Os estudantes chilenos têm razão, ao menos na sua reivindicação original, de reforma radical no sistema de ensino do país. Isso é o que pensa uma ampla maioria dos cidadãos, segundo informam as pesquisas de opinião. Todas as evidências disponíveis revelam que o modelo ultraliberal imposto à educação pela ditadura de Augusto Pinochet é incompatível com a democracia. O surpreendente não é a revolta que se espraia pelas cidades do Chile, mas a longa convivência dos governos de centro-esquerda da Concertación com um modelo intolerável.
A Lei Orgânica Constitucional de Educação de Pinochet, adotada em 1980, municipalizou as escolas públicas, desde a pré-escola até o secundário, e criou um sistema de vouchers (abonos) pelo qual o governo subsidia, em valor uniforme, os gastos familiares com a educação. Dessa lei surgiu um modelo baseado em três tipos de escolas: públicas (municipais), privadas subsidiadas e privadas pagas. Todas as escolas públicas passaram a gozar de autonomia pedagógica, com a abolição dos currículos nacionais, e de autonomia administrativa, com a supressão da contratação pública de professores mesmo nas escolas municipais.
Milton Friedman, o "pai fundador" da célebre Escola de Chicago, visitara Santiago em 1975 e oferecera a Pinochet um esboço de programa econômico. Os "Chicago Boys", economistas chilenos formados nos EUA sob a tutela de Friedman, conduziram as reformas, inspiradas no dogma do mercado perfeito. A lei educacional estendeu o dogma à esfera do ensino, fazendo do Chile um campo de provas de uma doutrina que enxerga no Estado a fonte exclusiva do Mal. No novo "mercado da educação", a livre concorrência produziria um máximo de eficiência econômica e de qualidade de ensino. A experiência fracassou em tudo, exceto na sua meta implícita de comprimir os gastos nacionais com a educação.
Os testes internacionais do PISA, promovidos pela OCDE, mostram que a educação chilena é a menos ruim da América Latina (excluindo-se o México) - mas ela provavelmente já ocupava tal lugar antes de Pinochet. Contudo, atestam também que, entre os 65 países participantes, o Chile figura na penúltima posição em termos da variância dos resultados segundo a classe de renda dos estudantes. Os alunos de escolas privadas pagas alcançam resultados invejáveis, enquanto seus colegas das escolas municipais não atingem os níveis mínimos de aprendizado em leitura, matemática e ciências. No meio do caminho, situam-se os jovens das escolas privadas subsidiadas.
Há um rígido, malévolo apartheid educacional, que brilha à luz inclemente das estatísticas desagregadas. Nos testes do PISA, as escolas privadas subsidiadas dos bairros de classe média saem-se bem melhor que as escolas similares das periferias populares. A explicação é simples: nas primeiras, ao contrário das segundas, as famílias pagam taxas complementares ao valor dos vouchers. As escolas privadas das periferias não têm nenhum incentivo para oferecer um ensino melhor que o das arruinadas escolas públicas. Aprende-se precisamente aquilo que se paga - eis a essência do modelo educacional darwinista implantado no Chile.
A mensagem original dos estudantes chilenos já quase não é audível, após a onda de repressão policial que desviou os protestos para os arredores da exigência de derrubada do governo de Sebastián Piñera. As nações introduziram a educação pública no quadrante histórico da consagração dos direitos de cidadania. Na direção oposta, os "Chicago Boys" definiram os jovens como consumidores de educação. Os estudantes chilenos deflagraram seu movimento dizendo que a educação pública não deve ser identificada a um bem econômico comum e submetida à lógica dos mecanismos de oferta e procura. Eles estão rejeitando um sistema que apaga a palavra "cidadão", substituindo-a pelo termo "consumidor".
O núcleo da mensagem chilena serve perfeitamente para o Brasil. Por aqui, nas duas últimas décadas, os gastos com educação não se reduziram, mas aumentaram. Contudo, eles não chegam aos professores que estão nas salas de aula. Sob um sistema perverso, os mestres ganham mal e não são avaliados segundo critérios de mérito. O Chile é aqui: em média, os alunos de escolas públicas aprendem muito menos que os das escolas privadas.
No Brasil, não temos vouchers, mas um modelo de educação pública estatal altamente burocratizado no qual se acomodam tanto os interesses das elites políticas estaduais e locais quanto o poder corporativo dos sindicatos de professores. No fim das contas, convivemos com um apartheid educacional inflexível, que se estende da pré-escola ao ensino superior. O Chile é aqui: a renda familiar determina a qualidade de ensino recebida pelos jovens.
Entretanto, num aspecto crucial, o Chile não é aqui. As entidades estudantis chilenas que organizam os protestos em curso já fustigavam, há anos, o governo de centro-esquerda de Michelle Bachelet. No Brasil, pelo contrário, as principais entidades estudantis funcionam como extensões do PT e do PCdoB. Financiadas pelo governo, a UNE e congêneres incensam seus patronos, não se furtando nem mesmo a aplaudir os disfarces mais óbvios de nosso apartheid educacional. Elas celebram o ProUni, pelo qual o governo concede "vouchers fiscais" aos empresários do ensino superior enquanto condena os estudantes de baixa renda a preencher vagas ociosas nas piores faculdades privadas. Na mesma linha, celebram as cotas raciais que separam jovens oriundos das escolas públicas pela cor da pele, introduzindo uma fronteira política de raça na consciência dos filhos de trabalhadores.
A "UNE" deles tem razão. Os líderes estudantis chilenos, apoiados por uma maioria esmagadora dos cidadãos, estão dobrando a resistência do governo. A "nossa" UNE, estatizada pelo lulismo, prefere os palácios às ruas. João Carlos Di Genio deveria agradecer por escrito.
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.
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