GLOBALIZAÇÃO 1.0
Livro mostra como Era dos Descobrimentos unificou o planeta ao transportar micróbios, animais e plantas oceanos afora
REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR DE CIÊNCIA E SAÚDE
Concorrência desleal vinda da China é reclamação constante. Do setor de calçados de Franca? Das empresas de eletrônicos? Não: dos barbeiros da Cidade do México, no começo do século 17. Os chineses trabalhavam demais e cobravam pouco, diziam.
Os operários da navalha (que também faziam as vezes de dentistas e cirurgiões) estavam longe de ser os únicos representantes do Extremo Oriente na América Espanhola. A rota da prata pela costa mexicana do Pacífico era patrulhada por samurais japoneses, mercenários filipinos e outros "chinos", como diziam os espanhóis.
Esse retrato amalucado de uma globalização 1.0 está no livro "1493", do jornalista de ciência americano Charles Mann, que acaba de ser lançado nos EUA. O argumento de Mann é simples: a descoberta da América acabou com a trajetória separada dos continentes e transformou a Terra numa única e enorme província ecológica.
Na prática, isso significa que criaturas tão díspares quanto o parasita da malária (africano), a cana-de-açúcar (da Nova Guiné) e o boi (europeu) se juntaram para moldar o ambiente e a história do Brasil, por exemplo.
OLÁ, HOMOGENOCENO
Para Mann, é como se fosse o início de uma nova época geológica, o Homogenoceno -a fase da história da Terra em que o mundo está cada vez mais homogêneo, para o bem ou para o mal.
"Senti que era preciso destacar isso porque hoje você é capaz de ler um livro inteiro de história da Europa e não achar uma única menção à batata", disse Mann à Folha, por telefone. "É claro que não seria certo dizer que a batata criou a Europa moderna, mas não dá para negligenciá-la."
Esse é um dos principais casos de troca-troca ecológico mudando o mundo. Originalmente uma das bases da dieta nos Andes, combustível de civilizações como os incas, a batata acabou com os episódios catastróficos de fome na Europa Ocidental.
Serviço parecido foi realizado pela batata-doce e pelo milho na China imperial. Solos desérticos ou pobres em nutrientes puderam ser cultivados pela primeira vez, levando à explosão populacional que hoje nos parece tão típica do território chinês.
Esse último exemplo mostra como a ascensão do Homogenoceno foi uma faca de dois gumes. O avanço da agricultura chinesa por terras nunca dantes cultivadas também destruiu florestas, provocou erosão e gerou um ciclo interminável de inundações catastróficas no país.
E a coisa fica ainda pior quando os astros do intercâmbio continental são micróbios. Micro-organismos do Velho Mundo ganharam, praticamente sozinhos, a briga entre europeus e indígenas, condenando os nativos antes mesmo que eles disparassem a primeira flecha.
"Meu livro deveria se chamar 'Germes, Germes e Germes', na verdade", brinca Mann. É um trocadilho com "Armas, Germes e Aço", clássico do biogeógrafo Jared Diamond que atribui a vitória dos europeus sobre os ameríndios a esses fatores.
"Diamond dá muito peso à superioridade tecnológica europeia. Ela certamente existia no século 19, mas não tenho tanta certeza quanto ao século 16", diz ele, lembrando que as armas de fogo trazidas pelas caravelas eram instáveis e pouco potentes.
Já a varíola, a gripe e a malária caíram de chofre sobre "solo virgem" -termo usado para designar populações sem imunidade natural contra uma doença, como era, e é, o caso dos índios.
O livro ainda inclui uma crítica sutil a quem acha que culturas e ambientes deveriam ser mantidos no seu estado original. Afinal, diz Mann, as tradições agrícolas -e a cozinha- de aldeões filipinos e quilombolas brasileiros dependem de plantas que vieram d'além-mar.
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