domingo, 18 de setembro de 2011

Nosso Estado de sinecuras (José de Souza Martins)

Vícios do tempo da corte ainda norteiam a concepção do mandato: o eleito assume levando consigo ideias de poder e "direitos" ilegais

Sai um ministro do Turismo representante do Maranhão e entra outro ministro do Turismo também representante do Maranhão. Ambos apadrinhados de um senador que representa os interesses do Maranhão, mas se elege pelo Amapá. É nesse nó que está o modelo estrutural da trama do Brasil oligárquico, o Brasil que manda, mais do que o Brasil que governa. De comum entre eles há o fato de que nenhum dos dois entende nada de turismo. E isso importa pouco. O que importa é ter poder.

Nesse nó está o miolo do que é a democracia brasileira e está também a matriz estrutural da corrupção, que dela se nutre. No currículo do ministro que entra, o uso de suas funções federais para concretizar obras municipais, deputado federal atuando como prefeito e vereador quando, para isso, já existem as instituições e os mandatos municipais. No currículo do ministro que sai, constam as suspeitas de que, durante anos, pagou com dinheiro público a governanta de seu apartamento em Brasília e o motorista particular de sua mulher, além de referências à liberação de recursos para empreiteiras fantasmas em seu Estado. Há aí uma mentalidade de corte na concepção do mandato. O eleito carrega consigo ideias de poder pessoal e arcaicos e ilegais direitos de prebenda, que no passado eram as rendas vitalícias dos canônicos. No período colonial, eram eles os chamados "pais da pátria", patriarcas de largas famílias de parentes e agregados que se abrigavam sob sua proteção segura. Muitas das figuras da nossa política ainda pensam e agem assim.

Naquele tempo, pátria era ainda a localidade do pai da extensa parentela. Com o tempo, os "filhos da pátria" e de pais economicamente decadentes foram se abrigando nas funções públicas e nas chamadas mamatas, nutrindo-se do peito farto e generoso do Estado. O Estado brasileiro ainda é mais um Estado prebendário do que um Estado democrático.

O município, na história brasileira, nasceu republicano e em oposição e limitação aos poderes centralizados da Coroa. Coroa com poderes mais simbólicos do que reais, em boa parte assentados na religião, valeu-se dos bens privados dos súditos para instituir o público do governo, recompensando os particulares com honrarias que se transformavam em poder e dinheiro. Alternativo e oposto ao poder centralizado e tendencialmente antidemocrático, o município capturou e subjugou desde cedo os ímpetos democráticos dos setores esclarecidos da opinião pública, que lentamente se difundiram entre nós.

Como já assinalou Victor Nunes Leal, nossa história política tem sido a do movimento pendular que alterna centralização e ditadura, de um lado, e descentralização e democracia, de outro. Descentralização significa entre nós o protagonismo político do município e nesse marco nossa democracia é prisioneira há muito do localismo antiquado, essencialmente antidemocrático, pois se apoia ainda em resquícios de poder pessoal. Não é à toa que nosso senso comum político veja com simpatia a ditadura, tida indevidamente como punitiva e "honesta", e considere a democracia como sinônimo de impunidade e corrupção. É que, na verdade, "nossa" corrupção é expressão de atraso e arcaísmo, apoiada nas nossas mais antiquadas tradições políticas, a do tudo pode do patriarcalismo ainda forte nas províncias remotas do País. Remotas porque politicamente distantes do mundo moderno.

Não é estranho outro episódio de corrupção, destes dias, ocorrido no Rio de Janeiro. PMs cooptados pelo tráfico, com propina entregue em casa, para se manterem nos postos policiais em vez de fazerem rondas na favela, especialmente nos fins de semana, dias de maior movimento e comércio de drogas. Tornaram-se funcionários do crime, vestindo farda e recebendo salário do governo do Estado. Não é estranho porque, remotamente, nossas polícias surgiram como alternativa para o jagunço privado dos potentados locais, quando se constituiu o Estado nacional. Quando do combate ao cangaço, nos anos 20 e 30, literalmente não havia diferença entre a composição dos bandos de cangaceiros e a composição da polícia que os combatia. No fundo, os policiais não atuavam como agentes do serviço público, mas como cangaceiros do Estado. A mentalidade era a mesma. O recrutamento dos policiais ainda se dá na camada da população mais próxima da mentalidade localista, para a qual os valores e distinções de público e privado são tênues e em que a farda legitima ímpetos de poder pessoal e não a impessoalidade do Estado.

Um dos erros na análise da corrupção no Brasil é o de tratá-la como anomalia e corpo estranho tanto na sociedade quanto no governo. Como se tivéssemos um sistema político instituído sobre a premissa da honestidade e uma sociedade movida e motivada pela ética. Essa história vem de longe. Morrem os velhos corruptos e longe do mal se extinguir, logo há vários para substituí-lo. As estruturas profundas da sociedade brasileira encarregam-se de regenerar a corrupção e a mentalidade que lhe corresponde.

José de Souza Martins, sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de A política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

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