terça-feira, 28 de agosto de 2012

O abismo entre ricos e pobres (Suely Caldas)

O Brasil é o quarto país da América Latina que pior distribui sua renda. Dos 18 vizinhos do continente, só perde para Guatemala, Honduras e Colômbia quando é medido o abismo entre ricos e pobres, constata pesquisa da ONU divulgada na terça-feira. Bolívia, Nicarágua, Equador e Peru são países mais pobres que o Brasil, não têm nossas riquezas minerais e agrícolas, indústrias sofisticadas, bancos e empresas que ocupam o topo entre as maiores do mundo. Por que estão à frente do nosso país quando se avalia a distribuição das riquezas entre seus habitantes? Afinal, pouco significou a migração de 40 milhões de pobres para uma "nova classe média" nos últimos 12 anos?

Em primeiro lugar, ao criar esse conceito de classe, o economista Marcelo Neri (que acaba de ser indicado presidente do Ipea) teve o cuidado de agregar a palavra "nova" para dissociá-lo da classe média tradicional, de maior poder aquisitivo. São pessoas com renda familiar entre R$ 1,7 mil e R$ 7,5 mil, e a maioria situada na faixa mais baixa, portanto com renda próxima à dos pobres, que podem comprar um carro com dez anos de uso, mas não um zero km.

Foram os programas de transferência de renda - criados na gestão FHC (Bolsa-Escola, erradicação do trabalho infantil, auxílio-gás, etc.) e concentrados por Lula no Bolsa-Família - os maiores responsáveis por essa mobilidade social. Sem dúvida, foi um enorme progresso para um país onde os programas sociais tinham eficácia zero até então, mas longe de resolver o problema da descomunal distância de renda entre ricos e pobres. Fora isso, a estabilidade econômica após o Plano Real, o investimento em educação dirigido ao ensino fundamental e a política de reajuste do salário mínimo acima da inflação ajudaram a encurtar essa distância.

Porém, seja por inércia ou por pressões políticas, permanece intacto o aparato de leis, regras e escolhas (erradas) feitas por governantes que desde sempre sustenta a concentração da renda do País na pequena parcela de ricos. Na educação houve algum progresso: se, no início dos anos 90, havia 17% de crianças fora da escola, hoje só há 2%. Mas a qualidade do ensino é tão ruim que grande parte dessas crianças não passa do estágio de analfabetismo funcional. A escolaridade média da população quase estagnou: nos últimos 20 anos passou de 5 para apenas 7,3 anos de permanência na escola. É o que explica a baixa produtividade do trabalhador e a desvantagem do Brasil em qualidade de produtos em relação aos fabricados na Ásia, por exemplo, onde é normal trabalhadores terem cursado universidade.

O sistemático recuo dos governantes, que preferem ceder a pressões políticas a fazer uma reforma tributária consistente, também tem alimentado a concentração da renda. Segundo pesquisa da Fiesp baseada em números da Receita Federal, as famílias pobres que vivem com até dois salários mínimos comprometem 48,9% de sua renda em pagamento de impostos, quase o dobro dos 26,3% pagos pelas famílias com renda acima de R$ 20 mil.

Ao se apropriarem de 35% de toda a renda do País arrecadando tributos, os governos (federal, estaduais e municipais) têm enorme poder de concentrar ou desconcentrar pobreza e riqueza, dependendo de suas escolhas para aplicar verbas públicas. E desde sempre essas escolhas têm beneficiado mais ricos do que pobres, mais quem grita e faz pressão política do que os excluídos silenciosos. Ao ampliar de 25 para 38 o número de ministérios, Lula escolheu concentrar gastos com o funcionalismo, sabendo que vai faltar dinheiro para hospitais atenderem doentes; para escolas qualificarem professores; para construir rede de esgoto e água tratada; para ações que reduzam a violência entre jovens; enfim, para aplicar dinheiro público a serviço de uma distribuição mais justa da renda.

Enquanto os governos não derem uma guinada na estrutura jurídica voltada para o social e seguirem privilegiando quem não precisa, o Brasil pode produzir e acumular riqueza, mas vai continuar ocupando o vergonhoso 4.º lugar entre os piores na partilha da renda.

Jornalista; é professora da PUC-RIO.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (26/09/12)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

IDENTIDADE SECRETA (Juca Magalhães)



"A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude."
                                                                      Rochefoucauld

Tava falando de hipocrisia na Crônika anterior e, conversa vai conversa vem, lembrei do Carambola, uma das figuras mais divertidamente hipócritas que já conheci. Como já dizia o Grilo Falante, o rapaz “trabalhava a questão da diversidade sexual”, mas não assumia isso pra senhor ninguém, nem mesmo para a namoradinha que descolou no cursinho pra “dechavar”. Davam longos amassos apaixonados na arquibancada da quadra da escola, foram até advertidos para pegar leve na conduta indecente.

Carambola adorava usar o termo “dechavar”, era gíria de malandro da época e apesar de estar com uns trinta anos ainda adotava o estilo “garotão”. Era um cara enorme, marombado e boa pinta a ponto das mocinhas suspiravam à sua passagem, mas ele gostava mesmo era de trocar idea com a rapaziada. Circulava a bordo de um sonoro carrão importado - privilégio tirado a elite no passado - e dominava qualquer assunto de macho: desde futebol aos lançamentos “de sacanagem” recentes.

Dechavar, segundo o Dicionário Informal é “Termo usado para designar qualquer ação reparadora seguida a uma outra presumidamente inaceitável ou condenável, com o intuito de disfarçar ou despistar.” É ferramenta verbal dos hipócritas assumidos que nem o Carambola. Descobrimos isso quando ele contava suas últimas aventuras...

- Ontem de noite eu saí com um bróder meu. Fomos prum lugarzinho dechavado tomar umas cervejas...

- Ora Carambola, você não disse que não estava mais bebendo? – Sua resposta foi muito tranquilizadora.

- Num esquenta que ninguém me viu bebendo não. - Nem tampouco importava saber-se-lá-o-quê que rolava entre ele e o bróder-bofe, a ponto de irem procurar um “lugarzinho dechavado”pra se esconder (namorar?)...

Sempre em busca de uma explicação lógica para preservar a identidade secreta, Carambola dizia que o tal amigo era um “sócio”, mas não conseguia disfarçar o maior entusiasmo que demonstrava pelo rapaz do que pela namoradinha. Quando chegou o feriadão da semana santa deu-lhe uma doida, pegou o bofe (cujo?) e se pirulitou (e como!) pro sul da Bahia. Ao seu álibi de masculinidade restou o nobre consolo de estudar para o simulado e garantir a média de desconto na mensalidade.

De volta do feriadão, com a cara de pau que Deus lhe emprestou e a namorada saudosa novamente a tiracolo, Carambola levou as fotografias da viagem pra galera ver. Era um álbum escancaradamente romântico dele e o “sócio” na piscina da pousada, na intimidade do quarto, tomando drinques coloridos no barzinho, passando bronzeador na praia. A sequência menos levemente bandeirosa de todas era dos dois andando de moto nas dunas e nessa mesma é que a máscara caia:

- Rapaz, a gente andou tanto de moto que eu tô com a bunda toda doída até agora!   

Juntos agora (Richard Sennett/entrevista)

Por Giovanna Bartucci | Para o Valor, do Rio

"Fazer é pensar", afirma Richard Sennett, um dos mais importantes sociólogos contemporâneos. Seu trabalho reflete sobre como os sujeitos podem se tornar intérpretes competentes da própria experiência a despeito dos obstáculos que a sociedade possa oferecer. Para ele, pensamento e sentimento estão contidos no processo de fazer, transformando em falsa a divisão entre o "homem que faz" e o "homem que pensa" - aqui se remete às reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt, de quem foi aluno. Sennett acaba de ter lançado no Brasil o livro "Juntos: Os Rituais, os Prazeres e a Política da Cooperação", segundo volume do seu "Projeto Homo Faber", trilogia que tem no centro a ideia do homem como artífice de si mesmo.

Com mais de 15 livros publicados sobre como as cidades são organizadas - as relações entre classes sociais, oportunidades econômicas e relações familiares -, e também sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo contemporâneo, as pesquisas de Sennett se voltaram, nos últimos tempos, para os estudos culturais, estabelecendo um diálogo entre sociologia, história, antropologia e psicologia social.

Seu "Projeto Homo Faber" defende a urgência em pesquisar "as habilidades necessárias à vida cotidiana", ao explorar práticas sociais e materiais - isto é, os objetos, as ferramentas e as máquinas criadas pelo homem e o modo pelo qual ele interage com elas - presentes em um mundo globalizado e pleno de incertezas.

Se em "O Artífice" (Record, 2009), primeiro volume da série, Sennett analisa a artesania, ou seja, o empenho de fazer bem as coisas materiais, no livro recém-lançado ele aborda a natureza da cooperação, traça a evolução de seus rituais desde a Idade Média até a atualidade e detém-se nas razões pelas quais a cooperação se tornou débil e na maneira pela qual pode ser fortalecida.

"Juntos" foi uma consequência natural de "O Artífice", já que "a artesania prospera em comunidades com laços sociais fortes e em organizações que encorajam a cooperação", afirma o sociólogo, professor da New York University, da London School of Economics e da Cambridge University - onde é professor-visitante emérito. Sennett define a cooperação habilidosa como um ofício que tem o seu fundamento no aprendizado de escutar o outro com atenção e na capacidade de dialogar, em oposição a debater ou discutir. No entanto, se na economia contemporânea artesania e cooperação estão ameaçadas e o desafio de conviver com a diferença - seja racial, étnica, religiosa ou econômica - é extremo, Sennett entende que a prática da cooperação se torna fundamental para a prosperidade da sociedade.

Considerando ainda que as relações e "condições" espaciais têm importância enorme no modo por meio do qual "estranhos" (ou pessoas diferentes umas das outras) se relacionam nas grandes cidades, o autor espera que o terceiro volume da trilogia, ainda em elaboração, possa produzir ideias de valor sobre como as cidades podem ser mais bem construídas visando a qualidade de vida das pessoas.

"Eu me cansei de ser apenas um crítico do capitalismo. É deprimente escrever somente sobre o que não funciona bem", afirma o sociólogo

É provável que seus escritos sobre as cidades tenham sido fortemente influenciados por sua experiência de vida familiar. Nascido em 1º de janeiro de 1943, em Chicago, o autor morou, dos 3 aos 9 anos, com a mãe, escritora e destacada assistente social, em Cabrini Green, conjunto habitacional construído com o objetivo de suprir a escassez de moradia causada pela Segunda Guerra, mas também de combater a segregação racial.

O relacionamento passivo com o conjunto habitacional, cuja austeridade arquitetônica, com seus caixotes baixos e compridos, representava a bandeira modernista do projeto, deixou marcas na "comunidade mista de negros, brancos pobres, mutilados [de guerra] e perturbados mentais [que] compunha o objeto do experimento de inclusão social", escreve o autor no livro "Respeito - A Formação do Caráter em um Mundo Desigual" (2004, Record). Frequentando uma escola católica e mergulhado em estudos musicais iniciados aos 5 anos, Sennett passou a infância em Cabrini Green. Aos 15, já tendo morado com a mãe em Washington, durante seis anos, o então músico saiu de casa e, de volta a Chicago, passou a viver de seu trabalho como violoncelista.

Músico profissional dos 15 aos 19, quando passou a sofrer de síndrome do túnel carpal, foi obrigado a abandonar a carreira precocemente e a investir, ainda que à época de maneira descomprometida, na sociologia. Assim, não soa estranha sua afirmação: "Minha sociologia é construída em torno do modelo de aquisição da habilidade de tocar um instrumento, e a prática e o aprimoramento da prática têm sido sempre o centro do que tenho realizado em sociologia". E mais: "No que diz respeito à cooperação e relações de autoridade, a maneira por meio da qual músicos trabalham juntos se constituiu em um modelo de sociabilidade para mim".

Detentor de numerosos prêmios e com obras traduzidas para diversos idiomas, Richard Sennett também publicou três livros de ficção na década de 1980, ainda inéditos no Brasil. A seguir, trechos da entrevista que concedeu, por telefone, de Londres, na qual fala de seu trabalho, do futuro e de si como o próprio artífice.

Valor: Antes de começar a trabalhar na sua trilogia, o senhor escreveu de maneira extensa sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo contemporâneo. Como vê o mundo hoje?

Richard Sennett: A década de 1990, período durante o qual escrevi esses ensaios críticos ["A Corrosão do Caráter", "Respeito" e "A Cultura do Novo Capitalismo"], foi um período de boom para o neoliberalismo. O que está acontecendo agora é que estamos vivendo uma crise, a era neoliberal entrou em colapso, no que diz respeito à sua manutenção financeira, e suas fontes têm se provado insustentáveis. Tive um vislumbre disso, na época, quando percebi que a experiência de trabalho das pessoas estava se tornando muito empobrecedora. Hoje, eu diria que a ideia de encontrar uma alternativa não é um projeto utópico, mas algo que precisamos fazer porque esse sistema não funciona. No entanto, encontrar uma alternativa significa repensar coisas muito básicas, como o que é trabalhar bem, cooperar, criar um lugar no mundo para si. Estou interessado em pesquisar de maneira aprofundada sobre como as nossas atitudes e os nossos comportamentos devem mudar para que sejamos capazes de responder a essa crise.

Valor: A sua trilogia é, então, a sua resposta a esse estado de coisas?

Sennett: Sim, exatamente. Eu me cansei de ser apenas um crítico do capitalismo. É deprimente escrever somente sobre o que não funciona bem. Comecei, então, a pensar sobre qual seria a melhor maneira de compreender como as pessoas exercem um ofício e trabalham. E todo esse novo campo que diz respeito a questões relacionadas às habilidades, à busca da qualidade e à forma que as atividades produtivas podem estar associadas a como as pessoas cooperam umas com as outras, estabelecem relações sociais e criam espaços para viver nas cidades, se abriu para mim. São esses os temas da trilogia.

Valor: Quais são os valores e práticas capazes de manter as pessoas "juntas", cooperando umas com as outras, neste momento em que as instituições se encontram desacreditadas?

Sennett: Penso que há duas, inicialmente. A primeira diz respeito ao tempo, à duração de tempo, que instituições da sociedade civil e organizações como ambientes de trabalho mantêm as pessoas em contato umas com as outras. Atualmente, o mundo social tem se organizado em torno de trocas de curto prazo, ao invés de relações de longo prazo. Expandir o tempo significa, por exemplo, possibilitar que trabalhadores estabeleçam contratos de longo prazo, em lugar de curto prazo. Essas são aplicações muito práticas. No que diz respeito às empresas, implica manter trabalhadores em suas equipes, ao invés de deslocá-los permanentemente, de maneira flexível. Ou seja, tempo funcionando aqui como cimento, como uma narrativa. A segunda habilidade que as pessoas têm que aprender, para enfrentar essa crise, diz respeito à capacidade de lidar com a agressividade e a competição, na medida em que formas agressivas de competição são recompensadas, enquanto outras formas não o são, provocando uma desigualdade enorme. Penso que é importante repensarmos a competição tanto culturalmente quanto economicamente.

Valor: O senhor tem afirmado que a "cooperação" tem se deteriorado na esfera política e também na sociedade civil e define o termo como "trabalhar com os outros para fazer algo que não se consegue fazer por si próprio". No entanto, a expectativa é de que os homens e mulheres contemporâneos sejam autossuficientes e autocentrados. O que pensa desse paradoxo?

Sennett: O problema aqui está em como pensar em precisar de pessoas com as quais não se está conectado intimamente, que não se conheça bem ou mesmo de quem não se gosta. Ou seja, de um modo mais adulto e complexo. E essa é a realidade adulta que está presente na "cooperação". No entanto, para que isso seja feito é necessário imaginar que as relações sociais são como uma oficina [workshop] na qual as pessoas, com diferentes qualidades e habilidades, trabalham sobre um problema comum. Uma oficina não é apenas uma oficina de artesanato; existem laboratórios científicos que funcionam da mesma maneira. O paradoxo, então, não está na sociedade como um todo, mas exatamente no fato de que o sistema econômico recompensa e premia uma forma não produtiva de trabalho conjunto. E o sistema trata as pessoas como autossuficientes porque recompensa aqueles poucos que o são e não recompensa muito bem aqueles que não têm esse tipo de "capital humano" ou posição social. Desse modo, se há um paradoxo, aqui, diz respeito ao fato de que o sistema está cego para aquilo que é, de fato, produtivo.

"Uma das coisas que espero que fiquem claras é que não faço distinção entre corpo e mente, ao me ater a como os seres humanos produzem coisas"

Valor: Como o senhor vê as mobilizações sociais como Occupy Wall Street e os movimentos sociais omo a Primavera Árabe?

Sennett: Com prazer! Mas são formas muito diferentes de cooperação. O que chamamos de Primavera Árabe foram movimentos de massa nos quais as pessoas cooperavam em grandes multidões, e o fato de se juntarem em uma quantidade enorme de pessoas foi parte de sua força. Os movimentos Occupy foram bem menores - e isso é algo que as pessoas esquecem, que eram de apenas 200 ou 300 pessoas. Esses movimentos não se apoiaram na quantidade de participantes e, sim, na persistência em provocar uma conscientização no público, de maneira geral, por meio da mídia. Em outras palavras, não era um movimento de massa, como o entendemos, mas tornou-se um na medida em que despertou o público de maneira bem diferente. E a cooperação, aqui, está no fato de que essas 200 ou 300 pessoas, dormindo juntas no parque, em Nova York, criaram laços sociais que permitiram que perseverassem. Os movimentos Occupy não eram "demonstrações", que teriam a duração de algumas horas ou um dia, mas "ocupações" de longo prazo - o que deu às pessoas envolvidas a força para continuar a tentar despertar o público. Nos movimentos da África do Norte havia uma massa de pessoas que não precisava ser acordada. Elas haviam vivido sob tirania por décadas. O que precisavam era de um "instrumento" por meio do qual se juntar. Mas na Inglaterra e nos Estados Unidos os movimentos Occupy aconteceram após três anos de colapso financeiro, durante os quais a maioria das pessoas comprou a história de que o sistema tinha de ser restaurado ao que era antes, e os ocupantes desafiaram isso. As formas de cooperação são, então, muito diferentes, uma impessoal e outra bastante pessoal, com objetivos distintos. Mas ambas são formas de cooperação política.

Valor: O seu livro "Carne e Pedra" (1992) é um estudo sobre como a experiência do corpo tem sido moldada pela evolução das cidades. Como é que o terceiro volume de sua trilogia está relacionado ao seu trabalho anterior?

Sennett: É claro que vou me apoiar em minhas pesquisas anteriores, mas a diferença está em que o terceiro volume tem como tema o design urbano, o planejamento e a arquitetura como ofícios. O foco estará menos na maneira em como as pessoas habitam espaços que não construíram e mais em como construir cidades de melhor qualidade por meio do design.

Valor: O corpo como sítio, como uma "cidade". O que o senhor pensa dessa ideia?

Sennett: O corpo é uma cidade! Sim, é um sítio tanto de conhecimento quanto de ação. E uma das coisas que espero que fiquem claras ao final dessa trilogia é que não faço distinção entre corpo e mente, ao me ater em como os seres humanos produzem coisas. Desconfio absolutamente da ideia de que as pessoas, quando produtivas, estejam fisicamente desconectadas e de que tenham uma vida espiritual divorciada dos sentidos. É estranho, mas esse é um tipo de romantismo que tem persistido: acreditar que se tenha uma vida interior divorciada da vida exterior.

Valor: E os seus romances? Como estão relacionados ao seu trabalho sociológico?

Sennett: Gosto bastante de "Palais Royal" (1987). O que aconteceu foi que, quando terminei "O Declínio do Homem Público" (1974), senti que a minha escrita estava se deteriorando e eu estava perdendo a habilidade de escrever de maneira "evocativa". Leio ficção sempre; decidi, então, que começaria a escrever romances para encontrar caminhos por meio dos quais rejuvenescer a minha escrita. Escrever não é algo natural para mim; os resultados são satisfatórios, mas preciso fazer um esforço. Assim, escrevi romances porque precisava fazer o meu workshop pessoal.

Giovanna Bartucci é psicanalista, professora doutora de teoria psicanalítica (UFRJ), autora de "Fragilidade Absoluta. Ensaios Sobre Psicanálise e Contemporaneidade" (Planeta), entre outros livros

"Juntos: Os Rituais, os Prazeres e a Política da Cooperação". Richard Sennett. Trad.: Clóvis Marques. Record, 378 págs., R$ 49,90

FONTE: VALOR ECONÔMICO – EU & FIM DE SEMANA (25/07/12)

domingo, 26 de agosto de 2012

Não é por falta de eleições (Jairo Nicolau/entrevista)


O voto no Brasil antecedeu a democracia e conviveu com diversos regimes, inclusive o militar

Wilson Tosta

Para Jairo Nicolau, o Código Eleitoral de 1932 foi um marco

RIO - De volta a um tema que visitara dez anos antes - a história das eleições brasileiras -, o pesquisador Jairo Nicolau, pós-doutor em ciência política e professor titular da disciplina na UFRJ, encontrou um País surpreendentemente parecido em seu passado político com outros que hoje são festejadas democracias. Assim como a Inglaterra, o Brasil tinha eleições já no século 18, quando colonos escolhiam pelo voto vereadores, juízes de paz e procuradores, e, da mesma forma que os EUA, viveu no século 19 pleitos fraudados. Curiosamente, esses mesmos países estavam entre os que inspiraram intelectuais e juristas no desenho legal das instituições brasileiras que foram palco da vida política nacional desde a Independência. Nicolau descobriu ainda um Brasil que, há mais de cem anos, desenvolve “tecnologias” na tentativa de tornar mais confiáveis as disputas. Nosso primeiro título eleitoral nasceu em 1875, quando a República ainda era apenas uma ideia.

“Os legisladores brasileiros sempre foram muito criativos”, diz Nicolau, que está lançando Eleições no Brasil - Do Império aos Dias Atuais, pela editora Zahar, dez anos depois de História do Voto no Brasil, um livro de bolso pela mesma editora, com a mesma temática, porém mais limitado.

Alguns pontos se destacam na investigação mais recente de Jairo Nicolau sobre as eleições. Um é que, ao mesmo tempo que o País atravessou muitas vezes períodos de instabilidade política, as eleições repetiram-se com regularidade razoável - ainda que sua validade, como instrumento de representação, fosse muitas vezes questionável. Outro é que alguns sistemas eleitorais duraram períodos relativamente longos por aqui.

O voto censitário (que exigia que o cidadão, para votar, tivesse um certo nível de renda) marcou todo o Império brasileiro (de 1824 a 1889); a votação indireta para Câmara e Senado foi abolida apenas em 1881; e diversos tipos de eleição distrital foram usados durante a monarquia do Brasil. O voto distrital, inclusive, entrou pela República e só deu lugar ao proporcional em 1932, depois que a Revolução de 1930 mandou a República Velha para os livros de história.

Então as eleições no Brasil vieram antes da democracia? Segundo Nicolau, sim, mas isso não é exclusividade brasileira. O mesmo ocorreu em outros países hoje vistos como democracias modelo. Muito antes da queda do regime militar, em 1985, assinala, o Brasil já tinha uma exuberante variedade de instituições eleitorais. Elas existiam até sob a ditadura instaurada em 1964, que, mesmo com limitações, bipartidarismo imposto, falta de liberdades democráticas e legislação autoritária, realizou eleições com regularidade, embora para um Congresso Nacional sem poderes efetivos e constrangido pela força. Em 190 anos de vida independente, apenas durante 9 - de 1937 a 1945, no Estado Novo - o País ficou formalmente sem pleitos eleitorais. Uma peculiaridade brasileira, assim como o surpreendente aumento de participação eleitoral precisamente no mais duro período de fechamento da política nacional: a ditadura militar.

As pessoas olham para as eleições hoje, com voto obrigatório, partidos organizados, TREs, registro prévio de candidatos, campanha eleitoral regulamentada, e acham que sempre foi assim. No entanto, em termos históricos, esses são fenômenos relativamente recentes, não?

Naturalizamos nossas instituições eleitorais. Mas cada uma delas tem uma história particular. O Brasil tem uma das mais duradouras experiências de eleições do mundo, comparável às de importantes países. Mas a prática eleitoral nos nossos dias é muito diferente da de décadas atrás. Por exemplo, em meados do século 19 nenhum país tinha adotado o voto secreto e o alistamento prévio de eleitores, apenas homens da elite tinham o direito de voto e as fraudes ocorriam em larga escala.

O Brasil parece ter sido pioneiro em, digamos, tecnologia eleitoral - o primeiro título eleitoral brasileiro é de 1875. Aqui, inovamos ou imitamos?

Os legisladores brasileiros sempre foram muito criativos com a “tecnologia” eleitoral. Não tenho informações sobre o uso de documentos de identificação eleitoral em outros países, mas o título de eleitor brasileiro talvez seja um dos primeiros do mundo. As medidas para garantir o sigilo do voto, primeiro o envelope oficial e depois a cédula única, foram decisões importantes. Recentemente, o Brasil se tornou provavelmente o primeiro país a ter um controle eletrônico do processo de votação, em um ciclo que começa no alistamento, chega à votação na urna eletrônica e termina com a apuração.

Seu livro começa nas eleições da Colônia. Esses pleitos eram importantes?

Desde o século 16 a coroa portuguesa criou um sistema de eleições para cargos em âmbito municipal. As regras vigoravam tanto em Portugal como nas colônias. Fiquei impressionado com a sofisticação das regras eleitorais. Encontrei alguns estudos de caso que mostram que havia eleições regulares. Mas gostaria de ter achado mais pesquisas sobre o tema para ter segurança de dizer que as eleições realmente eram uma rotina da governança colonial.

Como eram as eleições no Império?

De 1825 até o fim do Império, em 1889, foram mais de seis décadas de eleições. Um fato que chama a atenção é a regularidade dos pleitos no período. Para dar um exemplo: houve 27 eleições para a Assembleia Legislativa da Província do Rio de Janeiro. A legislação eleitoral foi muito alterada nessas seis décadas e não creio que seja possível tratá-la como um bloco monolítico. Os relatos mostram que as fraudes foram amplamente utilizadas, mas a partir da década de 1880 elas diminuíram, graças à criação do título de eleitor e à administração do pleito pelo Judiciário.

Pode-se fazer um paralelo do Brasil da época com outros países?

O Brasil tem uma das mais ricas experiências eleitorais do século 19. As fraudes eleitorais não eram uma singularidade do País. Muitos estudos mostram que eram uma prática generalizada na Europa, nos Estados Unidos e em outros países latino-americanos.

É interessante notar que, ao longo do Império e da República Velha, mais de cem anos, o País teve voto distrital. A que podemos atribuir isso?

O que chamamos sistema eleitoral majoritário distrital foi o primeiro a ser adotado nas eleições para o Parlamento dos países europeus. O sistema proporcional é uma invenção do final do século 19 e foi adotado pela primeira vez na Bélgica, em 1899. Um dos temas centrais do debate sobre a reforma eleitoral feito no Império e na Primeira República foi a ampliação da representação das minorias, entendido na época como os grupos não dominantes das elites estaduais. Só no século 20 se descobriu que a melhor forma de fazer isso seria por intermédio da representação proporcional.

Podemos dizer que somente após a Revolução de 30 as eleições no País ganharam mais seriedade ou isso é uma simplificação?

O grande marco da história eleitoral do Brasil é o Código Eleitoral de 1932, que aliás faz 80 anos. Ele criou a Justiça Eleitoral, ampliou o direito de voto para as mulheres, introduziu regras para o sigilo do voto e adotou a representação proporcional. As duas eleições da década de 1930 (1933 e 1934) são consideradas pelos atores da época como eleições limpas e competitivas, embora ainda com reduzido número de eleitores.

Seu livro levanta alguns dados curiosos. Um, mais conhecido, é que o País teve, por um período curto, representação classista, deputados eleitos por categorias profissionais, ao lado de representantes gerais. Outro é que chegou a ser possível o registro de candidaturas de grupos de eleitores e candidaturas avulsas. Como essas instituições funcionaram?

O governo provisório de 1930 inventou um sistema representativo que combinava um Legislativo tradicional - deputados eleitos pela população - com uma parte de representantes eleitos pelos sindicatos, de trabalhadores e patronais. Curiosamente, a representação corporativa não foi proposta pelo grupo de juristas que criou o Código de 1932. Essa era uma reivindicação do Clube 3 de Outubro, que apoiava Getúlio Vargas, e foi adotada sem nenhuma discussão pública. Nos anos 1930 ainda não estava tão claro que os partidos teriam o monopólio da representação como aconteceria depois. Nas eleições de 1933 e 1934 concorreram partidos, ligas, associações e candidatos avulsos. Mas no cômputo geral os candidatos avulsos não foram tão bem-sucedidos.

Quando o voto proporcional entra em cena no Brasil?

Uma primeira versão de voto proporcional foi adotado em 1932. Mas nesse caso ainda em combinação com um sistema majoritário. A representação proporcional de lista (modelo ainda em vigor) começou a ser utilizada em 1945. A defesa da representação proporcional não foi uma causa de partidos ou movimentos sociais, mas praticamente de um único homem: Joaquim de Assis Brasil, um político gaúcho. Durante toda a Primeira República, ele defendeu quase solitariamente a representação proporcional. Coube a ele a presidência da comissão responsável por elaborar o Código de 1932. O que facilitou a escolha por esse sistema.

Houve algum motivo especial para adoção do voto proporcional em 45?

Na realidade, ele foi criado como uma mudança no sistema misto inventado em 1932. O sistema era tão complexo - havia a opção de o eleitor votar em mais de um nome - que causou enorme confusão. Em alguns Estados a apuração dos votos demorou semanas. Quando o País se redemocratizou, em 1945, foi feita a proposta de votar em um único nome, com votos contabilizados apenas para os partidos. Os legisladores não copiaram esse modelo de nenhum outro país. Até porque, entre os casos que consegui estudar, ele não estava em vigor em nenhum lugar do mundo.

Onde mais podemos encontrá-lo?

Outros países chegaram ao voto proporcional por caminhos próprios. Depois os estudiosos passaram a chamá-lo de lista aberta. A Itália utilizou um sistema muito parecido entre 1945 e 1992; o Chile, entre 1958 e 1973. Outro país que utiliza a lista aberta há muitos anos é a Finlândia. Entre as novas democracias, o Peru, a Polônia e a Letônia usam.

O regime militar brasileiro teve, entre suas peculiaridades, eleições para cargos de pouco poder. Por que essa obsessão?

O regime militar manteve eleições para o Congresso, ainda que com muitas restrições, para as câmaras municipais e para prefeitos da maioria das cidades, com exceção das capitais e cidades consideradas de segurança nacional. A suspensão plena foi da eleição para presidente e governadores. Creio que a “invenção” do bipartidarismo, em 1966, com forte domínio de um partido governista, a Arena, deu segurança para que os dirigentes militares mantivessem o calendário eleitoral. Pesquisando o material da época, não lembro de encontrar personagens relevantes defendendo a organização de um sistema político completamente sem eleições.

Seu livro também aponta um dado intrigante: o aumento na participação eleitoral durante a ditadura, apesar da redução de opções. Por que isso?

Os dirigentes militares alteraram profundamente o processo eleitoral, com medidas que iam das cassações e uso da violência até alterações oportunistas das regras para favorecer a Arena, mas não fizeram nada para mudar o processo de alistamento eleitoral. As regras vindas da República de 1946 se mantiveram: cidadãos alfabetizados que completassem 18 anos eram obrigados a se alistar. O crescimento do eleitorado deve-se em larga medida ao crescente contingente de adultos alfabetizados no País. Não vejo muitos sinais de que o eleitorado tenha crescido como fruto da mobilização política. Para o cidadão, o que conta é o medo das punições decorrentes do fato de ele não tirar o título.

Em 2010, tínhamos 95% da população adulta alistada como eleitora, e 78% dos eleitores votaram, mantendo-se perto da média de anos anteriores. Isso não é contraditório com os discursos de “desilusão com a política”? Afinal, desiludida ou não, a maioria vota. Como explicar essa contradição?

Esses números são estimativas com bases em projeções que fiz. Na verdade, não sabemos ao certo quantos adultos não estão inscritos como eleitores atualmente. Uma parte deles, como eleitores com mais de 70 anos e analfabetos, tem o direito de fazê-lo. Outros podem ter se autoexcluído por motivos políticos. Somente uma nova pesquisa sobre participação política poderia dar um quadro completo dos eventuais excluídos do processo eleitoral brasileiro. Com relação ao comparecimento eleitoral, os números são estáveis: cerca de 80% dos inscritos comparecem para votar. Entre os 20% que não comparecem, em torno da metade justifica seu voto. Não há nenhum sinal de que qualquer desilusão política se traduza em aumento da abstenção. Sem contar que os votos em branco e nulos caíram na última década.

O sistema proporcional de lista aberta tem 50 anos e sofreu apenas duas alterações. Uma delas mudou a fórmula de calcular as cadeiras, excluindo os votos em branco do quociente eleitoral. Outra foi a volta das coligações proporcionais. As duas mudanças beneficiaram partidos pequenos, entre eles algumas máquinas nanicas, voltadas para práticas pouco republicanas, como a venda de apoio parlamentar em troca de cargos, verbas e outros favores. Por que essas mudanças ocorreram? A volta das coligações veio com o fim do regime militar, mas a exclusão dos em branco ocorreu já em 1994...

A contagem dos votos em branco no cálculo eleitoral vinha desde de 1945 e realmente prejudicava os pequenos partidos. Seu fim foi aprovado no Congresso com o apoio dos grandes partidos, que perderam com a nova regra. É difícil entender as razões. Talvez o fato de que o que conta para cada partido seja o seu tamanho nos Estados. Uma legenda pode ser grande nacionalmente e pequena em um determinado Estado. Nesse caso, teria todo o interesse em aprovar a medida. Quanto às coligações para cargos proporcionais, elas existiram na República de 1946 e voltaram com a redemocratização, em 1986. Elas geram distorções graves e deveriam ser abolidas. A comissão de reforma presidida pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS) propôs, em 2011, abolir as coligações. Mas a proposta não avançou.

Se olharmos a história brasileira, veremos pouco mais de 40 anos de eleições com um grau razoável de confiabilidade, de 1946 a 64 e após o fim do regime, sobretudo a partir de 1986. É praticamente um quarto do período que o senhor pesquisou, de quase 200 anos. Podemos dizer que no Brasil eleições e democracia, na maior parte do tempo, não caminharam juntas?

Na história, as eleições antecedem a democracia. O caso clássico é o da Inglaterra, que, embora escolha os membros da Casa dos Comuns pelo voto desde o século 18, só organizou um sistema democrático moderno, com sufrágio feminino, no início do século 20. No Brasil não foi diferente, as eleições também antecederam à democracia. O que tento mostrar é a riqueza das instituições eleitorais no País antes de consolidarmos um regime plenamente democrático, a partir de 1985. O que chama a atenção no caso brasileiro é que as eleições conviveram com diversas formas de regime político, inclusive o regime militar. Vale a pena lembrar que elas só foram formalmente suspensas durante o Estado Novo, de 1937 a 1945.

FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO

domingo, 19 de agosto de 2012

O Lulismo na interpretação de André Singer



Tentando entender o fenômeno do Lulismo: o comentário de Celso F.R. de Barros sobre o livro de André Singer e a entrevista com Singer falando sobre seu livro. Leia as duas matérias publicadas na Folha de São Paulo.

 E a esquerda encontrou os pobres - CELSO F. ROCHA DE BARROS

O governo Lula foi o encontro entre a esquerda e os muito pobres, que são mais da metade de nossa população. Os dois foram apresentados por um parente em comum, Lula, que só se reconciliou com os muito pobres ao adotar a política econômica dos muito ricos, o que o PT sempre achou esquisito e dois livros recentes de intelectuais que participaram do governo Lula ajudam a explicar.

O cientista político André Singer, ex-porta-voz de Lula, desenvolve em "Os Sentidos do Lulismo" [Companhia das Letras, 280 págs., R$ 30] os argumentos de um artigo publicado em 2009. Singer identificou um deslocamento que passou despercebido enquanto ocorria: quando o escândalo do mensalão derrubava a popularidade de Lula na classe média, de 2005 a 2006, sua aprovação subia entre os muito pobres.

O eleitorado de Lula sofreu uma subtração grande de votos de classe média e uma imensa adição de votos dos muito pobres. Até 2002, como Singer havia documentado em estudo, dava-se o contrário: Lula e o PT se saíam melhor junto a eleitores de classes mais altas e em regiões mais desenvolvidas.

Mas o que, afinal, foi o lulismo e o que explica seu sucesso? Estudos anteriores de Singer oferecem uma chave para ambas as respostas. Suas pesquisas mostravam que os muito pobres eram conservadores (por exemplo, contrários a greves), mas esperavam um Estado ativo na redução da pobreza. Essa ideologia popular era consistente: os muito pobres, ao contrário dos trabalhadores sindicalizados, não têm chance de recuperar com greve o que a inflação lhes rouba de salário; daí também sua preferência pelo combate à inflação.

Os muito pobres, por outro lado, não têm chances de melhorar de vida só pelo mercado; precisam de políticas sociais que os ajudem. Ao vencer, Lula modera o discurso, aceita o objetivo de manter a inflação baixa e muda o foco para o combate à pobreza, desesperando petistas históricos, mas virando o que os muito pobres esperavam.

Em comparação com os artigos iniciais, o livro de Singer é mais denso. Ele traz seus estudos empíricos para conversar com quem chama de "dois Franciscos": Weffort, autor de estudo clássico sobre populismo, e Oliveira, talvez o principal crítico do PT à esquerda.

Contra Oliveira, Singer diz que o "reformismo fraco" do lulismo não é "regressivo" e que seu potencial político dependerá de disputas futuras (a lamentar, aqui, só o excessivo respeito de Singer pelo programa petista dos anos 90).

E o trabalho de Weffort sobre o populismo foi a base para Singer analisar a situação em que o líder paira sobre as classes e atende a interesses populares sem pôr em risco a elite. Há vários trechos no livro sobre as "linhas de continuidade" entre varguismo e lulismo.
(segue ..............)

Cientista político André Singer explica sua tese sobre o lulismo

PAULO WERNECK
EDITOR DA "ILUSTRISSÍMA"

Chega às livrarias no final do mês o livro que consolida a teoria do cientista político André Singer sobre o "lulismo", expressão que ele cunhou em artigos e em sua tese de livre-docência, defendida em 2011, no departamento de política da Universidade de São Paulo.

Em "Os Sentidos do Lulismo" (Companhia das Letras), Singer expõe, amparado por inúmeras tabelas e pesquisas, a versão brasileira de um fenômeno observado nos EUA dos anos 1930, em torno do presidente Roosevelt: o "realinhamento" do eleitorado, isto é, o rompimento de determinados setores com adesões históricas, substituindo lideranças de forma duradoura. Ou, como quer Singer no caso brasileiro, "definitiva".

Além de professor da USP, Singer é jornalista --foi secretário de Redação da Folha-- e foi porta-voz de Lula na Presidência, de 2002 a 2007, de onde observou a guinada tanto do governo como da opinião pública entre 2005 e 2006, quando começa o fenômeno do lulismo --e eclode o escândalo do mensalão.
"Os Sentidos do Lulismo" é, porém, o trabalho de um cientista social --por isso não espere as revelações e os bastidores que são a delícia das memórias de ex-membros de governos. Singer diz ter a intenção de, um dia, "fazer um depoimento, algo mais pessoal".

Leia abaixo a íntegra da entrevista, concedida em sua casa, na Vila Madalena, em São Paulo, na qual comenta aspectos de seu trabalho e da política brasileira.


Folha - Embora não esteja no foco da análise, o livro mostra como o mensalão catalisou o antilulismo. O mensalão aglutina insatisfações?
 
André Singer - Foi o ponto em que a classe média definitivamente se afastou do que depois veio a ser o lulismo. Esse é o momento em que o lulismo e o antilulismo se cristalizam. A minha hipótese é que houve um percurso algo silencioso, um pouco subterrâneo, de mudanças importantes, que ocorreram ao longo do primeiro mandato do ex-presidente Lula.

Essas mudanças acabaram por cristalizar uma nova polarização política, que se expressou nas eleições de 2006. Se você pegar a curva de intenção de votos pelo Datafolha desde o começo de 2006, quando ainda as pessoas não estão muito ligadas na questão eleitoral, e for vendo como isso transcorre ao longo de 2006, percebe que a configuração já é outra, bem diferente daquela que tinha se dado em 2002. Houve esse deslocamento de apoios: de um lado, os eleitores mais pobres se aproximando do Lula, e, de outro, os eleitores de renda mais alta se afastando.

Essa clivagem não tinha ocorrido no Brasil desde 1989, quando aconteceu no sentido inverso: Lula ganhou no segundo turno em todas a faixas de renda, menos na mais baixa, e Collor perdeu em todas, menos na mais baixa, o que mostra duas coisas. Em primeiro lugar, como esse eleitorado é decisivo.
Há uma certa percepção distorcida, como se a classe média no Brasil fosse maior do que efetivamente é. Se você usar critérios de mercado, que não são os melhores, mas são os que estão disponíveis para falar de classes A e B, o índice nunca passa de 15% no Brasil, está entre 10 e 15%. É pouca gente. No entanto, essas são as pessoas que leem jornal, leem revista, e isso cria uma percepção um pouco alterada da realidade.

Esse eleitorado mais pobre é muito decisivo continuava decisivo em 2006 e, a meu ver, continua sendo muito decisivo em 2012. Os 50% que estão em torno de uma renda familiar de até dois salários mínimos, o que é bem pouco. Então eu acho que em 2006 se cristaliza essa mudança que eu imagino que tenha ocorrido em 2005.

Isso mostra como esse eleitorado mais pobre é muito mais importante do que se costuma pensar. Se você cruzar o apoio ao governo Lula com a renda familiar, percebe que, em 2005, com a divulgação das notícias do mensalão, começa a haver perda de apoio nos segmentos de classe média, a partir de cinco salários mínimos de renda familiar. Minha hipótese é que essa perda de apoio, vou usar uma palavra um pouco forte, pois na história as coisas acabam por mudar, é definitiva. Eu creio que seja uma mudança de longo prazo.
 
É um erro a teoria de que a classe média forma opinião da baixa?

Esse é um tema muito interessante, porque aí existem duas coisas. Existem, de certo ponto de vista, um equívoco, mas eu diria até que é mais importante uma mudança que eu penso que é estrutural. Por isso é que eu pus o título meio provocativo na introdução, "Alguns temas da questão setentrional", que é uma paródia daquele ensaio clássico do [Antonio] Gramsci ["Alguns temas da questão meridional"].

Aí existe um equívoco, de que a classe média formata a opinião de pessoas que têm menos renda, menos escolaridade, menos informação. Mas isso é menos importante que uma mudança estrutural que aconteceu: havia um grande bloco, formado pela adesão, sobretudo no Nordeste, dos eleitores mais pobres do interior, ao voto conservador.

Isso é uma tradição política que vem de muito longe. Se você observar, já no período 1945-64 essas são regiões que votam sistematicamente na UDN e no PSD [partidos conservadores], não votam no PTB [partido de Getúlio Vargas], só no final do período que o PTB começa a chegar no Nordeste, primeiro nas regiões mais urbanizadas.

Aí vem o golpe militar. Se você observar, vai ver que a Arena sempre ganha as eleições nessas regiões, até o final do regime militar. Ao terminar a ditadura, o partido que emerge com mais força da antiga Arena, que é o PFL, tem muita reserva de votos, até o governo Lula, a ponto de o PFL, numa sobrevivência forte desse conservadorismo, atravessar o regime militar e chegar a ter uma aspiração plausível de disputar a Presidência República em nome do bloco comandado pelo FHC.

Se não fosse a morte de Luís Eduardo Magalhães, possivelmente ele fosse candidato. As pessoas esquecem, em face do que está acontecendo com o Democratas, que o PFL teve muita força nos anos 90. Acontece que o lulismo rompeu esse bloco, rompeu com isso aí.

Rompeu ou se apropriou de certos mecanismos de comunicação direta do líder com a massa? Em muitos momentos, lembra figuras como Antonio Carlos Magalhães, no que se refere à forma de se comunicar com o povo, sem mediação.

Eu diria que quebrou. Quebrou pelo seguinte: pela primeira vez, esse setor do eleitorado está votando numa opção, vamos chamar assim, popular. E isso, ao longo da história do Brasil, que eu saiba, nunca aconteceu. Estudos feitos sobre o Brasil entre 1945 e 64 mostram que, se não tivesse havido o golpe militar, provavelmente ia acontecer isso com o PTB, ele ia chegar lá.

É até possível que uma das razões que tenha precipitado o golpe tenha sido essa. A ascensão forte do PTB , a chegada do PTB em regiões onde este tipo de opção, vamos chamar assim de popular, nunca tinha chegado. Olhando historicamente, é uma quebra enorme. Agora, o que caracteriza a sua pergunta sobre comunicação direta da liderança com uma determinada massa, ou determinados tipos de política que podem ter favorecido esta mudança, como é o caso do Bolsa Família, é uma pergunta que diz respeito às características do lulismo.

Acho que há uma mudança muito nítida e importante, e boa parte do que tento mostrar no livro é isso. Independentemente do juízo de valor que se faça, se isso é bom, se isso é ruim, é importante notar que há uma mudança estrutural. Esses eleitores se realinharam, e esse realinhamento define um novo período da política brasileira.

Quanto à questão da comunicação direta, eu acho que existe, ou seja, o ex-presidente Lula é um grande comunicador popular, o fato de ter origem no Nordeste, de ter sido o primeiro presidente que tenha passado pela experiência direta da miséria brasileira não é algo de menor importância, é algo significativo.

Ele se comunica a partir de uma experiência que eu diria que a enorme parte dos políticos brasileiros nunca teve. Essa comunicação por via de uma experiência por parte de alguém que sabe se comunicar não me parece um elemento menor. Mas ele evidentemente não é o único, ou seca, não é um artifício
de comunicação, retórico.

Existe um elemento de comunicação também, mas ele não está solto, não está desvinculado. Porque eu tento mostrar com dados que as políticas são efetivas, têm resultados efetivos, palpáveis. Quantificar esses resultados, chegar a uma proporção adequada para entender o significado disso é o esforço que eu faço, e admito que é assunto para se debatido. Seja como for, acho que consegui demonstrar que há bases materiais, do contrário pode parece que é um mero efeito de retórica. A meu ver uma parte errada da crítica que se faz ao populismo -não estou defendendo o populismo- mas da análise equivocada que se faz ao populismo é dizer que é tudo um efeito de falsa mágica. Como se houvesse uma enganação.

Existe a tentativa de outros partidos para tentar se apropriar de políticas lulistas?

Minha hipóteses é que, enquanto durar o lulismo, que entendo como a expressão desse realinhamento eletoral, que, se eu estiver correto, tenderá a marcar uma era no Brasil, enquanto isso durar vai haver tentativas de apropriação que ficam muito nítidas na criação do PSD. O PSD é a demonstração, a meu ver, de que eleitoralmente não dá para ficar contra essas políticas. Então eles precisavam fundar um novo partido para ficar no meio, para ficar numa posição parecida com a do PMDB, que pode apoiar e pode também fazer alianças com o outro lado, a depender da conjuntura, mas que não fica numa posição definida.

O PSD precisa ficar numa situação em que eles evitem a marca de serem contra essas políticas, porque quem é contra não ganha eleição. Enquanto o lulismo durar, esse tipo de movimento vai acontecer. O que significa dizer que algumas dessas políticas, como o Bolsa Família, terão que ser mantidas. Politicamente, não poderão ser removidas, porque o custo eleitoral seria de um tamanho impagável por qualquer força que tenha aspirações majoritárias. Por isso é que eu acho que a mudança que ocorreu é importante, porque ela tende a ter durabilidade.
 
O PSD encarna aquilo que o cientista político Marcos Nobre chama de peemedebismo, uma força que se impõe na política brasileira pela lógica da adesão aos governos e do eventual bloqueio de políticas. O seu livro passa ao largo do PMDB, não está no centro do livro.

De fato ele não está, mas eu tento discutir essa tese do Marcos Nobre, ainda de maneira rápida, porque quando ele escreveu os artigos em que defende essa tese eu já estava com parte do livro escrita e não tinha condições de mudar. A tese dele é interessante, merece ser considerada, mas não acho que o PMDB seja o elemento central, que caracteriza a política brasileira. Esse elemento existe, esse partido que fica no meio, que pode estar aqui, pode estar ali, que tem um compromisso programático baixo, que permite esse tipo de oscilação, que é o que ele chama de peemedebismo.

O lulismo provocou uma repolarização da política brasileira, essa é a diferença entre a análise dele e a minha. Acho que não está havendo nem essa homogenização, nem essa pasteurização completa da política brasileira. Reconheço que essa tese é um pouco difícil de demonstrar, mas penso que houve, em função desse movimento de ascensão social, uma reação muito forte da classe média. Isso é um fenômeno social de proporções significativas. Mas o movimento a meu ver tem raízes nessa mudança que o lulismo está trazendo para o Brasil.

Eu não esperava, mas vejo acontecer essa enorme reação da classe média brasileira contra isso, o que trouxe à tona um aspecto de conservadorismo arraigado. Ou seja, a classe média está, nesse caso, propriamente reagindo. Quando você olha para as estatísticas eleitorais, você observa esse fenômeno.

Isso já está acontecendo agora, repetidamente. O PT é bem votado nas camadas mais pobres e é mal votado nas classes médias, considerando classe média um rol extenso, acima de cinco salários de renda familiar. Isso é um tipo de polarização que não era frequente no Brasil, e por isso eu afirmo que não estamos num período de peemedemização. Há uma polarização e essa polarização é significativa.

O que a torna pouco visível é que há uma decisão do projeto lulista de não radicalizar. Isso é parte central do projeto: que não haja radicalização política. Então o governo se empenha em não haver radicalização política, e até a própria oposição, ainda que haja alguns momentos nuançados nesse percurso, ao também não está apostando numa radicalização. A própria formação do PSD é exemplo disso. O esvaziamento do atual DEM e formação do PSD é uma opção pela não radicalização.

Mas, se não radicalizar parece ser uma opção dos atores políticos, na verdade isso está encobrindo uma polarização significativa, que faz com que as opções PT e PSDB hoje não sejam a mesma coisa. Portanto me parece errado falar em pasteurização, peemedebização e homogenização, ainda que eu reconheça que o PMDB tem um papel. Eu tento mostrar que o PMDB foi incorporado nessa aliança mais recente, que elegeu a Dilma, como uma espécie de Poder Moderador que ele está desempenhando de maneira bem consciente.
 
O que pensa da crítica ao lulismo por ter desmantelado sindicatos?

O lulismo é uma opção de fazer essas mudanças de maneira pactuada. Por isso, falo em pacto conservador, que implica um preço a pagar: as mudanças serão bem lentas. Todo o bloco político diretamente vinculado ao lulismo ou influenciado por ele sofre a repercussão dessa opção. Há uma espécie de rebaixamento do antigo radicalismo do PT e de todas as suas áreas de influência, quem sabe até os próprios sindicatos.

Tenho dúvida, mas não sou especialista no assunto, é se houve um movimento de cooptação que, por assim dizer, desdentou os sindicatos. Um exemplo destes dias é a posição da CUT em relação à greve dos funcionários públicos. A CUT está se comportando, segundo observo, como uma central sindical. Não é parte do governo, mas do movimento sindical, e está cumprindo sua função de expressar interesses dos trabalhadores.
 
Chama a atenção no livro que você procura fundamentar o famoso bordão de Lula, "nunca na história desse país", arriscando uma interpretação mais profunda para o que parece mero lance retórico.
 
O que tento fazer ali, e o livro todo tem essa intenção, é explicar. A minha principal aspiração é fornecer um hipótese explicativa. Essa frase, que irrita muito uma parte da opinião pública, tem a ver com isso: ele não está falando com os chamado formadores de opinião, mas com pessoas para as quais de fato isso faz sentido.

Não que essas políticas tenham começado rigorosamente no governo Lula, mas elas deram um salto de qualidade de tal ordem que, para esse setor mais carente da sociedade, faz sentido a ideia de que agora, pela primeira vez, o Estado está olhando para mim, está tentando me amparar.
 
A experiência no Planalto trouxe mais embaraços ou clareza para enxergar as coisas?

O livro foi feito em duas etapas, muito separadas. Primeiro, quando eu estava no governo, nunca imaginei o que ia escrever o que acabei escrevendo, porque estava lá na condição de jornalista, não de cientista político. E na verdade a atividade de governo é de um tal grau de envolvimento que não dava tempo de refletir. Tomei notas para mim mesmo, mas nada que envolvesse algum grau de reflexão e leitura. E eu também tenho por limitação pessoal essa incapacidade fazer duas coisas ao mesmo tempo.
Fiquei mergulhado na coisa do governo e, quando saí, em maio de 2007, voltei para São Paulo, reassumi as aulas na USP e comecei a pensar o que ia pesquisar, pensei que estava muito interessado em ver o que aconteceu. E fiz um percurso quase praticamente do zero, desde olhar os dados eleitorais, fazer leituras. Num certo momento, relendo o "18 Brumário" de Marx, me veio essa ideia: eu acho que o que aconteceu foi um tipo de configuração que lembra o apoio dos camponeses ao Luís Bonaparte.

Tudo isso aconteceu depois, não foi durante. Eu diria para você que a resposta é dos dois lados: acho que ter estado lá me ajudou, porque eu comecei a me lembrar de coisas tinham acontecido, e acho que ter visto aquilo acontecer no dia a dia, quando fui reconstruir, tenho a impressão que me ajudou. Por outro lado, sempre fico muito temeroso de estar sendo levado pelo meu desejo.
Ou seja, como obviamente fiz parte do governo e o defendi, fico sempre me perguntando de novo, de novo e de novo, se não estou me autoenganando. Isso sempre me traz certa dúvida com a qual eu tive que lidar. Eu até coloco isso no livro. Eu me dei conta de que o que eu estava fazendo envolvia um risco.
 
Você teme que o livro seja percebido como alicerce teórico do governo, sem independência intelectual?

Temo, pois acho que seria uma forma de desqualificar o trabalho. Embora eu possa estar equivocado em tudo, desde as premissas até as conclusões, passando pelos argumentos, julgo que fiz um esforço intelectual honesto para demonstrar aquilo que estava vendo.
Estou comprometido com um tipo de independência crítica que é a contribuição que os intelectuais podem e devem dar. Gostaria que meu trabalho fosse lido dessa forma, que fosse objetado e contestado, mas com base na argumentação interna e nas evidências empíricas que proponho, e não em uma afirmação desse tipo, que pode simplesmente desqualificar.

FOLHA DE S.PAULO
19/08/2012 

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

IDEB/2011 - Naufraga a educação de Vila Velha?

O IDEB é o melhor indicador sobre a qualidade da gestão na área da educação. Foi por isso que no último encontro da Undime alguns secretários municipais pediram a não divulgação dos dados, nesse momento. Queriam esconder a lambança sob o tapete.
Afinal, esses números servem para desmascar muito discurso embromador.
Vejam os números de Vila Velha:

5º ano (séries iniciais do ensino fundamental)

2005 - 4.0
2007 - 4.4
2009 - 5.0
2011 - 4.9 (queda de um "ponto" em relação a 2009)
Obs: meta 5.1

9º ano (séries finais do ensino fundamental)

2005 - 3.6
2007 - 3.8
2009 - 4.0
2011 - 4.0
Obs: meta 4.1

É necessário observar que Vila Velha vinha em um consistente processo de crescimento na médias obtidas e superando as metas estabelecidas pelo MEC.

Nacionalmente, os melhores desempenhos e as maiores taxas de crescimento tem se dado nas séries iniciais e em Vila Velha não era diferente. De 2005 para 2007, um crescimento de 4 décimos. De 2007 para 2009, um crescimento de 6 décimos. Crescimento de um ponto de 2005 a 2009.

Nas séries finais,  um crescimento mais moderado, também acompanhando uma tendência nacional, dois décimos a cada Ideb.

O Ideb de 2009 é "híbrido", mede o trabalho do último ano da gestão Max Filho (2008)  e o primeiro ano de Neucimar que ainda usufrui dos resultados do trabalho do gestor anterior.

O Ideb de 2011 pega 2 anos de exclusiva responsabilidade da gestão de Neucimar Fraga, isto é, os anos de 2010 e 2011.  E 2011 representa uma inflexão nesse processo que se observava de 2005 a 2009.
Se  em nível nacional  permanece a tendência de melhores resultados, em Vila Velha caímos um décimo (de 5.0 para 4.9) e ficamos abaixo da meta de 5.1. Ou seja, é quadro preocupante: queda  nas séries iniciais (onde todo mundo cresceu)  e estagnação nas séries finais. Pior, ficamos aquém da meta nacional para o Ideb de 2011.

É, portanto, o retrato do sucateamento a que foi submetida a rede municipal, o desmonte dos projetos pedagógicos executados, o despreparo dos gestores (especialmente a passagem de Heliosandro pela Secretaria) e a descontinuidade administrativa marcada pela passagem de quatro secretários em quatro anos de mandato.
Para quem, em 2009, chamou uma coletiva de imprensa e anunciou que Vila Velha alcançaria 8.0 no Ideb ao final do mandato é um desastre e, mais que isso, um mico.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O legado de Altamiro Carrilho (Juca magalhães)

Esse agosto não está muito bom para a comunidade musical de qualidade não, já perdemos o Celso Blues Boy e o Magro do MPB4 e agora acabo de ver a dolorosa e triste notícia do falecimento do grande flautista Altamiro Carrilho. No fundo nem é tão triste assim, afinal, Altamiro viveu bem 87 anos de muita música e através dela conheceu a glória internacional. Tristeza me dá porque tão poucos são como ele, embora seu legado – e elegância - há de prosseguir nos lábios de um Zé Benedito, meu compadre, seu discípulo dileto no chorinho.

Por essas voltas inexplicáveis que a vida dá, faz quase dez anos eu fiquei por conta de ciceronear o Altamiro aqui em Vitória e Vila Velha, acabei sendo o apresentador de um concerto da OFES com sua participação tocando Mozart e tive a honra de segurar o seu flautim (no melhor sentido que vocês puderem imaginar) no inesquecível concerto de abertura da Festa da Penha de 2003, com a Orquestra Phylarmonia e regência de Modesto Flávio, salvo engano.


Como ficamos pra cima e pra baixo naquele dia 24 de abril acabamos conversando bastante, o Altamiro tinha já seus setenta e tantos na época, mas era um daqueles – hoje nem tão raros - sujeitos cheios de energia e disposição, me lembra o nosso maestro Adolfo Alves que dá banho de vitalidade na garotada. Lá pelas tantas descobrimos que fazíamos aniversário no mesmo dia e, sagitarianos apontando flechas para o espaço, vimos altas transcendências naquela coincidência trivial.

Eu fazia um programa de música clássica na pequena – inclusive de alcance - Radio Comunitária da Praia da Costa e como Altamiro era uma usina em movimento resolvi o levar pra dar entrevista no programa de meu amigo Clóvis Rosa. Foi um furdúncio do lado de fora da rádio. Logo apareceram alguns senhores do entorno que não acreditavam que o Altamiro estava naquela insignificante emissora. Pois o maior flautista do Brasil ficou lá umas duas horas. Contou um monte de histórias, deu discos de presentes, enfim, acima de tudo e de todos: deu uma aula de como uma lenda viva deve se comportar com dignidade, afeto e a simplicidade de um ser humano qualquer.

Conhecer Altamiro Carrilho definiu para mim a diferença que existe entre um astro e o estrelismo. A jóia rara e o falso brilhante. Sua música plainava soberana, não precisava “fazer tremer o chão”, tudo ao seu redor vibrava em consonância com sua alegria e seu alto astral. Cheguei a conclusão de que da musicalidade emana mais simplicidade do que alvoroço e que “a direção é mais importante do que a velocidade”. Sensação parecida tive quando encontrei Monarco e, bem recentemente, Dominguinhos em Domingos Martins. Como é bonita e grandiosa essa postura da tranqüilidade assentada de quem não precisa mais provar nada pra ninguém...

Portanto: Descanse em paz Altamiro Carrilho! E viva a música popular brasileira!!

terça-feira, 14 de agosto de 2012

As alianças políticas, absolutamente necessárias, e seus limites (Luiz Werneck Vianna)

Werneck Vianna defende que as alianças feitas no presidencialismo de coalizão não servem para que uma determinada orientação seja posta em prática, ou um determinado programa se viabilize, mas apenas para garantir maioria parlamentar para o governante

Por: Graziela Wolfart

Na visão do sociólogo Werneck Vianna, a ampla maioria que hoje o chefe do Executivo tem conseguido lograr no Legislativo tem dado estabilidade à política brasileira. “Mas é uma estabilidade que não faculta a aventura, o risco, a descoberta, a inovação. Certas reformas muito necessárias para que o país dê um avanço, um salto, esbarram nessa larguíssima coalizão que atinge várias dimensões, desde a economia e a política até a sociedade. Os ventos cruzados que se estabelecem no interior da coalizão governamental fazem com que haja um comportamento paquidérmico do governo, que é obrigado a respeitar os limites dados por essa amplíssima base governamental, onde todos cabem e onde tudo cabe”. Na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line Werneck afirma que o sistema partidário brasileiro “não foi feito para que a sociedade encontre formas expressivas de se incluir no mundo da política. Ele está feito para expressar interesses e diferenças regionais; não é um quadro que favoreça a limpeza e a firmeza de identidade. Ele está voltado para uma grande competição eleitoral. Isso certamente não oferece um bom cenário para a democracia política brasileira”. E constata: “estamos vivendo um momento em que os efeitos dessa política de presidencialismo de coalizão começam a se tornar cada vez mais complicados”.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, é autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012) (mais informações em http://bit.ly/IVmpmg).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que espécie de política se desenha em nosso país a partir das alianças que vêm sendo feitas em nome da busca pelo poder?

Werneck Vianna – Nossa forma não programática de alianças, que são feitas por meros interesses eleitorais – como o tempo de televisão –, já têm uma certa história. O presidencialismo de coalizão tem tido essa característica entre nós, porque não necessariamente ele deve ser tão arbitrário quanto à orientação programática. Mas o fato é que ele tomou essa característica desde o governo Fernando Henrique Cardoso, porque as alianças têm sido desencontradas. Ao longo dos mandatos do PT, especialmente a partir do segundo mandato do presidente Lula, isso tomou uma proporção imensa. Na verdade, essas alianças não são feitas para que uma determinada orientação seja posta em prática, ou um determinado programa se viabilize, mas apenas para garantir maioria parlamentar para o governante. Aliás, o tema da maioria parlamentar se tornou um espantalho desde o impeachment do governo Collor. Hoje a queda é atribuída, em boa parte de modo verdadeiro, ao fato de ele vir de um partido minoritário e não ter sabido compor uma base congressual. A partir daí, esse espantalho vem dominando o presidencialismo brasileiro. O fato é que, desde que essa política foi sendo vitoriosa, caíram todas as reservas, todas as prudências, formando-se um campo aberto de troca. Esse é o lado nefasto. No entanto, olhando de outro ângulo, essa base larga, essa ampla maioria que hoje o chefe do Executivo tem conseguido lograr no Legislativo tem dado estabilidade à política brasileira. Mas é uma estabilidade que não faculta a aventura, o risco, a descoberta, a inovação. Certas reformas muito necessárias para que o país dê um avanço, um salto, esbarram nessa larguíssima coalizão, que atinge várias dimensões, desde a economia e a política até a sociedade. Os ventos cruzados que se estabelecem no interior da coalizão governamental fazem com que haja um comportamento paquidérmico do governo, que é obrigado a respeitar os limites dados por essa amplíssima base governamental, onde todos cabem e onde tudo cabe. São empates que se sucedem e que têm um consenso muito difícil, e que não dão nenhum bônus, não dão agilidade e limitam a capacidade de uma nação em um momento em que inovar é fundamental. É preciso mudar o repertório da política que está anacrônico já há algum tempo. É evidente que essas alianças, por outro lado, afetam a identidade partidária. Os partidos já são naturalmente enfraquecidos por uma série de circunstâncias sociais que não são atuantes apenas aqui no Brasil, mas com essas acrobacias se tornam ainda mais vulneráveis. Por exemplo, em tese é aceitável, mas é difícil digerir o apoio de Paulo Maluf à candidatura do PT, por causa do histórico de oposição entre eles e pela história pessoal de Maluf, que não é muito recomendável.

IHU On-Line – É possível governar sem alianças políticas em um regime democrático?

Werneck Vianna – As alianças são absolutamente necessárias. Quanto a isso não resta nenhuma dúvida. Em uma sociedade plural, como a brasileira, pensar que uma tendência ou partido, ou apenas um sistema de orientação dará cabo dos problemas existentes é cair na ilusão, mesma ilusão que o Collor teve, de que a partir de um Executivo forte é possível reformar e reestruturar o país. Essa experiência foi feita também por Jânio Quadros antes de 1964, que governou sem uma base forte de sustentação e isso o levou à crise e à renúncia.

IHU On-Line – O problema está nos limites dessas alianças...

Werneck Vianna – Certamente. O limite deveria ser o programa. Mesmo que não fosse um programa explícito, mas um programa que tivesse certa abrangência, que pudesse admitir parceiros com identidades diversas e que pudesse ser revisado, e não essa “feira” ideológico-político-partidária em que nos encontramos, cujo efeito é o de estimular o decisionismo do Executivo, porque, dado esse empate entre as forças políticas que têm orientação desencontrada, esse poder se sente compelido a agir por sua própria orientação, tentando produzir resultados quase autocraticamente, através desse sistema decisionista, vertical. Este é um efeito muito negativo dessa construção.

IHU On-Line – O senhor poderia fazer uma breve análise do atual quadro partidário brasileiro?

Werneck Vianna – Não é fácil. Se formos tentar trabalhar a partir da clivagem mais ideológica, de velho tipo, teremos os partidos de orientação socialista e os partidos de orientação liberal-burguesa. Num campo teremos o PT, o PCdoB, o PSOL, o PPS de certo modo, que tem até o socialismo no nome, e teremos o PSB. E do outro lado teremos o DEM e outros que de memória não consigo recuperar. Não posso esquecer de mencionar o PDT, que entra no campo doutrinário do socialismo, isso se formos tomar o que é dito e não o que é praticado. Essa linha ideológica se mostra inoperante para recortar o quadro atual. O que temos é agregação de interesses. Temos partidos que agregam os evangélicos, os ruralistas e as corporações, que também se fazem presentes. Elas invadem a vida partidária. Esse sistema partidário não foi feito para que a sociedade encontre formas expressivas de se incluir no mundo da política. Ele está feito para expressar interesses e diferenças regionais; não é um quadro que favoreça a limpeza e a firmeza de identidade. Ele está voltado para uma grande competição eleitoral. Isso certamente não oferece um bom cenário para a democracia política brasileira. Por outro lado, tudo o que existe em nossa sociedade encontra formas de expressão na vida política partidária, o que é uma dimensão saudável. No entanto, isso cria um quebra-cabeça de enorme dificuldade. O presidencialismo de coalizão é uma resposta a isso: é criar certa unidade a partir deste mundo extremamente fragmentário. O problema é que só quem pode estabelecer essa unidade é o Executivo, o que faz com que esse quadro, que é aparentemente ameno e afável de expressão da diversidade existente na sociedade brasileira, contenha elementos autoritários, que favorecem a ação do Executivo, porque só ela é capaz de cimentar e soldar essa multiplicidade de identidades e interesses. Diga-se de passagem que o presidente Lula demonstrou um enorme tirocínio e habilidade em trabalhar diante desse cenário, tirando proveito desse quadro político e colocando-o a seu favor. Essa solda, esse cimento que ele soube instituir não é uma arte de fácil transferência. Essa era uma das características dele, pela sua capacidade de articulação que veio do seu treinamento no mundo sindical. Com a Dilma temos outro quadro na mesma política. Ela imprime outra administração, de alta burocracia do mundo da gestão, o que não quer dizer que ela seja indiferente à política. E não é. Mas ela não tem nem o mesmo gosto, nem o mesmo treino. Além do mais, “o Natal mudou”. O mundo já não é mais aquele de cinco anos atrás. A gravidade da crise econômica atesta isso. A necessidade de se fazer algumas reformas, como a reforma da legislação trabalhista, está se tornando cada vez mais imperativa. No entanto, a coalizão governamental que conhecemos é muito pouco permeável a uma reforma como essa. Basta pensar no PCdoB, que reage a essa reforma, ou no PDT, que é o partido do ex-governador Brizola. É um conjunto de forças que, dentro da coalizão governamental, reage a essa reforma, que parece ser cada vez mais inadiável. Outra questão é esse sistema altamente sensível da previdência. O fator previdenciário que o governo tenta extinguir por medidas de saneamento fiscal, em função da crise que já se abate sobre nós e que tende a se aprofundar, não encontra apoio na sua base governamental, inclusive no próprio PT. Estamos vivendo um momento em que os efeitos dessa política de presidencialismo de coalizão começam a se tornar cada vez mais complicados. Não só porque falta o Lula. Mesmo com ele esse quadro, que agora se exerce sobre a presidente Dilma, estaria presente.

IHU On-Line – Quais são os cenários possíveis de mudança nos próximos anos, levando em conta que, apesar de todas as fragilidades e incongruências, permitiu-se que vivamos o maior período de regime democrático?

Werneck Vianna – A democracia política tende a se aprofundar. Por exemplo, no julgamento do chamado processo do mensalão foram levados a tribunal líderes políticos do partido hegemônico da coalizão governamental. Não há registro na nossa história dessa autonomia das instituições, em que o judiciário, com independência do poder político, obedece aos procedimentos e leva a julgamento pessoas ligadas ao vértice do sistema de poder. Esse é um sinal. Não importa o resultado do julgamento, importa ver essas pessoas lá no tribunal, onde a questão é técnico-jurídica. Do ponto de vista político, importa que personalidades e figuras participantes do poder vão a julgamento e a sociedade participa desse processo apenas como observadora, como comentarista, sem que haja nenhuma comoção maior nas ruas. Não há nenhum assédio físico no Supremo Tribunal Federal. Isso é uma novidade, um avanço extraordinário das nossas instituições. Além disso, registre-se que, desde agora, com as eleições municipais, as fraturas desse sistema estão mais do que denunciadas. Basta ver o processo eleitoral em Fortaleza, no Ceará; em Recife, em Pernambuco; e em Belo Horizonte, Minas Gerais. Isso para mencionar apenas casos muito fortes, em que se observa que a coalizão governamental não consegue operar da mesma forma que estava acostumada, isto é, impondo ao local, ao municipal o seu programa de ação política. Isso mostra como a maturação da sociedade está pondo em xeque essa forma verticalizada de administração da política, que é o presidencialismo de coalizão. Tudo isso é muito favorável à vida democrática. O que se pode arguir é que é difícil construir um quadro político mais ordenado com essa pluralidade de partidos ou pelo menos com essa legislação que permite a partidos sem nenhuma expressividade terem acesso aos recursos do fundo partidário, ao tempo de televisão, dando a eles um poder de troca que, na verdade, favorece apenas às oligarquias que comandam as suas legendas. Estamos, por ora, condenados a fazer política num cenário em que as linhas de força vão todas no sentido da fragmentação e que a unificação disso depende de uma ação externa, que é o governo. Então fica essa marca autoritária, da dominação da dimensão vertical sobre a horizontal, que só uma reforma adicional pode dar conta. De modo que temos que aprender a trabalhar com esse quadro e superar as dificuldades que ele impõe à política. É um quadro caótico que só faz sentido no fim. Só o resultado da ação faz sentido, porque não faz sentido na articulação de cada parte, pois cada uma entra nisso pelo seu motivo particular. Isso dá um mapa desencontrado, que só pode fazer algum sentido por uma ação externa, de um outro, superposto a esses interesses desencontrados, que consegue estabelecer uma linha em que todos possam ser minimamente atendidos.

IHU On-Line – Na política brasileira hoje quem é antagonista de quem?

Werneck Vianna – Há antagonismos, mas nem sempre com a lógica do amigo e inimigo. Há uma lógica “adversarial”, mais do que de confronto, que vise levar à eliminação de um polo. Nós temos mais lutas agônicas do que lutas antagônicas. A política está se tornando, entre nós, mais um campo adversarial. Inclusive porque os dois principais partidos políticos brasileiros – PT e PSDB – têm muitas afinidades de fundo. Ambos estão com as raízes fincadas na social-democracia.

IHU On-Line – Em entrevista concedida a nossa revista em março deste ano, o senhor apostava no ressurgimento da política nos próximos anos com muita força, apontando que “não há mais possibilidade de segurar a sociedade com esse jogo de manter os contrários em permanente equilíbrio” . Como avalia essa declaração hoje, quatro meses depois?

Werneck Vianna – Confirmo-a inteiramente. Só que quando me refiro aos “contrários”, não falo das concepções antagônicas do mundo como, por exemplo, concepções socialistas e concepções liberal-capitalistas. Eu estava me referindo a interesses. O que eu estava dizendo é que o governo Lula foi capaz de trazer para o seu interior múltiplos interesses divergentes como a agricultura familiar e o agronegócio. Eu dizia que essa operação tinha um prazo de validade e que no governo Dilma tenderia a se derruir. E vejo que está se derruindo diante dos nossos olhos. Nós podemos dizer que a política volta agora de forma muito clara. As eleições municipais estão deixando isso manifesto. A pluralidade da sociedade está procurando formas expressivas como independência dessa forma política do presidencialismo de coalizão.

IHU On-Line – Qual é o balanço que o senhor faz do governo Dilma Rousseff? Algo ameaça uma possível reeleição da presidente?

Werneck Vianna – Essa é uma questão muito delicada e perturbadora para o cenário político atual. Nós estamos diante de um quadro em que há uma dualidade de representação. Quem detém, de fato, o poder: o governo ou o seu partido e a coalização que esse partido montou? Qual o papel aí do ex-presidente Lula como que representando o poder real, afastado por circunstâncias do calendário eleitoral, mas para o qual se espera uma volta triunfal em 2014? Esse é um quadro que cria muita instabilidade. Os movimentos e os partidos devem calcar a sua orientação pelo governo Dilma ou pela expectativa do retorno “sebastianista” do ex-presidente Lula? Isso tudo, essa dualidade, afeta o quadro atual, introduz nele elementos de instabilidade e tira força e capacidade de coesão dessa forma de presidencialismo de coalizão ao qual fomos acostumados nos dois governos de Lula. Essa é uma ambiguidade que atua de forma escondida na cena atual e não favorece o assentamento das forças políticas atuantes. O próprio partido hegemônico, o PT, se questiona a quem obedecer: ao governo ou ao seu líder maior, apenas contingentemente fora do governo, mas que logo voltará a ele? E Dilma poderá ou deverá se afirmar uma liderança nova, o que significa candidatar-se à reeleição desde agora? As incertezas quanto a isso favorecem a perda de controle que hoje está estabelecida por parte do centro do poder político sobre a sociedade e as forças políticas envolvidas.

IHU On-Line – O senhor acredita na volta de Lula à presidência em 2014? Dilma cederia espaço para ele?

Werneck Vianna – É difícil prever. O fato é que não faz bem ao governo dela, agora, abdicar da reeleição. Ela precisa do horizonte da reeleição para ter mais força hoje, especialmente em um momento em que o país está na iminência de viver perturbações derivadas da situação econômica. Nesse sentido, deverão existir forças orientadas a robustecer Dilma agora porque é preciso um presidente forte na hora da crise. E um presidente forte agora significa um presidente que vai lutar para a reeleição. Se isso viola o sistema de lealdades de Dilma com Lula é difícil de dizer, pois é uma questão subjetiva. No entanto, do ponto de vista da situação presente, o fato é que o país vive a necessidade de uma presidência forte por causa da crise.

FONTE: IHU On Line, nº 398. 13/8/2012