótese de que da eleição é uma guerra de marketing, temos que afastar também a ideia de que Luciano Rezende era um azarão. Não era, nunca foi. Quem tiver curiosidade visite os diversos artigos que publiquei aqui desde março: sempre apontei que Luciano tinha viabilidade eleitoral, que podia sair vitorioso e que, num segundo turno, teria grande possibilidades de vitória.
A pergunta é por que Luciano Rezende venceu a eleição contra uma liderança consolidada e bem avaliada - Luiz Paulo - apoiada em dois partidos tradicionalmente fortes na capital - PSDB e PMDB - e pelo ex-governador Paulo Hartung?
A resposta é que Luciano foi percebido pela maioria dos eleitores como capaz de tornar suas vidas melhores e, especialmente, que Luciano Rezende foi o portador de uma utopia que fez eco nos desejos dos eleitores - utopia que eu não fui capaz de entender durante o período eleitoral (ver Declaração de voto).
A utopia do simples
A candidatura de Luciano Rezende foi ancorada da concepção de um terceira via, em proposta simples e percebidas como claramente exequíveis e na força motriz da participação.
A terceira via estava fundamentada no histórico do candidato. Deputado estadual, coerente e firme opositor ao governo de João Coser, liderança presente no cotidiano da cidade e ex-secretário municipal e estadual de diversas pastas. Apresentou-se então como uma terceira via - afastada dos jogos políticos que dominaram a cidade nas últimas décadas, mas com currículo que o fez confiável.
As propostas simples, como retomar projetos já bem sucedidos (a educação ampliada por exemplo), limpar os terrenos baldios da cidade e unir-se aos projetos com os quais o governo estadual já estava comprometido, foram a marca do programa do candidato. Essas propostas reforçaram o conceito de liderança confiável e permitiram ao eleitor ter uma ideia tangível - e considerada possível - do que será o seu governo. Luiz Paulo apostou em uma utopia do tipo tradicional, com grandes transformações e sonhos, como o projeto Terra Verde.
Por fim, a participação. Especialmente no segundo turno, Luciano Rezende dedicou-se a promover o conceito de governo participativo. Mais uma vez com simplicidade - ao contrário de Luiz Paulo que apontou para mecanismos estruturantes de participação (os prefeitinhos) e de relação com a região metropolitana (a agência de transporte coletivo) - Luciano foi direto ao ponto: o prefeito vai despachar nas regiões administrativas.
A ideia do prefeito indo até as regiões administrativas, transferindo simbolicamente a prefeitura para cada uma das regiões da cidade, soa populista. Mas não foi percebida assim: foi lida como ato simples e direto que pode criar a oportunidade para que cada morador da cidade participe das soluções, não apenas com o voto, ou com ideias, mas também com práticas compartilhadas com o governo municipal.
Essas ideias, resumidas no conceito - e porque não, no gesto - de mudança, foram fundamentais para o resultado eleitoral. Ideias bastante próximas foram percebidas em uma pesquisa realizada pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade com jovens paulistanos. Vale conferir (o vídeo está logo abaixo), tendo em mente a ideia da utopia da simplicidade, da mudança construída não pela revolução institucional, mas pela transformação do cotidiano - que leva à mudança institucional.
Passadas algumas semanas da eleição municipal, pouco - quase nada - foi debatido sobre as razões do resultado eleitoral. O mais que se disse ficou na superfície, no marqueteiro, no jingle, no gesto da mudança. Imaginar que isso tenho decidido a eleição é menosprezar o eleitor de Vitória e a própria política.
Tenho convicções firmes sobre a política. Uma de que o eleitor sempre vota de acordo com que acredita vai tornar sua vida melhor. Outra de que o eleitor sempre escolhe uma utopia, que a razão do voto é como a razão da fé: a crença não redutível à razão de que assim o mundo, a cidade, a vida será melhor. E o eleitor de Vitória é sofisticado, decide com base nessas motivações de forma bastante sutil e inteligente.
Afastada a hipótese de que da eleição é uma guerra de marketing, temos que afastar também a ideia de que Luciano Rezende era um azarão. Não era, nunca foi. Quem tiver curiosidade visite os diversos artigos que publiquei aqui desde março: sempre apontei que Luciano tinha viabilidade eleitoral, que podia sair vitorioso e que, num segundo turno, teria grande possibilidades de vitória.
A pergunta é por que Luciano Rezende venceu a eleição contra uma liderança consolidada e bem avaliada - Luiz Paulo - apoiada em dois partidos tradicionalmente fortes na capital - PSDB e PMDB - e pelo ex-governador Paulo Hartung?
A resposta é que Luciano foi percebido pela maioria dos eleitores como capaz de tornar suas vidas melhores e, especialmente, que Luciano Rezende foi o portador de uma utopia que fez eco nos desejos dos eleitores - utopia que eu não fui capaz de entender durante o período eleitoral (ver Declaração de voto).
A utopia do simples
A candidatura de Luciano Rezende foi ancorada da concepção de um terceira via, em proposta simples e percebidas como claramente exequíveis e na força motriz da participação.
A terceira via estava fundamentada no histórico do candidato. Deputado estadual, coerente e firme opositor ao governo de João Coser, liderança presente no cotidiano da cidade e ex-secretário municipal e estadual de diversas pastas. Apresentou-se então como uma terceira via - afastada dos jogos políticos que dominaram a cidade nas últimas décadas, mas com currículo que o fez confiável.
As propostas simples, como retomar projetos já bem sucedidos (a educação ampliada por exemplo), limpar os terrenos baldios da cidade e unir-se aos projetos com os quais o governo estadual já estava comprometido, foram a marca do programa do candidato. Essas propostas reforçaram o conceito de liderança confiável e permitiram ao eleitor ter uma ideia tangível - e considerada possível - do que será o seu governo. Luiz Paulo apostou em uma utopia do tipo tradicional, com grandes transformações e sonhos, como o projeto Terra Verde.
Por fim, a participação. Especialmente no segundo turno, Luciano Rezende dedicou-se a promover o conceito de governo participativo. Mais uma vez com simplicidade - ao contrário de Luiz Paulo que apontou para mecanismos estruturantes de participação (os prefeitinhos) e de relação com a região metropolitana (a agência de transporte coletivo) - Luciano foi direto ao ponto: o prefeito vai despachar nas regiões administrativas.
A ideia do prefeito indo até as regiões administrativas, transferindo simbolicamente a prefeitura para cada uma das regiões da cidade, soa populista. Mas não foi percebida assim: foi lida como ato simples e direto que pode criar a oportunidade para que cada morador da cidade participe das soluções, não apenas com o voto, ou com ideias, mas também com práticas compartilhadas com o governo municipal.
Essas ideias, resumidas no conceito - e porque não, no gesto - de mudança, foram fundamentais para o resultado eleitoral. Ideias bastante próximas foram percebidas em uma pesquisa realizada pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade com jovens paulistanos. Vale conferir (o vídeo está logo abaixo), tendo em mente a ideia da utopia da simplicidade, da mudança construída não pela revolução institucional, mas pela transformação do cotidiano - que leva à mudança institucional.
 
Fonte: Blog de Joca Simonetti (20/11/12)

Sem filiação religiosa. "Um contingente significativo e heterogêneo" (Emerson Alessandro Giumbelli)

“Os números de afiliação religiosa tendem – como no caso das religiões afro-brasileiras – a ser sempre menores do que a importância social do espiritismo”, constata o sociólogo.

Confira a entrevista.


“A divulgação dos dados do Censo 2010 evidencia uma tensão que permeia mais geralmente nossas percepções acerca da religião no Brasil. Por um lado, a ideia de um país cristão; por outro, a ideia de um país que apresenta diversidade religiosa”, avalia o sociólogo Emerson Alessandro Giumbelli, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Analisando os últimos dados do censo, o pesquisador afirma que “precisamos entender os vários planos em que se inserem as religiões na sociedade, sem deixar de reconhecer as situações em que a ideia de uma ‘maioria cristã’ pode obscurecer a realidade plural”.

Giumbelli comenta os dados referentes aos que se identificaram como sem filiação religiosa. Apesar de o número de pessoas ter aumentado em relação à década anterior, “diminuiu o ritmo de crescimento no período 2000-2010”. Para ele, o contingente de pessoas sem religião é significativo e heterogêneo, mas somente “pesquisas mais precisas podem esclarecer todas as situações que nele se abrigam”. Segundo ele, “este ano o IBGE divulgou pela primeira vez o número de pessoas que se declararam ‘agnósticas’ e ‘ateias’ (cerca de 740 mil indivíduos). Esse número corresponde a cerca de 5% do total das pessoas ‘sem religião’, o que demonstra que ‘sem religião’ não é sinônimo de ‘sem crenças religiosas’”.

Emerson Alessandro Giumbelli é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde atua no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. É coeditor da revista Religião e Sociedade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Os dados do Censo 2010 apontaram alguma novidade em relação ao mapa religioso brasileiro e à religiosidade? Que mapa religioso aparece como emergente?

Emerson Alessandro Giumbelli –
As principais tendências anunciadas nos resultados do Censo anterior estão novamente presentes, como já observaram muitos analistas: decréscimo dos católicos, e ascensão de evangélicos e dos declarados “sem religião”. Talvez a principal novidade esteja relacionada com a categoria dos evangélicos “genéricos” (sem denominação indicada, quase 5% do universo total). Uma parte desse contingente corresponde a pessoas que estão pouco vinculadas a igrejas específicas, ou talvez passando por uma situação de trânsito entre denominações. Mas creio ser necessário interpretar o número expressivo tendo em consideração a força que adquiriu, na sociedade, a categoria “evangélico”. Mesmo muitos daqueles que possuem pertencimentos denominacionais, frente à pergunta “qual é sua religião?”, acham suficiente responder “evangélica”. Há dez anos, a chance de isso acontecer era menor. O crescimento evangélico vem acompanhado do reforço dessa categoria genérica de denominação, sem prejuízo necessário aos pertencimentos denominacionais.

IHU On-Line – Aumentou o número de pessoas sem filiação religiosa. Como interpreta esse dado? Há uma tendência no Brasil, do mesmo modo que aconteceu na Europa, de acentuar a desfiliação religiosa?

Emerson Alessandro Giumbelli –
O número de pessoas sem filiação religiosa aumentou, mas diminuiu o ritmo de crescimento no período 2000-2010. De todo modo, trata-se de um contingente muito significativo e heterogêneo. Apenas pesquisas mais precisas podem esclarecer todas as situações que nele se abrigam. Este ano o IBGE divulgou pela primeira vez o número de pessoas que se declararam “agnósticas” e “ateias” (cerca de 740 mil indivíduos). Esse número corresponde a cerca de 5% do total das pessoas “sem religião”, o que demonstra que “sem religião” não é sinônimo de “sem crenças religiosas”. Por outro lado, deve-se considerar que, caso a resposta fosse estimulada, as estatísticas de agnósticos e ateus poderiam ser maiores.

IHU On-Line – O espiritismo teve um crescimento de 1,3 para 2% em relação à pesquisa anterior. Qual é o perfil dos seguidores do espiritismo? Como o senhor avalia e a que atribui essa ascensão?

Emerson Alessandro Giumbelli –
O perfil dos espíritas, em comparação com outras religiões, é de pessoas com escolaridade e renda mais altas. É um dado indicado por muitas pesquisas. O aumento do número de espíritas deve-se, em parte, ao crescimento contínuo e sustentado desse grupo; em parte, ao cenário social mais favorável ao seu reconhecimento: recentemente, filmes de temáticas espíritas aumentaram a projeção de suas referências. De todo, os números de afiliação religiosa tendem – como no caso das religiões afro-brasileiras – a ser sempre menores do que a importância social do espiritismo. Isso tem a ver com características do próprio espiritismo e com traços estruturantes das identidades religiosas no Brasil.

IHU On-Line – Que relações podem ser estabelecidas entre as transformações sociais e culturais de nosso país com sua diversidade religiosa?

Emerson Alessandro Giumbelli –
A divulgação dos dados do Censo 2010 evidencia uma tensão que permeia mais geralmente nossas percepções acerca da religião no Brasil. Por um lado, a ideia de um país cristão; por outro, a ideia de um país que apresenta diversidade religiosa. Em termos analíticos, não são quadros contraditórios. Precisamos entender os vários planos em que se inserem as religiões na sociedade, sem deixar de reconhecer as situações em que a ideia de uma “maioria cristã” pode obscurecer a realidade plural.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A metamorfose que a oposição não viu (Suely Caldas)

"Afinal, deputado, a herança é maldita ou bendita?" Dirigida ao então deputado do PT e hoje ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, a pergunta foi por ele repetida minutos depois, de forma bem-humorada, o que descontraiu e arrancou risos da plateia formada por um grupo de sisudos empresários reunidos em evento de premiação da Agência Estado. O ano era 2003, início do governo Lula. A "herança" era o legado de oito anos do governo FHC, satanizado pelo PT na campanha eleitoral do ano anterior. Os personagens eram, de um lado, empresários desconfiados e inseguros com o que poderia vir do governo Lula e, de outro, Paulo Bernardo, um ex-dirigente sindical do Paraná que, junto com o ex-ministro Antonio Palocci, fora escalado por Lula para desfazer a imagem do PT incendiário, do "sou contra tudo isso que está aí", do partido sem proposta para governar.

Os anos passaram. Bernardo tornou-se ministro do Planejamento pouco depois e, junto com Palocci, completou com eficiência a travessia da ponte de um PT socialista e incendiário para a realidade da economia capitalista (que o digam os banqueiros, que nunca lucraram tanto). A "herança", que o PT carimbou de "maldita" nos anos de FHC, acabou "bendita" e muito bem-vinda, tal a rapidez com que o governo petista a incorporou. E Lula não reviu nenhuma das privatizações de FHC, como havia prometido na campanha em 2002.

O País todo assistiu a essa metamorfose petista e, com o tempo, foi se habituando a ela. Hoje, os mais jovens chegam a atribuir à Lula realizações de FHC, como derrubar a inflação e criar programas de transferência de renda. Nestes quase dez anos de gestão do PT, os maiores ausentes nessa metamorfose foram os partidos de oposição, sobretudo o PSDB, justamente quem deveria ter todo o interesse em denunciá-la. Foi no vácuo do silêncio, da omissão, do recuo, atuando a reboque ou na retranca, nunca no ataque, e com enorme incompetência política que esses partidos deixaram prosperar a ideia do "nunca antes na história deste país", de que o Brasil bem-sucedido começou com Lula.

Após dez anos e três derrotas eleitorais para a Presidência, eles acordaram do sono letárgico e prometem recapturar feitos do governo FHC, entre eles a privatização. Como disse o ex-governador tucano Alberto Goldman ao repórter deste jornal João Domingos: "Nosso desafio é mostrar que fomos tão vitoriosos que se apropriaram de nossas ideias como se fossem deles". E acrescenta sobre a privatização: "Só foram perceber com dez anos de atraso, o que causou um prejuízo imenso para o Brasil".

Aí está um tema em que a oposição, com armas e razão à mão, foi derrotada por um adversário desarmado e sem lógica. A realidade provou que a privatização nada tem de ideológico, como tentou enganar o PT no passado, e agora se rende: vai privatizar aeroportos, portos, estradas e ferrovias. A privatização é simplesmente a única saída para um país que não pode mais aumentar impostos, arrecada muito, gasta mal, desperdiça, não tem dinheiro para aplicar em infraestrutura e precisa investir, crescer e se desenvolver. E mais: economiza dinheiro público, ao tirar dos políticos meios para fazerem proliferar mensalões e distribuição de cargos públicos. E mais: produz benefícios para a população com geração de empregos, renda e progresso econômico.

Apenas dois exemplos para ilustrar:

Vale: antes de privatizada, em 1997, a Vale era a 20.ª produtora de minério de ferro do mundo; hoje é a 2.ª e a maior empresa privada da América Latina. Em 54 anos como estatal, investiu US$ 27 bilhões; em 15 anos privada, quadruplicou esse valor. Seus 11 mil empregados de estatal saltaram para mais de 100 mil. Entre impostos e taxas, em 15 anos a Vale recolheu ao governo 700% mais do que nas cinco décadas de estatal.

Telebrás: o benefício da privatização é ainda mais expressivo e visível para a população pobre, que hoje possui telefone próprio. Em 1998, quando a Telebrás foi privatizada, o País tinha 24,5 milhões de telefones. Hoje, só de celulares, tem 250 milhões.

Só a oposição não vê isso.

Jornalista e professora da PUC-Rio.

Fonte: O Estado de S. Paulo, 18/11/2012

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Discutindo o ENEM (Roberto Beling)

Principais tópicos da apresentação do  professor Francisco Soares, especialista em avaliações da Universidade Federal de Minas Gerais e membro do Conselho Nacional de Educação, no encontro "Educação em Pauta", tendo como foco a discussão do ENEM e TRI,  promovido pelo Movimento todos pela educação.

Apresentação está focada na análise de resultados das avaliações de desempenho de forma geral.
Segundo ele, os indicadores de resultados devem refletir acesso à escola e trajetória regular das crianças.
A trajetória regular é medida pela taxa de escolarização líquida. 
Se essa taxa for alta, no Ensino Fundamental, significa que os alunos entre 6 e 14 anos estão na série em que deveriam. 
No Ensino Médio, essa taxa foi de 51,6% em 2010. Isso mostra que metade da população de 15 a 17 anos não está nessa etapa.
Como verificar se os alunos aprenderam o que foi ensinado?
A medida do aprendizado deve ser dada por dois tipos: prova e teste. São coisas diferentes.
A prova, segundo o professor Chico Soares, baseia-se na seleção. Já o teste é diagnóstico. 
O que está fora da escola impacta dentro da escola. O nível socioeconômico é essencial para isso. 
"Quando o nível socioeconômico não é usado, a informação é de má qualidade".
O nível socioeconômico tem correlação fortíssima com a renda per capita.
Para o  professor Chico Soares o Enem deveria divulgar a média por nível: insuficiente, básico, adequado e avançado.
A comparação deve se dar entre escolas semelhantes. E precisa "ser informativa",
"A maneira de divulgar os dados das avaliações não traduz a complexidade da Educação".
"Políticas públicas deveriam ser baseadas em análise mais apurada dos dados. Na Educação, ainda não temos isso".  
O efeito escola é quantos pontos a escola acrescenta à nota do aluno por suas políticas e práticas internas.
"Para ver melhor as escolas, precisamos tirar delas o que não é delas. É a família, o fator socioeconômico".
Para medir esse efeito escola, temos que retirar do desempenho o que e devido características sociodemográficas.
Há escolas de altos efeitos em todas as regiões do País, nas redes municipais e estaduais.
"É preciso dar visibilidade às escolas que estão dando certo, porque elas existem".
A divulgação do Enem por escola deste ano tem uma novidade: serão 5 notas e não mais só a nota geral .
"Neste ano, dificilmente uma escola vai aparecer em primeiro lugar em todas as áreas do conhecimento do Enem".
"Temos que olhar onde um escola está e o quanto ela melhorou".
"Também não podemos demonizar as escolas que estão bem. Vai haver flutuações mesmo".
Fatores dificultadores da gestão escolar: tamanho da escola, turnos de funcionamento, modalidades ofertadas e número de alunos por turma. 
 Esses fatores, segundo Chico, somam-se ao socioeconômico e devem ser analisados.
"Temos questões técnicas na Educação. A TRI é uma necessidade de ter uma medida. No entanto, foi mal comunicada".
É preciso comparar sim, mas com quem é comparável", diz Chico Soares sobre os dados e notas de escolas.
Não se pode reduzir a medida ao ranking. Ele é extremamente pobre e instável", diz Chico Soares sobre o ranking do Enem.
São esses os principais pontos abordados pelo professor essa manhã no seminário do Todos pela Educação. Creio que o Movimento logo disponibilizará a palestra para os interessados. 
É só procurar no site do Movimento.
Roberto Beling