Toda comemoração abre, ainda que involuntariamente, espaço para reflexão. Com as celebrações de setembro, é comum pensarmos sobre nossa história regional e a identidade coletiva nela fundada, por mais capciosa que a pergunta-título deste artigo possa se mostrar.
Para o nosso tempo, diria que “gaúcho” se configura como um símbolo bastante polissêmico. De um lado, a imagem do cavaleiro pampiano é incontornável para se pensar o Rio Grande. De outro, ela evoca muito mais do que a idade de ouro campeira criada pela literatura regionalista e reforçada pela historiografia tradicional.
A adoção da palavra como adjetivo gentílico, quer dizer, “título” para todo indivíduo aqui nascido, com certeza dinamizou seu significado, uma vez que o nome teve que abarcar realidades bastante diversas, incluindo sujeitos sociais sem a menor intimidade com o mundo rural e/ou elementos alheios à história e à dinâmica fronteiriça. Até meados do século 19, por exemplo, seria impensável mesmo à elite latifundiária se reconhecer no termo gaúcho, então identificado ao indivíduo que vagava sem rumo nem paradeiro pelos campos platinos, por vezes bandido, visto sempre como pária social.
No sentido inverso, o fenômeno de “gentilização” conferiu grande legitimidade aos mitos associados ao gaúcho histórico; dentre eles, o de ser fundador étnico e cultural único e comum a todos os habitantes do Estado.
Parte considerável da responsabilidade pela positivação da palavra, além da criação desses mitos, deve ser creditada a anos de investimentos intelectuais, nada gratuitos, mas condizentes com necessidades sentidas em cada momento de nossa história. Assim, o gaúcho de Simões Lopes Neto falava de um espaço, a Metade Sul, que perdia paulatinamente sua hegemonia econômica no Estado e para uma sociedade que se modernizava, lembrando o que ela não era mais.
Já o de Cyro Martins lamentava as duras condições enfrentadas pelos homens e mulheres que, expulsos do campo, buscavam abrigo nas cidades. Da mesma forma, o gaúcho heroico da historiografia dos anos 1920 e 1930 dizia que tínhamos um papel importante a cumprir no cenário político nacional.
Mas o que pouco se fala é que a celebração do gaúcho nunca foi consensual. Muito menos sua definição. Durante todo o século 20, foi objeto de disputas e divergências. O próprio movimento tradicionalista, no final dos anos 1940, precisou discutir o que seria selecionado (e inventado) como “tradicional”: o homem simples do campo ou a elite de militares estancieiros que explorara o território em nome da coroa portuguesa. Sua grande inovação foi apelar, na atualização do gaúcho mítico, às várias possibilidades de memória pública desenhadas pelas gerações anteriores.
Essa gama de usos históricos do mito fornece, portanto, um repertório bastante amplo para nosso próprio tempo. Como qualquer movimento romântico, o gauchismo carrega em si algo de conservador, de resistência às mudanças.
Mas cabe ressaltar que não foi exclusividade da direita política. Intelectuais comprometidos com o popular, incluindo alguns declaradamente socialistas, também puderam dele se valer. Isso tem desdobramentos atuais, quando as apropriações do gaúcho mítico não respeitam matizes políticas, se manifestando no lenço vermelho de Olívio Dutra ou no vestido de prenda de Yeda Crusius, por exemplo.
Se as feições do gaúcho continuam mudando, sua configuração continua esta: um símbolo elástico o suficiente para se adaptar a novos contextos; logo, também plural. Daí seu sucesso. Se isso é bom ou ruim, já é outra conversa.
*Historiador, professor do Colégio de Aplicação da UFRGS
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