O Terceiro Reich no Poder, de Richard J. Evans, puxa a fila de lançamentos no País de livros que esmiúçam o percurso de Adolf Hitler e de seu criminoso regime
Marcos Guterman - O Estado de S. Paulo
O recente lançamento no Brasil de uma série de livros sobre o nazismo mostra que o tema começa a ganhar um espaço inaudito por aqui. É certo que ainda faltam títulos fundamentais, como The Destruction of European Jews, de Raul Hillberg, e Hitler: A Study in Tyranny, de Alan Bullock, e a produção acadêmica brasileira sobre o assunto engatinha. Mas a barbárie nazista, que está longe de perder a atualidade ante a persistência do discurso totalitário, deixou também suas terríveis marcas no Brasil. O envolvimento do País na guerra, a questão dolorosa dos imigrantes judeus em fuga, o suposto antissemitismo do governo Vargas, o interesse dos nazistas pela Amazônia, tudo isso é objeto de pesquisas que põem o Brasil no mapa do Terceiro Reich. Algumas delas estão nesta edição do Sabático.
Para entender o complexo processo que engendrou o nazismo e o colapso da civilização por ele representado, o melhor começo é a trilogia do historiador britânico Richard Evans sobre a Alemanha de Hitler. O segundo dos três volumes, O Terceiro Reich no Poder, chega agora ao Brasil, pela Planeta. No primeiro, A Chegada do Terceiro Reich, também da Planeta, Evans descreve as raízes filosóficas, ideológicas e culturais do nazismo, além da destruição deliberada do regime democrático para satisfazer a elite conservadora alemã ante o espectro do comunismo. No segundo, Evans mostra como Hitler, uma vez vitorioso, reordenou o Estado e a sociedade alemãs de modo a "coordenar" todas as instâncias da vida nacional - todas funcionando "na direção do Führer", isto é, segundo aquilo que se supunha fosse seu "desejo". É a edificação do totalitarismo, tijolo a tijolo, sem que houvesse oposição significativa. "Ninguém percebeu o quão cruéis e determinados os nazistas eram até que ficou muito tarde", disse Evans nesta entrevista ao Estado.
Em sua visão, os nazistas chegaram ao poder por causa da disputa entre os partidos de esquerda, ou em razão da ação dos conservadores, que queriam destruir a social-democracia e a própria República de Weimar?
Temos de lembrar que os nazistas eram o maior partido da Alemanha em 1932, ganhando 37% dos votos nas eleições de julho. Isso seria suficiente para colocá-los no poder em diversas democracias nos dias de hoje. Os conservadores em torno do presidente Hindenburg queriam usar a legitimidade popular dos nazistas para sustentar seu plano de destruir a democracia de Weimar e de estabelecer um regime autoritário e nacionalista. Nas eleições de novembro, os nazistas perderam várias cadeiras, e os conservadores acharam que era a oportunidade de cooptá-los. Hitler concordaria se fosse apontado para liderar o novo governo, de modo que, em 30 de janeiro de 1933, Hindenburg o nomeou chanceler do Reich num gabinete dominado por não nazistas. O momento crucial começou quando os nazistas converteram essa posição numa ditadura de partido único, por meio do uso cruel da força nas ruas por suas tropas de assalto e pela exploração do incêndio do Parlamento para suspender as liberdades civis. Os comunistas e os social-democratas tinham ganhado, juntos, tantos votos quanto os nazistas nas eleições de novembro de 1932, mas eles eram muito divididos e incapazes de agir em conjunto. Mesmo que tivessem agido assim, porém, eles provavelmente não teriam como combater os nazistas pela força, porque o Exército apoiava Hitler. Na Áustria, em 1934, o movimento socialista iniciou um levante armado contra a introdução da ditadura e foi reprimido pelo Exército em questão de dias.
Qual foi o peso da Noite dos Longos Punhais - o sangrento expurgo da liderança da SA, a tropa de assalto nazista - na consolidação do poder de Hitler? A sociedade alemã não deveria ter reagido contra o que era claramente um crime?
Em junho de 1934, as tropas de assalto somavam 4 milhões de pessoas e ameaçavam iniciar uma "segunda revolução", substituindo o Exército com uma milícia nacional. Os generais disseram a Hitler que ele seria deposto a menos que contivesse suas tropas. No final de junho, ele usou sua guarda pessoal, a SS, para assassinar os líderes das SA e também uma porção de figuras políticas da direita conservadora, que havia começado a manobrar para substituir o doente Hindenburg como presidente pelo chanceler Von Papen. Hitler então destruiu os elementos de oposição em seu próprio partido e articulou a implosão dos conservadores. Quando Hindenburg morreu, em agosto, Hitler se tornou chefe de Estado, e um Exército muito grato a ele concordou em fazer-lhe um juramento de lealdade. Assim como para a maioria dos alemães, eles estavam aliviados com a repressão às tropas de assalto e aceitaram a alegação de Hitler de que agira dentro da lei.
Em sua opinião, qual foi o grande erro da oposição aos nazistas?
Ninguém percebeu o quão cruéis e determinados os nazistas eram até que ficou muito tarde. Os conservadores os consideravam amadores vulgares, enquanto os comunistas pensavam que a ascensão nazista era o estágio final da decadência do capitalismo antes da revolução socialista. Todos os governos anteriores na República de Weimar duraram poucos meses, de modo que ninguém pensava que o de Hitler pudesse ser diferente. Nenhum movimento de oposição estava preparado para o uso irrestrito da força que os nazistas empreenderam. Na tomada do poder, do final de janeiro ao final de julho de 1933, mais de 600 opositores de Hitler foram assassinados, segundo os próprios nazistas.
Há historiadores que sustentam que os alemães voluntariamente aderiram ao sistema de "supervisão" da sociedade, isto é, delataram supostos dissidentes sem serem forçados a isso. Ao aceitarmos essa tese, temos de aceitar também que o papel do terror no regime nazista é menor do que se supunha. O senhor concorda?
É certamente verdade que, durante o Terceiro Reich, muitos alemães voluntariamente denunciaram oponentes do regime à Gestapo. Mas daí a dizer que foi assim que o regime manteve a ordem é ir longe demais. Nos últimos anos, historiadores têm reduzido o papel do terror e da intimidação no Terceiro Reich. Isso acontece em parte porque eles estão procurando nos lugares errados. Por exemplo, é comum se dizer que havia apenas 4 mil prisioneiros nos campos de concentração em 1935. Mas poucos historiadores perceberam que isso aconteceu porque o Estado, os tribunais e as prisões regulares estavam tomados pela tarefa da repressão política. Em 1935, havia 23 mil presos políticos nas penitenciárias estaduais. A cada ano, 5 mil pessoas eram condenadas por traição.
Há também um debate entre historiadores sobre se os nazistas fizeram ou não uma "revolução" na Alemanha. Qual é sua opinião?
Os nazistas tentaram reviver o que eles viam como o espírito da unidade nacional de agosto de 1914, início da Primeira Guerra para os alemães, e para fazer isso eles destruíram todos os partidos e "nazificaram" quase todas as instituições sociais, com exceção do Exército e da Igreja. E eles queriam evitar aquilo que viam como atividades subversivas dos judeus da Alemanha, que, segundo seu ponto de vista, haviam causado a derrota alemã em 1918. Então eles produziram leis destinadas a forçar os judeus - menos de 1% do total da população - a sair da Alemanha. Mas eles não queriam uma revolução social e, a despeito de toda a retórica de igualdade, eles deixaram a hierarquia social praticamente intacta. Além disso, eles não eliminaram o capitalismo, só o redirecionaram para seus propósitos, sobretudo a preparação para a guerra.
O senhor diz no livro que o sucesso da ambição nazista para criar um novo ser humano, permeado pelos valores nazistas, limitou-se à literatura e a outras formas de cultura alemã. É possível dizer então que, ao contrário das aparências, a mudança de mentalidade alemã não foi tão completa quanto se pensa?
Os nazistas certamente suprimiram a literatura e a cultura que eles consideravam "não germânica", e fizeram algumas tentativas de criar novas formas de cultura eles próprios. A música de judeus e compositores modernistas foi banida, e criaram uma exposição de "arte degenerada" - ou, em outras palavras, de arte moderna - para que as pessoas pudessem ridicularizá-la. A literatura nazista, que glorificava a guerra acima de tudo, era popular. Mas as formas antigas de arte continuaram. Alguns escritores se retiraram numa espécie de "emigração interior", escrevendo sobre assuntos não políticos. Velhos alemães se mantiveram ligados a valores culturais com os quais cresceram. Os nazistas eram muito melhores em destruir do que em criar.
O senhor diz que Carmina Burana, de Carl Orff, resume a ideia de cultura nazista. Por quê?
Orff era um forte opositor da música modernista. Sua cantata Carmina Burana, executada pela primeira vez em 1937, apresentava harmonia crua, ritmo brutal, tons primitivos, uma batida forte que obnubilava a mente e parecia levar a música de volta a uma simplicidade camponesa imaginária. Foi um enorme sucesso na Alemanha nazista. Não estou dizendo que era uma música ruim - longe disso. E ela foi criticada por alguns nazistas pelo uso de textos medievais. Mas, se houve nazismo em música, foi nessa.
Qual foi o peso dos protestantes no sucesso das políticas antissemitas dos nazistas?
A Igreja Protestante na Alemanha foi durante muito tempo a Igreja do Estado. Em meados dos anos 30, ela foi dominada pelos "cristãos germânicos", que declararam que Jesus não era judeu e rejeitaram o Velho Testamento por ser trabalho dos judeus. Mas os fundamentalistas bíblicos opuseram-se a isso fortemente e criaram uma dissidência. Nenhum lado realmente venceu a batalha, mas Hitler se desiludiu e desistiu da ideia de uma síntese entre nazismo e protestantismo. Mesmo a dissidência protestante, contudo, não era livre de sentimentos antissemitas. Católicos eram mais distantes do regime, mas havia elementos antissemitas entre eles também. O antissemitismo nazista era racial, e não religioso, mas foi capaz de florescer sobre uma longa tradição de antissemitismo religioso na Alemanha e obter aval para suas políticas.
Podemos ver o nazismo como uma religião?
Certamente o nazismo foi um movimento que usou símbolos religiosos e rituais em alguma escala, e Hitler não era avesso ao uso de linguagem e imagens religiosas em seus discursos. A propaganda nazista o apresentava como uma espécie de messias que veio para redimir o povo alemão. Mas o nazismo não tinha nada a dizer a respeito da vida após a morte, como as religiões verdadeiras fazem. Não representava a redenção final, mas propagava a ideia de uma luta sem fim. Hitler condenava as tentativas de nazistas como Himmler de estabelecer uma religião alternativa ao cristianismo, baseada em rituais pseudogermânicos. O nazismo, ele disse, não era um culto, mas uma doutrina fria, científica e baseada na realidade.
Como o processo de inversão moral levado adiante pelos nazistas foi possível na Alemanha, cuja população era tão sofisticada?
Muitos alemães aceitaram apenas parcialmente a ideologia nazista, e alguns aceitaram mais que outros. Foi mais forte entre os jovens doutrinados pelas escolas e pela Juventude Hitlerista. Os alemães mais velhos, cujos valores tinham sido formados antes de 1933, eram mais resistentes. O terror e a intimidação tiveram peso na repressão. Os alemães não se manifestavam contra a violência e a brutalidade do nazismo porque acabaram se acostumando com a violência política da República de Weimar. A promessa nazista de regeneração conseguiu superar as reservas de muita gente. Os triunfos diplomáticos de Hitler cimentaram sua popularidade. A vitória sobre a França em 1940 a elevou a seu ponto mais alto. O nacionalismo era forte na Alemanha e levou muita gente tanto a apoiar o nazismo como a ignorar seu extremo radicalismo.
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O TERCEIRO REICH NA AMAZÔNIA
Os rastros do nazismo envolvem o Brasil não somente pela imigração forçada de judeus europeus perseguidos. O interesse dos alemães pelo País passava também por questões estratégicas e, claro, pela natureza exuberante. O livro Das Guayana Projekt (O Projeto Guiana, ainda não lançado no Brasil), do jornalista alemão Jens Glüsing, revela um pouco dessa relação de fascínio, ao reconstituir uma grande expedição de cientistas do Terceiro Reich pela Amazônia, entre 1935 e 1937. "Otto Schulz-Kampfhenkel, o líder da expedição, adorou os índios", contou Glüsing ao Sabático. "Há até rumores de que ele teve uma filha com uma índia, mas isso eu não consegui comprovar."
A pesquisa de Glüsing documenta os preconceitos centrais dos europeus a respeito de lugares remotos como o Brasil - e que ainda resistem. A definição do País como uma "terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos", descrita pelo alemão Hans Staden sobre sua aventura brasileira no século 16, pouco mudou em sua essência. No caso do nazismo, porém, a distorção sobre o Brasil fora reforçada pela "ciência" europeia e norte-americana que via na mistura racial uma ameaça existencial - em texto de 1874, Gobineau, o pai do conceito sobre a "desigualdade das raças", deu apenas 200 anos de vida ao Brasil por causa da miscigenação.
Segundo Glüsing, a expedição de Schulz-Kampfhenkel tinha o objetivo de observar a fauna e a flora amazônica, mas acabou servindo posteriormente como referência para um eventual plano de colonização. "A Luftwaffe (força aérea) e Göring (um dos principais dirigentes nazistas) apoiaram todo esse projeto com dinheiro e com ajuda logística", disse o jornalista. A expedição teve apoio do governo Vargas, mas, segundo Glüsing, previsivelmente os militares "não gostaram muito da ideia", porque temiam espionagem.
A ideia de colonização foi oferecida a Himmler, o chefe da SS, a tropa de elite nazista. Embora ele tenha se animado a princípio, encomendando a Schulz-Kampfhenkel uma análise das possibilidades, acabou engavetando a ideia, porque não havia urgência para a Alemanha.
Da aventura de Schulz-Kampfhenkel restou uma cruz com uma suástica que marca o local de sepultamento de um dos integrantes da expedição, morto por malária, em Laranjal do Jari (AP). Restou também uma série de documentos e imagens, todos devidamente "desnazificados" - isto é, despojados de todas as referências racistas - para consumo dos alemães no pós-guerra.
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PASSAPORTES PARA A SOBREVIVÊNCIA
'Justa', de Mônica Raisa Schpun, retrata a vontade de emancipação feminina na fuga da perseguição nazista
O pesadelo nazista na Europa atingiu o Brasil de diversas maneiras. Uma das mais significativas, como detalha a historiadora Mônica Raisa Schpun, da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, foi o drama dos imigrantes judeus que fugiram de uma Alemanha que lhes era cada vez mais hostil. Em seu livro Justa (Civilização Brasileira), recém-lançado, ela mostra que esse fluxo só foi possível graças a alguns heróis circunstanciais. Um deles foi Aracy de Carvalho, a "justa" de que fala o título. Ela trabalhava no Consulado do Brasil em Hamburgo e foi responsável pela emissão de vistos que podem ter significado a diferença entre a vida e a morte para centenas de pessoas.
Mônica usa a história de Aracy e dos judeus que ela socorreu como pretexto para se debruçar sobre os dramas, sonhos e estranhamentos contidos em cada deslocamento rumo a um país desconhecido. Assim, seu livro não é uma mera biografia de Aracy, celebrizada injustamente como "a viúva do escritor Guimarães Rosa", mas um notável estudo sobre imigração - e também sobre a força das mulheres. "Mesmo que eu quisesse fazer uma biografia", explicou Mônica em entrevista ao Sabático, "a documentação sobre Aracy é insuficiente. O que tem ali já foi tirar água de pedra."
Justa tem como centro a ida de Aracy para Hamburgo, onde conheceu a outra ponta do relato de Mônica, a judia alemã Margarethe Levy. A ideia, diz a historiadora, é "abrir janelas comparativas, para caracterizar o Brasil da época, no contraste com a Alemanha". As duas representam, no livro, a vontade de emancipação feminina.
Aracy separou-se de seu primeiro marido numa época em que o divórcio não era reconhecido no Brasil, e lutou com vigor para conseguir viver com o filho na Alemanha e trabalhar para a diplomacia brasileira. Margarethe, por sua vez, não queria filhos e, segundo seu relato à historiadora, fez "vários abortos", também num momento em que a interrupção da gravidez era controversa na Alemanha. Dizia-se "livre pensadora", uma "mulher do mundo". A fibra de ambas foi testada a partir de 1938, quando a sombra da perseguição sistemática dos judeus já dominava a Alemanha.
Com o marido escondido, Margarethe, a exemplo de outras tantas mulheres na mesma situação, teve de assumir a tarefa de resolver a vida do casal para conseguir emigrar para São Paulo. Ela vinha de família rica e teve raro contato com o antissemitismo cotidiano, entre outras razões porque se relacionava com poucos judeus. Só mais tarde, quando ficou claro que o governo nazista transformaria os judeus em párias, Margarethe sentiu o drama da perseguição, justamente porque teve de se afastar de seus amigos não judeus: "Amigos que tínhamos durante anos não nos conheciam mais", relata ela no livro.
Mas as judias alemãs de um modo geral, exatamente porque circulavam mais que os maridos nas ruas, nos mercados e nas lojas, sentiram muito antes e em grau muito maior a hostilidade antissemita - e pressentiram o perigo do nazismo. Eram elas também, como mostra Mônica, as responsáveis pelo equilíbrio emocional dos filhos ante a tensão da perseguição. E tiveram de arranjar trabalho para obter renda e substituir os maridos presos ou mortos.
Aracy, por sua vez, driblou diversas diretrizes do governo brasileiro, correndo óbvios riscos em relação ao seu trabalho, para fornecer vistos não só para Margarethe, de quem se tornou grande amiga, mas para muitos outros judeus que não se enquadravam nas cotas oficiais.
A costura do livro está na reconstituição do ambiente que Aracy encontrou na Alemanha, onde, como mulher, tinha uma liberdade de movimento sem paralelo no Brasil - ela chegou a comprar um carro, uma comodidade normalmente reservada aos homens. Passa também pelo choque de Margarethe com a São Paulo dos anos 30, uma cidade em construção, sem passado e com as cores multiculturais dos imigrantes, algo bastante diverso do universo alemão. Contudo, Margarethe não teve dificuldade em se adaptar ao Brasil, porque "nunca teve pátria" - era polonesa de nascimento, foi alemã por opção dos pais e tornou-se brasileira por circunstâncias históricas.
Finalmente, o livro também mostra como o governo brasileiro agiu em relação aos judeus que fugiam da perseguição na Alemanha. Uma circular secreta que orientou a diplomacia do País chegou a qualificá-los como "parasitas", "mentirosos" e "subversivos". Mônica consegue provar, no entanto, que a atitude do Brasil não era diferente da do resto do mundo, indisposto a receber aqueles párias. O governo dos EUA, por exemplo estabeleceu cotas de imigração para os judeus bem antes do Itamaraty. A recusa brasileira a conceder vistos a esses imigrantes não era automática, porque o governo Vargas se reservava o direito de decidir caso a caso, como faria qualquer país naquelas circunstâncias.
Isso revela que o governo brasileiro não era particularmente antissemita. Pelo contrário: os judeus viveram um período de efervescência cultural e social sob o governo Vargas, o mesmo que habitualmente aparece na historiografia como hostil aos imigrantes "de raça semita".
"Os estudos do começo dos anos 80 a respeito do antissemitismo varguista descobriram uma realidade da qual ninguém desconfiava", defende Mônica. "Depois a gente vai digerindo melhor a coisa", diz a historiadora, a respeito de novos documentos e interpretações. "É evidente que havia uma indiferença brutal em relação ao que estava acontecendo com os judeus na Europa, mas não era prerrogativa brasileira."
No entanto, o foco de Mônica não é propriamente a diplomacia, isto é, o Estado, mas "a história construída por baixo, com a experiência dos imigrantes". E é esse o trunfo do livro, ao reiterar a tragédia de um povo que, de um momento para outro, teve as portas do mundo fechadas diante de si - e que passou a depender da sensibilidade de gente como Aracy de Carvalho para encontrar frestas pelas quais se esgueirar e, assim, ter a alguma chance de viver.
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GENEROSIDADE E ACHAQUES
'Anjos e Safados no Holocausto', de Roberto Lopes, põe em xeque diplomacia latina
Não houve apenas heróis, como Aracy de Carvalho, entre os diplomatas brasileiros que trabalhavam na Europa durante o pesadelo nazista. O jornalista Roberto Lopes, especializado na história diplomática latino-americana no Terceiro Reich, prepara para outubro o lançamento de um novo livro a respeito, Anjos e Safados no Holocausto (Editora Lafonte), no qual promete mostrar que, entre os diplomatas, apareceram burocratas que tentaram se aproveitar da situação, achacando os judeus.
"O livro é a primeira tentativa na historiografia sul-americana de abordar os esquemas de atendimento aos judeus na Europa", disse Lopes ao Sabático. O período escolhido, entre 1938 e 1939, é crucial: a Noite dos Cristais (1938), em que sinagogas e lojas judaicas foram alvo de uma onda de fúria nazista, mostrou aos judeus que o antissemitismo não era mais apenas retórico. Ademais, com o início da guerra, em 1939, e o avanço da Alemanha sobre outros países, ficou evidente que as possibilidades de refúgio para os judeus se reduziram drasticamente. Foi aí que a diplomacia da América Latina ganhou importância para esses desesperados. "Os judeus encontraram generosidade e até mesmo operações bem montadas para tirá-los da Europa, mas havia diplomatas corruptos que se aproveitavam da ocasião para ganhar dinheiro com aquilo", conta Lopes.
Segundo o pesquisador, havia muito mais diplomatas trabalhando em esquemas de corrupção do que gente disposta a ajudá-los. Lopes diz que esse fenômeno tem uma explicação simples: os países latino-americanos eram muito pobres. "Alguns deles deixavam seus diplomatas na Europa ocidental praticamente à míngua."
O jornalista dá exemplos dessa penúria, como o do representante da Costa Rica na legação do país em Paris, que não tinha uma máquina de escrever decente. "O chefe da missão sempre pedia desculpas a seus superiores na Costa Rica porque não tinha dinheiro para comprar uma máquina moderna." Além disso, muitos diplomatas latino-americanos na Europa eram pessoas cujos governos queriam se ver livres, ou então tinham de ser mantidas no exterior por motivos políticos, ou, ainda, eram apaniguados dos governantes. "Desse modo, era uma gente de baixo nível, em sua maior parte."
Mesmo o Uruguai, que era chamado na Europa de "Suíça da América do Sul", pela sua qualidade de vida, teve algum dos casos mais graves de funcionários corruptos, diz Lopes. Segundo ele, houve até um de seus diplomatas que foi flagrado pela própria Gestapo, a polícia política nazista, conhecida por ser visceralmente corrupta. "Ele tinha uma equipe de judeus alemães que captava a ‘clientela’ e ele a achacava barbaramente", conta o pesquisador.
Mas uma das histórias que Lopes considera mais dramáticas é a de Murillo Martins de Souza, cônsul brasileiro em Marselha. Ele foi expulso do Itamaraty em 1942 porque ousou ajudar os judeus. "O livro mostra como ele foi sendo cercado, como todas as medidas que ele tomava começaram a ser cerceadas pelo Itamaraty, como ele foi sendo desautorizado em tudo o que ele fazia", diz o pesquisador. "Ele foi uma pessoa que salvou muitos judeus da morte certa." Apesar disso, Murillo, o "cônsul solitário", ainda não está no Jardim dos Justos, homenagem de Israel aos não judeus que socorreram os perseguidos pelo nazismo.
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