domingo, 18 de setembro de 2011

A liberdade que nos une (entrevistas José Álvaro Moisés, Scott Mainwaring e Leonardo Morlino)

Uma trinca de cientistas políticos analisa a lenta e contraditória caminhada da democracia no mundo

Ivan Marsiglia

Na mesma data em que a Organização das Nações Unidas (ONU) celebrava o Dia Internacional da Democracia, essa quinta-feira, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, e o premiê britânico, David Cameron, erguiam desajeitadamente os braços do líder rebelde Mustafa Abdul Jalil em Benghazi, na Líbia, anunciando um futuro de liberdade e progresso após a queda do ditador Muamar Kadafi.

Assim será? Os rebeldes estão prontos para traduzir os anseios da população líbia? E como fica a situação da Síria e de outras nações do Oriente Médio e do Norte da África que se insurgiram na chamada "primavera árabe"? Estarão as grandes democracias ocidentais dispostas a colaborar, respeitando a soberania nacional, nesse processo emancipatório - sem esquecer, como disse o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em sua mensagem comemorativa, que "a democracia não pode ser exportada ou imposta de fora, ela deve ser gerada pela vontade das pessoas e alimentada por uma sociedade civil forte e ativa"? O mundo atual caminha de fato na direção da livre manifestação do pensamento, das liberdades civis e dos direitos políticos? Como anda a qualidade da democracia no Leste Europeu, na Ásia, na América Latina e, em especial, no Brasil?

Para responder a essas perguntas, o Aliás escalou um time internacional de cientistas políticos especializados no tema. Do Brasil, falou José Álvaro Moisés, professor da Universidade de São Paulo e diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs), que coordena atualmente uma ampla pesquisa sobre os 25 anos de democracia no País. Da Europa, o convidado foi Leonardo Morlino, professor da Universidade de Florença e presidente da Associação Internacional de Ciência Política (Ipsa). Dos Estados Unidos, o representante foi Scott Mainwaring, professor da Universidade de Notre Dame e diretor do Instituto de Estudos Internacionais Helen Kellogg. A seguir, os pontos de vista de cada um.

Com o fim das ditaduras latino-americanas nos anos 70 e 80, a dissolução da União Soviética nos 90 e a recente "primavera árabe", podemos dizer que a democracia venceu?

José Álvaro Moisés: A expansão da democracia por várias regiões do mundo, a partir dos anos 70, foi o fenômeno político mais importante do século 20. Ela sobrepujou todas as alternativas, como o fascismo, o stalinismo e os autoritarismos militares. Hoje, um dos seus grandes desafios continuam sendo as desigualdades econômicas e sociais que afetam a liberdade política, a competição eleitoral e a participação dos cidadãos. Outro são o terrorismo e a intolerância política, que, em alguns casos, foram usados para justificar a invasão de nações e o cerceamento de liberdades civis e políticas. Apesar disso, as virtudes da democracia alimentam um poderoso efeito-demonstração, apontando as implicações do regime na qualidade de vida das pessoas.

Scott Mainwaring: A democracia certamente se expandiu globalmente desde o final dos anos 70, mas de maneira muito desigual. Segundo as avaliações da Freedom House (organização sem fins lucrativos sediada em Washington que promove pesquisas sobre direitos humanos, democracia e Estado de Direito), em 1978, quando a terceira onda de democratização na América Latina teve início, 30% dos países do mundo eram considerados livres, 35% eram parcialmente livres e 24% não eram livres. Essas estimativas não eram tão precisas na década de 70, mas são a única fonte confiável disponível. O último relatório dela, lançado em 2010, diz que 45% dos países hoje são livres, 31% parcialmente livres e 24% não livres. É um bom sinal. Entretanto, a Freedom House considera a situação global da economia estagnada desde 1998. Vários países, incluindo a proeminente Rússia, regrediram: considerada parcialmente livre na década de 90, degringolou para o autoritarismo.

Leonardo Morlino: Não há dúvida de que desde o início dos anos 70 o fenômeno da democratização teve forte aceleração no mundo. Entretanto, há hoje dois aspectos que não nos permitem dizer que ela seja dominante no mundo. O primeiro é o fato de o país com o segundo maior PIB mundial, a China, ter um regime politicamente não democrático. Sem falar na já citada Rússia, que pratica uma espécie de autoritarismo eleitoral. O segundo aspecto está relacionado ao contexto mundial de crise econômica e desemprego que vivemos - que pôs em xeque a capacidade de ação das elites políticas das grandes democracias.

Entender democracia como mero sistema eleitoral é um engano frequente?

Morlino: O sistema eleitoral é muito importante, ele é a regra chave para o mecanismo de resolução pacífica de conflitos que está no coração da democracia. Mais: os arranjos institucionais da democracia, seus procedimentos básicos, estão diretamente relacionados às eleições. Assim, entender democracia como sistema eleitoral não é engano. É, no entanto, uma simplificação, se deixamos de prestar atenção em outros valores fundamentais dela, como a igualdade econômica e social.

Moisés: Eleições limpas, regulares e competitivas são condição sine qua non da democracia, mas insuficientes. Exemplo disso são os casos em que elas convivem com o desrespeito ao primado da lei, a expansão incompleta dos direitos de cidadania e a inexistência de instituições, mecanismos e normas eficazes de fiscalização e controle dos poderes republicanos. Alguns exemplos são os casos da Venezuela, Equador, Paquistão, Rússia e, em menor escala, Bolívia. O Irã não tem eleições livres. Em alguns desses países, lideranças escolhidas pelo voto popular tendem a se sobrepor às instituições democráticas, intervindo no Poder Judiciário, limitando o Legislativo e, às vezes, anulando a capacidade de ação dos partidos de oposição. Essas são democracias incompletas ou iliberais.

Mainwaring: Entender democracia exclusivamente como sistema livre e justo de contagem de votos é certamente um engano. Ele não é frequente entre cientistas políticos, mas a Organização dos Estados Americanos (OEA) e diversos governos nacionais focam exclusivamente a tabulação de votos na hora de avaliar a democracia nos países. Em sua acepção contemporânea, ela depende de três elementos: sufrágio adulto quase universal, sistema de proteção das liberdades civis e direitos políticos e ausência de atores políticos capazes de veto ou controle da arena de decisões políticas.

Como avaliar a qualidade da democracia?

Mainwaring: A qualidade da democracia depende do grau de entendimento, por parte da sociedade, dos procedimentos que a preenchem. Uma democracia de alta qualidade é a que o campo em que se dá o jogo eleitoral seja justo, em que quase todos os adultos exerçam seus direitos políticos formais, em que o Estado garanta efetivamente direitos políticos e liberdades civis e, repito, em que os governantes eleitos não estejam sujeitos a veto por parte das Forças Armadas, por exemplo. Em grande parte da América Latina, o grande desafio hoje é garantir a existência de um campo político justo, para que os diversos grupos disputem as eleições em condições de igualdade.

Molino: Essa é uma questão muito importante hoje. Em meu último livro, Changes for Democracy (Oxford University Press), vejo três significados na qualidade da democracia. O respeito ao império da lei, com accountability eleitoral e institucional, é um deles. A promoção dos valores da liberdade e da igualdade é outro. O terceiro é a "responsividade" (conceito que se refere à obrigação e capacidade de governos de corresponderem às expectativas dos que os elegeram). Em minhas pesquisas na Europa e América Latina, estipulei indicadores para avaliar cada uma dessas dimensões.

Moisés: Democracias eleitorais só se transformam em democracias efetivas se os poderes militar e policial forem devidamente controlados pelas autoridades civis eleitas e se os conflitos e divisões internas próprios de sociedades complexas tiverem meios efetivos de solução por mediação institucional. Instituições existem para controlar o abuso de poder, assegurar a efetividade do Estado de Direito e do império da lei e o que Norberto Bobbio chamou de "promessas democráticas". Se, por exemplo, o acesso à Justiça for negado a setores menos privilegiados da sociedade, partidos e Parlamentos não convencerem os eleitores de sua credibilidade e a política for vista como um domínio de privilégios e distorções que beneficiem alguns, a própria ideia de democracia fica profundamente afetada.

Países da "primavera árabe" receberam tratamento diferenciado das nações ocidentais, dependendo de seu alinhamento ou não a elas. Como se "promove" a democracia?

Mainwaring: Não há fórmula predeterminada. Depende das condições específicas de cada país. Normalmente, dar suporte internacional às oposições democráticas, como ocorreu agora na Líbia, é uma opção melhor do que assumir o protagonismo na criação da nova democracia - como aconteceu de maneira extremamente custosa, em termos de dólares, vidas humanas e destruição da infraestrutura, no Iraque em 2003. Já os esforços da OEA para desencorajar retrocessos autoritários são positivos: por meio da resolução 1080, a organização impediu golpes na Guatemala em 1993 e no Paraguai em 1996 - além de ajudar no restabelecimento de eleições livres no Peru em 1995. Por outro lado, a OEA não soube ser efetiva em situações de autoritarismo eleitoral, como na Venezuela desde 1999.

Morlino: Na última década houve desenvolvimento efetivo de estratégias de promoção da democracia. O chamado mecanismo das "condicionalidades" (que determina de que maneira organismos internacionais como Banco Mundial, FMI e outros prestem apoio a países de histórico autoritário ou em processo de democratização) é importante. Mas pesquisas empíricas feitas por diversos acadêmicos mostram que tais ações, para funcionar, devem ter credibilidade e continuidade no tempo. Ações externas só são eficazes quando encontram forças domésticas prontas a assumir o risco de implementar uma agenda democrática no país.

Moisés: Intervenções militares são sempre questionáveis do ponto de vista moral, político e do direito internacional. Por isso, são quase sempre negativas para "encorajar" a democracia. Isso não se confunde, no entanto, com situações como a vivida hoje pela Síria e até recentemente pela Líbia - em que governos ditatoriais reprimem com violência a reivindicação legítima de suas populações civis. Esses casos exigem coragem e determinação das nações democráticas, pois o respeito a direitos humanos não pode ser limitado por fronteiras diplomáticas ou considerações de realpolitik. Meu juízo, nesse caso, é que a posição do Brasil em recentes decisões da ONU foi lamentável, e deveria ser revista. Invasões como a do Iraque, contudo, envolvendo claros interesses econômicos e geopolíticos, não podem ser chamadas de estímulo à democracia.

Vinte e cinco anos após a redemocratização, como os senhores veem a qualidade das instituições no Brasil?

Molino: O Brasil tem sido importante para o desenvolvimento da democracia em toda a região da América Latina por duas razões. Em primeiro lugar, a forma bem-sucedida como ela foi implementada no País enfraqueceu alternativas neopopulistas como a da Venezuela e a da Bolívia. Em segundo lugar, as políticas brasileiras de redução da desigualdade e da pobreza mostraram à região que na democracia os valores da liberdade e da igualdade podem e devem andar juntos. Não é possível haver liberdade sem algum nível de igualdade no que se refere à educação, qualidade de vida, assistência médica, etc. E vice-versa.

Mainwaring: A qualidade da democracia no Brasil melhorou muito desde Sarney e Collor. Naquela época, os militares ainda tinham poder de veto sobre importantes decisões políticas. As engrenagens do período autoritário permaneciam fortes, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Hoje, as eleições são livres, justas e raramente contestadas. A participação política se expandiu. A proteção às liberdades civis e aos direitos políticos avançou enormemente. A imprensa e a sociedade civil são independentes e vigorosas. Há ainda, no entanto, desigualdade de direitos. Os pobres e a população negra no Brasil não desfrutam dos mesmos direitos e liberdades civis. Outro déficit da democracia brasileira é a impunidade de políticos flagrados em casos de corrupção. Mas, falando estritamente, eu diria que os grandes problemas do Brasil hoje são mais econômicos e sociais que de qualidade de sua democracia.

Moisés: O Brasil é um país democrático, não há duvida. Mas penso que a qualidade da sua democracia está em questão, sim. A hipertrofia do Executivo, herdada do período autoritário, limita a autonomia e a independência do Legislativo, comprometendo a representação da sociedade e o poder efetivo dos eleitores. O sistema partidário brasileiro é fragmentado e relativamente instável, com quase 30 partidos nominais e perto de 10 efetivos. A corrupção é endêmica, frauda a igualdade da competição eleitoral e desvia para fins privados recursos que deveriam ser investidos em políticas públicas. O chamado presidencialismo de coalizão, se por um lado garante a governabilidade, por outro estimula a irresponsabilidade dos partidos que formam as coalizões governistas majoritárias sem comprometê-los com a probidade no uso dos recursos públicos. Os escândalos nos Ministérios dos Transportes, da Agricultura e do Turismo atestam isso.

Como a corrupção afeta a democracia?

Moisés: Minhas pesquisas de cultura política mostram que um dos fatores determinantes da altíssima desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas do País é a corrupção. Essa prática desmoraliza a política, passa a ideia de que a lei e as normas democráticas são irrelevantes e não precisam ser cumpridas. O exemplo que vem de cima deteriora a moralidade política e desqualifica a dimensão republicana da democracia. É certo que houve avanços, devidos às denúncias da mídia e à ação do Ministério Público, da Polícia Federal, do TCU e, mais limitadamente, da CGU. Mas, em anos recentes, o governo Lula foi considerado um dos mais corruptos pelos entrevistados de pesquisas de opinião, só perdendo para o governo Collor.

Mainwaring: Não há dúvidas de que a corrupção mina a confiança pública. E, obviamente, enfrentá-la é um dos grandes desafios da democracia brasileira e de grande parte da América Latina. A perspectiva de punição é a melhor vacina contra a corrupção. O País precisa desenvolver métodos efetivos de investigação e um Poder Judiciário capaz de perpetrar punições exemplares. Por outro lado, é preciso reconhecer que a capacidade do Estado brasileiro de investigar e punir a corrupção foi bastante aperfeiçoada desde a metade dos anos 90. O problema é que a classe política age com instinto de autopreservação, formando um "clube da impunidade": um protege o outro. Um círculo vicioso difícil de quebrar.

Morlino: Um nível alto de corrupção mostra que o império da lei é frouxo e afeta a confiança nas instituições e na democracia. A sociedade civil e as elites políticas precisam combater essas práticas. Mas deixe-me de novo ressaltar os avanços do Brasil nos últimos anos, e quanto a situação era pior há duas décadas. Muitas vezes sofremos de "perfeccionismo democrático": buscamos altos resultados imediatos e subestimamos os avanços parciais obtidos. Uma dose de realismo é necessária para não se criar expectativas impossíveis que só nos levam ao desapontamento.

O STF tem sido acionado para arbitrar questões que o Congresso não esteve apto a discutir, como a união civil entre pessoas do mesmo sexo. O que isso diz a respeito de nossa democracia? Plebiscitos são uma boa alternativa para a inação do parlamento?

Mainwaring: Plebiscitos podem ser um instrumento suplementar à democracia representativa. Porém, como pude perceber morando na Califórnia, onde esse tipo de iniciativa popular é frequente, eles também podem ser manipulados por interesses particulares. Lá, grandes corporações e lobbies poderosos muitas vezes conseguem propor e dominar plebiscitos. Eles não são uma panaceia. A democracia representativa é que precisa funcionar bem.

Morlino: A melhor maneira é a mais difícil: via mobilização e participação popular. O papel cada vez maior da magistratura é um fenômeno disseminado por todas as democracias e parte da accountability institucional. Plebiscitos e referendos podem ser instrumentos ocasionais, mas de fato podem ser distorcidos e manipulados por forças políticas ou grupos de interesse. Sobre eles, vale o slogan: use com moderação.

Moisés: O STF tem agido em casos em que o Congresso e os partidos são omissos ou as leis votadas são inconstitucionais. Seria melhor se isso fosse evitado, mas depende do Congresso recuperar suas prerrogativas e assumir papel efetivo na definição da agenda política do País. A pressão da sociedade - crescente através das redes sociais - é um novo caminho. A adoção de plebiscitos, referendos e iniciativa popular de leis, previstos na Constituição, pode revitalizar a democracia representativa.

Democracia e sustentabilidade combinam?

Moisés: O desenvolvimento sustentável depende da democracia. Só nesse regime a sociedade tem informações claras e qualificadas sobre as decisões de governos que afetam o meio ambiente. O caso das usinas nucleares é exemplar: muitas decisões do regime militar sobre sua construção e suas implicações só se tornaram conhecidas no Brasil após a conquista da democracia. Sem falar no debate sobre as implicações ambientais, o incremento da produção de petróleo, a alternativa do etanol e a construção de grandes usinas hidroelétricas como Belo Monte em áreas que afetam a preservação ambiental e as condições de vida das populações autóctones, que surgiu, mas mostrou também quanto temos de caminhar nesse tema.

Morlino É preciso trabalhar para que ambas andem juntas, mas a ideia de sustentabilidade ecológica precisa estar ligada à de sustentabilidade econômica - levando em conta, igualmente, os custos sociais e civis de cada decisão. É doloroso ver as novas democracias emergirem em um mundo que discute como manter ou baixar suas expectativas para torná-las compatíveis com os recursos econômicos existentes.

Mainwaring: Democracias tendem mais à sustentabilidade do que ditaduras. Mas vamos ser claros: há uma batalha nas democracias sobre o que priorizar neste momento. O governador do Texas, Rick Perry, é pré-candidato à presidência nos EUA e nem sequer acredita na existência do aquecimento global. E a profunda crise econômica pela qual o país passa torna ainda mais difícil um encontro entre democracia e sustentabilidade no curto prazo: a prioridade é promover crescimento e gerar emprego. Por outro lado, não podemos desconsiderar o fato de que algumas ditaduras são eficazes na promoção do ambientalismo quando querem. A China, que chegou atrasada à discussão e tem graves problemas ambientais, está se transformando rapidamente em país de ponta nas tecnologias verdes.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

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