O presidente esquecido e resgatado pela história
“João Goulart — Uma Biografia” é uma poderosa contribuição à memória
do país, ao materializar anos de pesquisa a respeito de um período pouco
estudado da política brasileira: os anos Goulart, que culminaram com o
golpe de 1964
Salatiel Soares Correia
Espacial para o Jornal Opção
31 de março de 1964. Dois homens poderosos travavam um diálogo
decisivo, que mudaria os rumos do Brasil. Estava em jogo a normalidade
democrática, no país sob a ameaça de avanço do comunismo. Militares, a
classe trabalhadora, os sindicatos, as ligas camponesas, enfim, a
sociedade brasileira vivia naquele momento um clima bastante tenso. Os
Estados Unidos, do presidente Lyndon Johnson, estavam informados e
pronto a agir e, caso necessário fosse, enviariam porta-aviões
americanos para a costa brasileira. Não foi preciso, os militares
brasileiros agiram.
Posto isso, reproduzamos o dialogo em questão:
— Presidente, o senhor é capaz de me prometer que vai se desligar
dos comunistas e decretar medidas concretas a esse respeito?
— General, sou um homem político. Tenho compromisso com os partidos e
não posso abandoná-los ante a pressão dos militares. Não posso também
deixar de lado as forças populares que me apoiam.
— Então, presidente, nada podemos fazer. E isto é a opinião dos generais aqui presentes.
Ao escutar isso, fiel ao seu estilo, o presidente tentou negociar o que àquela altura mostrava ser um conflito inegociável.
— Por que o general não vem ao Rio, conferenciar comigo e com os demais
comandantes do Exército? Creio que arranjaremos as coisas.
— Não posso atender, presidente. Tenho compromissos com a linha de
conduta que tracei para mim desde quando ministro da Guerra, contra o
comunismo e em defesa do Exército, e não posso traí-la.
Estava deflagrado o estopim para revolução (ou golpe) de 1964.
Calaram-se por mais de 20 anos as liberdades democráticas no país.
Os atores desse diálogo histórico por telefone, repleto de tensão, eram
os dois mais poderosos homens do Brasil: de um lado, o presidente da
República, João Belchior Goulart, mais conhecido por Jango; de outro,
seu amigo, compadre e poderoso comandante do segundo Exército, general
Amaury Kruel.
Quem estava com a razão? Difícil responder ante o calor dos
acontecimentos. Eram, ambos, homens de caráter. O presidente estava
sendo fiel às suas bases de apoio, centradas nas esquerdas e nos
sindicatos; o general, caso não agisse, correria o risco de perder a
legitimidade no comando das tropas.
É procurando retratar esse importante período histórico da nossa vida
política que um brilhante historiador da Universidade Federal
Fluminense, Jorge Ferreira, prestou uma enorme contribuição à memória
política do país, ao materializar anos de pesquisa a respeito de um
período pouco estudado e até certo ponto esquecido da política
brasileira: os anos Goulart, que culminaram com a revolução (ou golpe)
de 1964.
A obra se torna mais completa por incluir um período pouco conhecido da
vida do ex-presidente João Goulart: os sofridos anos de exílio no
Uruguai e na Argentina.
A obra é grandiosa pela posição do autor durante a gestação de seus
escritos: procurou tão somente compreender e apontar os fatos, sem
exercer qualquer espécie de paixão ante os acontecimentos. “João Goulart
— Uma Biografia”, do professor Jorge Ferreira, é o mais completo relato
da era Jango.
Herdeiro do getulismo
Oriundo de uma das famílias mais ricas dos pampas gaúchos, João Goulart
herdou uma sólida fortuna dos pais. Dotado de um faro inegável para os
negócios, Jango era, como ele mesmo se definia, um estancieiro.
Multiplicou seu patrimônio ao ponto de se tornar o maior pecuarista do
Rio Grande do Sul.
Foi esse Jango, amigo dos filhos de Getúlio Vargas, que conviveu com a
velha raposa no seu exílio em São Borja. No momento do maior ostracismo
político, ele se tornou o amigo de todas as horas. Vargas viu nele um
talento que seus próprios filhos não tinham: a vocação política.
De volta ao poder, agora pelos braços do povo, Getúlio se tornou
novamente presidente da nação brasileira. A partir daquele momento, a
carreira política do deputado estadual João Goulart alçou voo nacional.
Secretário do Interior e Justiça do Rio Grande do Sul, já eleito
deputado federal, chegou a ministro do Trabalho. No ministério, Jango se
revelou o grande executor do trabalhismo varguista. Sua devoção no
atendimento às demandas provenientes das classes populares confundiu as
elites econômicas do país. Elites, aliás, a que Jango pertencia. Era um
paradoxo.
João Goulart, ministro do Trabalho dos tempos democráticos do
getulismo, teve de lidar com um Brasil bastante mobilizado para as lutas
políticas. Sua extrema preocupação com os mais desamparados não
combinava com o homem rico, oriundo da nata da sociedade rio-grandense.
Não se tratava de estratégia política. Jango era mesmo assim: um homem
simples e bondoso.
A respeito do modo Jango de ser, conta-nos Jorge Ferreira que “a
atuação de Goulart no ministério chocou amplos setores conservadores da
sociedade brasileira — civis e militares. Afinal, um homem nascido entre
as elites sociais, rico empresário rural, exercendo um cargo
ministerial estava recebendo, em seu próprio gabinete, trabalhadores,
sindicalistas e pessoas comuns, a maioria de origem social humilde”.
Chegava ao ponto de tirar dinheiro da carteira quando antevia
impedimentos burocráticos para resolver problemas dos desfavorecidos que
diretamente o procuravam. E mais que isso: era comum encontrar o
ministro do Trabalho de Getúlio nos subúrbios cariocas participando de
festas. “Muito comuns, por exemplo, eram convites para jantar em
embaixadas”. Jango sempre mandava representante, pois preferia “estar
com sindicalistas e pessoas do povo”. João Pinheiro Neto, amigo próximo e
auxiliar, atesta a maneira leve e educada de ser do ex-presidente. Para
ele, “Jango era um homem extremamente educado, incapaz de indelicadezas
e de exercitar qualquer espécie de autoritarismo. Jamais se referia
negativamente a quem quer que fosse, mesmo aos seus desafetos mais
exaltados e mais intolerantes”. Depoimento similar é o de Wilson Fadul,
outro auxiliar próximo: “Ele não fazia reclamações de ninguém. Nunca
ouvi dele uma palavra grosseira em relação aos inimigos, mesmo no
exílio. Tratava-se de uma pessoa extremamente bem-educada”.
Era comum também encontrá-lo na companhia das mais bonitas e desejadas
vedetes da época de ouro da noite carioca: as de Carlos Machado.
“Solteiro, galanteador, conhecia as melhores casas noturnas.” Foi um
eterno namorador, mesmo depois de se casar tardiamente com a bela Maria
Tereza Goulart, oriunda da classe média de sua cidade natal, São Borja.
Era um pai amoroso, um marido extremamente apaixonado pela esposa, mesmo
dando suas conhecidas “puladas de cerca”.
O marido de dona Maria Tereza tinha uma grande qualidade, cada vez mais
incomum nos dias de hoje, quando se trata de homens públicos: era
incorruptível. Quanto a essa qualidade pessoal de Jango, Jorge Ferreira
reproduz em seus escritos o testemunho do mais próximo assessor, Hugo de
Faria. Este entrava no gabinete do então ministro sem bater à porta.
Numa dessas entradas testemunhou uma conversa de Jango com outro nome de
expressão da época, o ministro da Fazenda Osvaldo Aranha, a respeito de
um estranho pedido, “na conversa, o ministro do trabalho pedia cinco
milhões de cruzeiros”. De imediato, pensou: “mais uma negociata, que
horrível”. Logo percebeu que estava enganado: não se tratava de
corrupção, pois naquele momento Jango desgastava seu prestígio político
com o ministro da Fazenda em torno de uma causa nobre, típica do
trabalhismo getulista: obter garantias para os trabalhadores sem
emprego. A partir daquele momento, o austero Hugo de Faria passou a
admirar o herdeiro político de Getúlio Vargas e a e crer na sua
sinceridade de propósitos.
O suicídio de Vargas
Se existe um acontecimento que causou profundos danos emocionais a
Jango foi o suicídio de Getúlio Vargas. Goulart perdeu não só o seu
mentor político, mas o homem que amava como se ama a um pai. Era um amor
recíproco. Até no último momento de sua vida a confiança da velha
raposa dos pampas em Jango era irrestrita. A ponto de Getúlio, antes do
suicídio, entregar-lhe um documento importante, que só seria aberto
depois da sua morte: sua carta testamento. No sepultamento, veio a
emoção: Jango chorou. Chorou abalado não só pelo conteúdo da carta, mas
pelo discurso que tinha acabado de fazer à beira do túmulo. “Até a
volta, doutor Getúlio Vargas. Vai como foram os grandes homens. Tu que
soubeste morrer, levas neste momento o abraço do povo brasileiro, levas o
abraço dos humildes, levas o abraço daqueles que de mãos calejadas e
honradas constroem a grandeza da nossa pátria. Nós estamos contigo e
contigo está o povo brasileiro.”
Assim se despediu do seu mentor político e assim se manteve fiel ao
ideário trabalhista. O suicídio de Getúlio Vargas manteve seu herdeiro
político mais vivo que nunca. Candidato a vice-presidente na chapa de
Juscelino Kubitschek — aliança PSD e PTB — Jango viu atestada sua imensa
popularidade. Teve mais votos que o presidente eleito, fato que, a
princípio, não deixou de provocar certo ciúme em Juscelino. Ciúme
apagado pelo tempo, pois Jango e Juscelino se tornaram não só aliados
políticos, mas amigos íntimos. Foram incontáveis as vezes que decisões
importantes para o país foram tomadas na cozinha do apartamento de
Jango, no Rio de Janeiro. Em todas elas, o ritual era o mesmo: Jango
diante de um de seus passatempos preferidos — cozinhar. Cozinhar tendo
como convidado frequente aquele mineiro lá de Diamantina que, por
acaso, era o presidente da República.
Findo o governo JK, a presença de Jango — sedimentada por sua imensa
popularidade e pelo legado getulista — continuou mais viva que nunca no
primeiro time da política nacional. Novamente candidato a
vice-presidente, agora na chapa de Jânio Quadros — a chapa Jan-Jango —
ganhou as eleições. Iniciava-se assim o governo que não terminou: o de
Jânio Quadros que, como todos sabem, logo renunciou. Atribui-se essa
renuncia a um errôneo cálculo político de Jânio, que tinha a intenção de
voltar nos braços do povo.
Jango estava numa viagem à China no momento da renúncia de Jânio
Quadros. Aliás, uma viagem bem-sucedida, ante a amabilidade do líder Mao
Tsé-Tung e do discurso que fez para mais de 10 mil chineses.
Viagem à China, reforma agrária, incentivo à organização sindical,
politização das Forças Armadas. Certamente, esses foram ingredientes que
influenciaram para que parcelas dos militares se insurgissem contra
aquilo que não queriam: João Goulart presidente do Brasil.
Eis aí o estopim para o desencadeamento de um importante movimento
deflagrado pelos então governadores do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola
(cunhado de Jango) e Mauro Borges Teixeira, de Goiás: a Cadeia da
Legalidade, que possibilitou a posse do vice-presidente e a saída
negociada para uma breve experiência de mudança no sistema político do
país: o parlamentarismo.
A cadeia da legalidade
Estando João Goulart em missão oficial na China — viagem
maquiavelicamente orquestrada por Jânio Quadros, com o intuito de
reforçar a imagem de ligação de Jango aos comunistas —, o país ficou sem
comando político. Parcela dos militares resistia à posse de Jango. Ante
a incerteza da posse, nascia assim o movimento que ficou conhecido na
história brasileira como Cadeia da Legalidade, comandada pelo então
governador Leonel Brizola, com participação ativa do chefe do Executivo
goiano, Mauro Borges Teixeira.
Por essa razão, os transmissores da rádio gaúcha Guaíba foram
transferidos para a sede do governo gaúcho, no Palácio Piratini. De lá,
Brizola comandou a cadeia radiofônica composta por 150 rádios do Rio
Grande do Sul, que transmitiam para o Brasil e para o exterior, em
inglês, espanhol e alemão, pronunciamentos que exaltavam a importância
de se manter a ordem legal do país. E essa legalidade só poderia ser
mantida com a posse do vice-presidente, que se encontrava no exterior.
Quanto à importância desse movimento, Jorge Ferreira nos relata em seus
escritos que “a Cadeia da Legalidade foi de fundamental importância
para o movimento, ao difundir mensagens de diversas entidades políticas e
grupos sociais na defesa da ordem democrática”. E acrescenta: “Angariou
a simpatia da opinião pública internacional. Nos microfones, Leonel
Brizola desacatava os movimentos militares, desmoralizando-os
publicamente”.
Avaliando a importância desse movimento na lupa do tempo, creio ser
possível compreender a razão de tanta resistência dos militares contra o
cunhado de Jango. Daí vem a dúvida: não seria a cassação de Brizola e a
perda da histórica legenda trabalhista, entregue ao fisiológico PTB da
então deputada Ivete Vargas uma retaliação à atuação de Brizola nos
tempos da Cadeia da Legalidade? Não seria o crescimento do Partido dos
Trabalhadores a aposta numa oposição mais confiável que a comandada pelo
PDT de Brizola? Infelizmente, o velho bruxo Golbery do Couto, grande
estrategista e homem de inegável inteligência, não está mais entre nós
para dirimir essas dúvidas.
O parlamentarismo no Brasil
A cena não poderia ser mais apropriada: uma multidão aguardava na sede
do Palácio Piratini, em Porto Alegre, a volta de Jango para tomar posse
como legítimo presidente da República dos Estados Unidos do Brasil.
Porto Alegre resistira, o Brasil resistira, Brasília o esperava.
Todos o queriam. Todos se sacrificaram a ponto de exporem suas vidas,
ante a divisão das Forças Armadas, na iminência de um enfrentamento
bélico. Todos estavam ali esperando pelo seu discurso, que simbolizaria
uma tomada de posição em prol do presidencialismo. Jango aparecia na
sacada do palácio e acenava, mas nada falava. A cena se repetia: a
multidão gritava, e ele continuava mudo. Impaciente, o povo,
desconhecendo o que ocorrera nos bastidores para tal atitude, começou a
gritar: Covarde! Covarde! “Relatos afirmam que várias mulheres tiraram
as roupas íntimas e as ofertaram a Jango. Para um homem como ele, era
humilhante.”
Jango pagou o preço para evitar a luta armada no Brasil: teve de
negociar, do Uruguai — tendo Tancredo Neves como interlocutor —, três
pontos de que o Exército não abria mão: o silêncio, a não ida do cunhado
a sua posse e a mudança do presidencialismo para o sistema
parlamentarista. A decisão de Jango evitou o sacrifício da vida de
milhares de brasileiros. Julgue o leitor por si mesmo a justificativa
dele ao cunhado: “Olha Brizola, se nós podemos ter um entendimento e
chegar ao governo com alguns poderes diminuídos, o importante é que
cheguemos lá e evitemos o derramamento de sangue. Depois é depois. Nós
evitamos o conflito, porque, em uma guerra civil, conflitos dessa
dimensão, a gente sabe como entra, mas depois não sabe nunca como sai”.
Do presidencialismo à queda
A experiência parlamentarista mostrou ser inadequada, dividia o poder
entre o primeiro-ministro e o presidente. E um presidente fraco carecia
de autoridade para implementar no país a principal bandeira do
trabalhismo: as reformas de base, principalmente a maior delas — a
agrária.
Com a volta do sistema presidencialista, Jango, fiel ao seu estilo de
hábil negociador, tentava, sem reprimir, frenar o avanço avassalador que
tiveram as esquerdas em seu governo. Crescia a pressão dos sindicatos,
das ligas camponesas — principalmente a comandada por Francisco Julião —
e crescia algo que inquietava cada vez mais os militares: o partido
comunista. Seu estilo negociador era visto pelos adversários como
fraqueza. E Jango não era fraco, nem tampouco comunista. Quanto a isso,
ele mesmo diz: “Não sou nem nunca fui comunista. Minha política foi
eminentemente nacionalista, e foram os monopólios nacionais e
estrangeiros que fomentaram a revolta, preocupados com as leis de
nacionalização do petróleo e da reforma agrária. Além disso, minha
política beneficiou uma enorme massa de deserdados do povo brasileiro”.
Uma série de episódios influenciaram para a queda do presidente João
Goulart. Todos esses acontecimentos sinalizavam a clara opção política
de Jango no sentido de marchar com as esquerdas em torno de sua
principal bandeira: as reformas de base.
Não resta dúvida de que o mais significativo gesto nesse sentido
ocorreu no dia 13 de março de 1964, quando Jango tomou uma importante
decisão pessoal: ir ao comício da Central do Brasil. Para as esquerdas, a
ida do presidente a esse comício representou explicito apoio às
reformas sociais em gestação no país, tendo a reforma agrária como a
principal delas. Entretanto, para a direita, o fato serviu de alerta.
Alerta em torno do que há certo tempo já se articulava: o rompimento do
jogo democrático.
Embora esse acontecimento tenha sido o mais significativo, outros
ajudaram a sedimentar a revolução (ou golpe) de 1964. Por exemplo, o
apoio do governo aos escalões inferiores das Forças Armadas. Esse apoio
era visto pela cúpula militar como quebra de dois princípios invioláveis
para a caserna: da hierarquia e da disciplina. As constantes mudanças
nos ministérios militares, o apoio a associações de sargentos, soldados e
cabos era malvista pelos escalões superiores das três armas. Nesse
sentido, sua ida à festa do Automóvel Clube, na posse dos sargentos, e o
apoio à rebelião dos marinheiros foram sedimentando cada vez mais a ira
de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. A revolução
(ou golpe) foi o resultado de um complexo processo que uniu toda a
direita da política brasileira a um parceiro muito temeroso do avanço do
comunismo: os Estados Unidos. Mais uma vez, a história se repetia:
Jango quis evitar o derramamento de sangue. Antevia uma sangrenta guerra
civil. O espírito guerreiro de Brizola insistia na resistência armada. O
espírito conciliador de Jango preferiu o exílio. Caiu de pé. Disse ao
cunhado, ao decidir-se pela retirada: “Eu verifico o seguinte: que a
minha permanência no governo terá de ser à custa de derramamento de
sangue em defesa do meu mandato. Seguirei para algum lugar do país, onde
aguardarei os acontecimentos. Não renunciarei, entretanto. Mande tomar
as providências para me dirigir ao aeroporto”. Ao ouvir isso Brizola,
retrucou: “Tu nunca mais vais voltar para o Brasil deste jeito”. Não
poderiam ser mais proféticas as palavras do então governador do Rio
Grande do Sul. Jango nunca mais voltou.
O exílio sem volta
Banzo, o eterno desejo da volta à terra natal. Certamente foi esse o
sentimento que mais corroeu o ex-presidente no seu longo exílio sem
volta. Ao contrário do que se especulou, há fortes evidências de que
Jango não morreu envenenado. Seu biógrafo vai, ao longo de seus
escritos, mostrando os constantes sintomas que sinalizavam problemas
cardíacos. Não gostava de ir a médicos. Aliado a isso, cultivava maus
hábitos para uma pessoa com problemas cardíacos. Bom de garfo, amante de
comidas gordurosas, apreciador de uísque, fumante inveterado. Fatores
que contribuíram para o seu falecimento aos 57 anos.
Logo no seu primeiro ano de exílio, envelheceu consideravelmente.
Embora fosse riquíssimo no Brasil, Jango chegou com poucos recursos no
Uruguai. Sua vida e sua fortuna foram vasculhadas e nada que o
desabonasse foi encontrado. A origem desta era absolutamente lícita. Ao
perceberem isso, os militares deixaram de implicar com seus bens.
Com um faro inato para perceber oportunidades, tudo em que Jango punha a
mão gerava dinheiro. No intervalo em que teve a vida vasculhada, com
poucos recursos disponíveis, logo voltou a ser um homem rico no Uruguai.
E mais rico ainda ficou com a liberação de seus negócios no Brasil,
comandados por gente de sua confiança. Chegou a ser um dos maiores
investidores na economia uruguaia.
Não obstante, Jango era um homem bastante generoso. Recebia várias
cartas com pedidos de ajuda e nunca se negava a auxiliar os que
precisavam. Mais de uma centena de pessoas dependia diretamente do
auxílio do herdeiro do getulismo.
No exílio, teve de conviver com as eternas picuinhas do governo
brasileiro: recusa de concessão de passaporte brasileiro, vigilância
constante do Serviço Nacional de Informações, pedidos negados de
regresso ao país e até dificuldades, depois de morto, para que fosse
enterrado em São Borja, sua terra natal.
Com o endurecimento do regime uruguaio, recebeu convite do presidente
Juan Domingo Perón para migrar para a Argentina. Viveu seus últimos anos
em Buenos Aires. Perón sabia de suas habilidades e, por desfrutar da
amizade do chefe do governo argentino, Jango acabou se tornando um
auxiliar próximo. No entanto, o cunhado de Brizola carregava consigo a
tristeza do banzo. Infelizmente, a previsão de Leonel estava certa:
Jango não conseguiu em vida retornar à terra que tanto amava.
O julgamento da história
A política nos ensina a enxergar o propósito de suas ações. A boa ação
política visa sempre o bem comum; a má ação, o bem próprio. Nada mais
verdadeiro, na política rasteira, de que “os fins justificam os meios”.
Se existe um político brasileiro que fez questão de não se valer dessa
máxima — e até a combateu —, esse homem público se chama João Belchior
Goulart. A imagem de fraqueza que lhe foi atribuída pelos adversários e
por parcela das Forças Armadas mostrou ser inverídica. Coisas assim, só o
tempo revela.
Não tenham dúvidas de que episódios como a opção pelo exílio e pelo
parlamentarismo evitaram sangrentas guerras civis nos momentos de maior
agitação e mobilização do país. Os meios, lícitos, determinaram os fins
conquistados. Alie-se a isso a habilidade de Jango para negociar em
momentos de grande tensão. Seu temperamento ajudava. Era um homem calmo,
educado e muito tratável.
Creio ser oportuno, no momento em que encerro este ensaio, resgatar a
imagem da infância de Getúlio Vargas, relatada na seminal biografia de
autoria do jornalista Lira Neto. Getúlio recorda que, nos momentos de
ira paterna, se escondia no alto de um umbuzeiro e de lá só descia
quando a raiva do pai, ante o seu “sumiço”, se transformasse em
preocupação.
O líder político que mais tempo mandou no Brasil disse que também agiu
assim nos momentos de grande tensão que teve de enfrentar. Só “descia do
umbuzeiro” na hora certa, no momento adequado. Agiu assim na revolução
de 1930, pois só abraçou a causa de fato no momento em que a situação
estava delineada. Só nesse momento tomava uma decisão. Isso, em
política, se chama astúcia.
Jango não mostrou ter a mesma astúcia do padrinho. Sua decisão de
seguir com os movimentos de esquerda foi tomada quando a situação ainda
não estava delineada. Desceu do umbuzeiro na hora errada. Pagou um alto
preço por isso. 1964 e os duros anos da ditadura nos mostraram uma nova
realidade, sem as liberdades democráticas. Entretanto, João Goulart foi
um político sincero e obstinado. Tinha um projeto para o Brasil,
projeto esse totalmente inserido no nacionalismo getulista. Tem seu
lugar na história política do país. Vem de uma época que já não existe
mais. Uma época em que o exercício da atividade política era sinal de
grandeza.
Salatiel Pedrosa Soares Correia é engenheiro, bacharel e mestre em Planejamento. É autor, entre outros , do livro “Goiás, a Globalização e o Futuro”.