E a esquerda encontrou os pobres - CELSO F. ROCHA DE BARROS
O governo Lula foi o encontro entre a esquerda e os muito pobres, que
são mais da metade de nossa população. Os dois foram apresentados por um
parente em comum, Lula, que só se reconciliou com os muito pobres ao
adotar a política econômica dos muito ricos, o que o PT sempre achou
esquisito e dois livros recentes de intelectuais que participaram do
governo Lula ajudam a explicar.
O cientista político André Singer, ex-porta-voz de Lula, desenvolve em
"Os Sentidos do Lulismo" [Companhia das Letras, 280 págs., R$ 30] os
argumentos de um artigo publicado em 2009. Singer identificou um
deslocamento que passou despercebido enquanto ocorria: quando o
escândalo do mensalão derrubava a popularidade de Lula na classe média,
de 2005 a 2006, sua aprovação subia entre os muito pobres.
O eleitorado de Lula sofreu uma subtração grande de votos de classe
média e uma imensa adição de votos dos muito pobres. Até 2002, como
Singer havia documentado em estudo, dava-se o contrário: Lula e o PT se
saíam melhor junto a eleitores de classes mais altas e em regiões mais
desenvolvidas.
Mas o que, afinal, foi o lulismo e o que explica seu sucesso? Estudos
anteriores de Singer oferecem uma chave para ambas as respostas. Suas
pesquisas mostravam que os muito pobres eram conservadores (por exemplo,
contrários a greves), mas esperavam um Estado ativo na redução da
pobreza. Essa ideologia popular era consistente: os muito pobres, ao
contrário dos trabalhadores sindicalizados, não têm chance de recuperar
com greve o que a inflação lhes rouba de salário; daí também sua
preferência pelo combate à inflação.
Os muito pobres, por outro lado, não têm chances de melhorar de vida só
pelo mercado; precisam de políticas sociais que os ajudem. Ao vencer,
Lula modera o discurso, aceita o objetivo de manter a inflação baixa e
muda o foco para o combate à pobreza, desesperando petistas históricos,
mas virando o que os muito pobres esperavam.
Em comparação com os artigos iniciais, o livro de Singer é mais denso.
Ele traz seus estudos empíricos para conversar com quem chama de "dois
Franciscos": Weffort, autor de estudo clássico sobre populismo, e
Oliveira, talvez o principal crítico do PT à esquerda.
Contra Oliveira, Singer diz que o "reformismo fraco" do lulismo não é
"regressivo" e que seu potencial político dependerá de disputas futuras
(a lamentar, aqui, só o excessivo respeito de Singer pelo programa
petista dos anos 90).
E o trabalho de Weffort sobre o populismo foi a base para Singer
analisar a situação em que o líder paira sobre as classes e atende a
interesses populares sem pôr em risco a elite. Há vários trechos no
livro sobre as "linhas de continuidade" entre varguismo e lulismo.
PAULO WERNECK
EDITOR DA "ILUSTRISSÍMA"
Chega às livrarias no final do mês o livro que consolida a teoria do
cientista político André Singer sobre o "lulismo", expressão que ele
cunhou em artigos e em sua tese de livre-docência, defendida em 2011, no
departamento de política da Universidade de São Paulo.
Em "Os Sentidos do Lulismo" (Companhia das Letras), Singer expõe,
amparado por inúmeras tabelas e pesquisas, a versão brasileira de um
fenômeno observado nos EUA dos anos 1930, em torno do presidente
Roosevelt: o "realinhamento" do eleitorado, isto é, o rompimento de
determinados setores com adesões históricas, substituindo lideranças de
forma duradoura. Ou, como quer Singer no caso brasileiro, "definitiva".
Além de professor da USP, Singer é jornalista --foi secretário de
Redação da Folha-- e foi porta-voz de Lula na Presidência, de 2002 a
2007, de onde observou a guinada tanto do governo como da opinião
pública entre 2005 e 2006, quando começa o fenômeno do lulismo --e
eclode o escândalo do mensalão.
"Os Sentidos do Lulismo" é, porém, o trabalho de um cientista social
--por isso não espere as revelações e os bastidores que são a delícia
das memórias de ex-membros de governos. Singer diz ter a intenção de, um
dia, "fazer um depoimento, algo mais pessoal".
Leia abaixo a íntegra da entrevista, concedida em sua casa, na Vila
Madalena, em São Paulo, na qual comenta aspectos de seu trabalho e da
política brasileira.
Folha - Embora não esteja no foco da análise, o livro mostra como o
mensalão catalisou o antilulismo. O mensalão aglutina insatisfações?
André Singer - Foi o ponto em que a classe média definitivamente
se afastou do que depois veio a ser o lulismo. Esse é o momento em que o
lulismo e o antilulismo se cristalizam. A minha hipótese é que houve um
percurso algo silencioso, um pouco subterrâneo, de mudanças
importantes, que ocorreram ao longo do primeiro mandato do ex-presidente
Lula.
Essas mudanças acabaram por cristalizar uma nova polarização política,
que se expressou nas eleições de 2006. Se você pegar a curva de intenção
de votos pelo Datafolha desde o começo de 2006, quando ainda as pessoas
não estão muito ligadas na questão eleitoral, e for vendo como isso
transcorre ao longo de 2006, percebe que a configuração já é outra, bem
diferente daquela que tinha se dado em 2002. Houve esse deslocamento de
apoios: de um lado, os eleitores mais pobres se aproximando do Lula, e,
de outro, os eleitores de renda mais alta se afastando.
Essa clivagem não tinha ocorrido no Brasil desde 1989, quando aconteceu
no sentido inverso: Lula ganhou no segundo turno em todas a faixas de
renda, menos na mais baixa, e Collor perdeu em todas, menos na mais
baixa, o que mostra duas coisas. Em primeiro lugar, como esse eleitorado
é decisivo.
Há uma certa percepção distorcida, como se a classe média no Brasil
fosse maior do que efetivamente é. Se você usar critérios de mercado,
que não são os melhores, mas são os que estão disponíveis para falar de
classes A e B, o índice nunca passa de 15% no Brasil, está entre 10 e
15%. É pouca gente. No entanto, essas são as pessoas que leem jornal,
leem revista, e isso cria uma percepção um pouco alterada da realidade.
Esse eleitorado mais pobre é muito decisivo continuava decisivo em 2006
e, a meu ver, continua sendo muito decisivo em 2012. Os 50% que estão em
torno de uma renda familiar de até dois salários mínimos, o que é bem
pouco. Então eu acho que em 2006 se cristaliza essa mudança que eu
imagino que tenha ocorrido em 2005.
Isso mostra como esse eleitorado mais pobre é muito mais importante do
que se costuma pensar. Se você cruzar o apoio ao governo Lula com a
renda familiar, percebe que, em 2005, com a divulgação das notícias do
mensalão, começa a haver perda de apoio nos segmentos de classe média, a
partir de cinco salários mínimos de renda familiar. Minha hipótese é
que essa perda de apoio, vou usar uma palavra um pouco forte, pois na
história as coisas acabam por mudar, é definitiva. Eu creio que seja uma
mudança de longo prazo.
É um erro a teoria de que a classe média forma opinião da baixa?
Esse é um tema muito interessante, porque aí existem duas coisas.
Existem, de certo ponto de vista, um equívoco, mas eu diria até que é
mais importante uma mudança que eu penso que é estrutural. Por isso é
que eu pus o título meio provocativo na introdução, "Alguns temas da
questão setentrional", que é uma paródia daquele ensaio clássico do
[Antonio] Gramsci ["Alguns temas da questão meridional"].
Aí existe um equívoco, de que a classe média formata a opinião de
pessoas que têm menos renda, menos escolaridade, menos informação. Mas
isso é menos importante que uma mudança estrutural que aconteceu: havia
um grande bloco, formado pela adesão, sobretudo no Nordeste, dos
eleitores mais pobres do interior, ao voto conservador.
Isso é uma tradição política que vem de muito longe. Se você observar,
já no período 1945-64 essas são regiões que votam sistematicamente na
UDN e no PSD [partidos conservadores], não votam no PTB [partido de
Getúlio Vargas], só no final do período que o PTB começa a chegar no
Nordeste, primeiro nas regiões mais urbanizadas.
Aí vem o golpe militar. Se você observar, vai ver que a Arena sempre
ganha as eleições nessas regiões, até o final do regime militar. Ao
terminar a ditadura, o partido que emerge com mais força da antiga
Arena, que é o PFL, tem muita reserva de votos, até o governo Lula, a
ponto de o PFL, numa sobrevivência forte desse conservadorismo,
atravessar o regime militar e chegar a ter uma aspiração plausível de
disputar a Presidência República em nome do bloco comandado pelo FHC.
Se não fosse a morte de Luís Eduardo Magalhães, possivelmente ele fosse
candidato. As pessoas esquecem, em face do que está acontecendo com o
Democratas, que o PFL teve muita força nos anos 90. Acontece que o
lulismo rompeu esse bloco, rompeu com isso aí.
Rompeu ou se apropriou de certos mecanismos de comunicação direta do
líder com a massa? Em muitos momentos, lembra figuras como Antonio
Carlos Magalhães, no que se refere à forma de se comunicar com o povo,
sem mediação.
Eu diria que quebrou. Quebrou pelo seguinte: pela primeira vez, esse
setor do eleitorado está votando numa opção, vamos chamar assim,
popular. E isso, ao longo da história do Brasil, que eu saiba, nunca
aconteceu. Estudos feitos sobre o Brasil entre 1945 e 64 mostram que, se
não tivesse havido o golpe militar, provavelmente ia acontecer isso com
o PTB, ele ia chegar lá.
É até possível que uma das razões que tenha precipitado o golpe tenha
sido essa. A ascensão forte do PTB , a chegada do PTB em regiões onde
este tipo de opção, vamos chamar assim de popular, nunca tinha chegado.
Olhando historicamente, é uma quebra enorme. Agora, o que caracteriza a
sua pergunta sobre comunicação direta da liderança com uma determinada
massa, ou determinados tipos de política que podem ter favorecido esta
mudança, como é o caso do Bolsa Família, é uma pergunta que diz respeito
às características do lulismo.
Acho que há uma mudança muito nítida e importante, e boa parte do que
tento mostrar no livro é isso. Independentemente do juízo de valor que
se faça, se isso é bom, se isso é ruim, é importante notar que há uma
mudança estrutural. Esses eleitores se realinharam, e esse realinhamento
define um novo período da política brasileira.
Quanto à questão da comunicação direta, eu acho que existe, ou seja, o
ex-presidente Lula é um grande comunicador popular, o fato de ter origem
no Nordeste, de ter sido o primeiro presidente que tenha passado pela
experiência direta da miséria brasileira não é algo de menor
importância, é algo significativo.
Ele se comunica a partir de uma experiência que eu diria que a enorme
parte dos políticos brasileiros nunca teve. Essa comunicação por via de
uma experiência por parte de alguém que sabe se comunicar não me parece
um elemento menor. Mas ele evidentemente não é o único, ou seca, não é
um artifício
de comunicação, retórico.
Existe um elemento de comunicação também, mas ele não está solto, não
está desvinculado. Porque eu tento mostrar com dados que as políticas
são efetivas, têm resultados efetivos, palpáveis. Quantificar esses
resultados, chegar a uma proporção adequada para entender o significado
disso é o esforço que eu faço, e admito que é assunto para se debatido.
Seja como for, acho que consegui demonstrar que há bases materiais, do
contrário pode parece que é um mero efeito de retórica. A meu ver uma
parte errada da crítica que se faz ao populismo -não estou defendendo o
populismo- mas da análise equivocada que se faz ao populismo é dizer que
é tudo um efeito de falsa mágica. Como se houvesse uma enganação.
Existe a tentativa de outros partidos para tentar se apropriar de políticas lulistas?
Minha hipóteses é que, enquanto durar o lulismo, que entendo como a
expressão desse realinhamento eletoral, que, se eu estiver correto,
tenderá a marcar uma era no Brasil, enquanto isso durar vai haver
tentativas de apropriação que ficam muito nítidas na criação do PSD. O
PSD é a demonstração, a meu ver, de que eleitoralmente não dá para ficar
contra essas políticas. Então eles precisavam fundar um novo partido
para ficar no meio, para ficar numa posição parecida com a do PMDB, que
pode apoiar e pode também fazer alianças com o outro lado, a depender da
conjuntura, mas que não fica numa posição definida.
O PSD precisa ficar numa situação em que eles evitem a marca de serem
contra essas políticas, porque quem é contra não ganha eleição. Enquanto
o lulismo durar, esse tipo de movimento vai acontecer. O que significa
dizer que algumas dessas políticas, como o Bolsa Família, terão que ser
mantidas. Politicamente, não poderão ser removidas, porque o custo
eleitoral seria de um tamanho impagável por qualquer força que tenha
aspirações majoritárias. Por isso é que eu acho que a mudança que
ocorreu é importante, porque ela tende a ter durabilidade.
O PSD encarna aquilo que o cientista político Marcos Nobre chama de
peemedebismo, uma força que se impõe na política brasileira pela lógica
da adesão aos governos e do eventual bloqueio de políticas. O seu livro
passa ao largo do PMDB, não está no centro do livro.
De fato ele não está, mas eu tento discutir essa tese do Marcos Nobre,
ainda de maneira rápida, porque quando ele escreveu os artigos em que
defende essa tese eu já estava com parte do livro escrita e não tinha
condições de mudar. A tese dele é interessante, merece ser considerada,
mas não acho que o PMDB seja o elemento central, que caracteriza a
política brasileira. Esse elemento existe, esse partido que fica no
meio, que pode estar aqui, pode estar ali, que tem um compromisso
programático baixo, que permite esse tipo de oscilação, que é o que ele
chama de peemedebismo.
O lulismo provocou uma repolarização da política brasileira, essa é a
diferença entre a análise dele e a minha. Acho que não está havendo nem
essa homogenização, nem essa pasteurização completa da política
brasileira. Reconheço que essa tese é um pouco difícil de demonstrar,
mas penso que houve, em função desse movimento de ascensão social, uma
reação muito forte da classe média. Isso é um fenômeno social de
proporções significativas. Mas o movimento a meu ver tem raízes nessa
mudança que o lulismo está trazendo para o Brasil.
Eu não esperava, mas vejo acontecer essa enorme reação da classe média
brasileira contra isso, o que trouxe à tona um aspecto de
conservadorismo arraigado. Ou seja, a classe média está, nesse caso,
propriamente reagindo. Quando você olha para as estatísticas eleitorais,
você observa esse fenômeno.
Isso já está acontecendo agora,
repetidamente. O PT é bem votado nas camadas mais pobres e é mal votado
nas classes médias, considerando classe média um rol extenso, acima de
cinco salários de renda familiar. Isso é um tipo de polarização que não
era frequente no Brasil, e por isso eu afirmo que não estamos num
período de peemedemização. Há uma polarização e essa polarização é
significativa.
O que a torna pouco visível é que há uma decisão do projeto lulista de
não radicalizar. Isso é parte central do projeto: que não haja
radicalização política. Então o governo se empenha em não haver
radicalização política, e até a própria oposição, ainda que haja alguns
momentos nuançados nesse percurso, ao também não está apostando numa
radicalização. A própria formação do PSD é exemplo disso. O esvaziamento
do atual DEM e formação do PSD é uma opção pela não radicalização.
Mas, se não radicalizar parece ser uma opção dos atores políticos, na
verdade isso está encobrindo uma polarização significativa, que faz com
que as opções PT e PSDB hoje não sejam a mesma coisa. Portanto me parece
errado falar em pasteurização, peemedebização e homogenização, ainda
que eu reconheça que o PMDB tem um papel. Eu tento mostrar que o PMDB
foi incorporado nessa aliança mais recente, que elegeu a Dilma, como uma
espécie de Poder Moderador que ele está desempenhando de maneira bem
consciente.
O que pensa da crítica ao lulismo por ter desmantelado sindicatos?
O lulismo é uma opção de fazer essas mudanças de maneira pactuada. Por
isso, falo em pacto conservador, que implica um preço a pagar: as
mudanças serão bem lentas. Todo o bloco político diretamente vinculado
ao lulismo ou influenciado por ele sofre a repercussão dessa opção. Há
uma espécie de rebaixamento do antigo radicalismo do PT e de todas as
suas áreas de influência, quem sabe até os próprios sindicatos.
Tenho dúvida, mas não sou especialista no assunto, é se houve um
movimento de cooptação que, por assim dizer, desdentou os sindicatos. Um
exemplo destes dias é a posição da CUT em relação à greve dos
funcionários públicos. A CUT está se comportando, segundo observo, como
uma central sindical. Não é parte do governo, mas do movimento sindical,
e está cumprindo sua função de expressar interesses dos trabalhadores.
Chama a atenção no livro que você procura fundamentar o famoso bordão
de Lula, "nunca na história desse país", arriscando uma interpretação
mais profunda para o que parece mero lance retórico.
O que tento fazer ali, e o livro todo tem essa intenção, é explicar. A
minha principal aspiração é fornecer um hipótese explicativa. Essa
frase, que irrita muito uma parte da opinião pública, tem a ver com
isso: ele não está falando com os chamado formadores de opinião, mas com
pessoas para as quais de fato isso faz sentido.
Não que essas políticas tenham começado rigorosamente no governo Lula,
mas elas deram um salto de qualidade de tal ordem que, para esse setor
mais carente da sociedade, faz sentido a ideia de que agora, pela
primeira vez, o Estado está olhando para mim, está tentando me amparar.
A experiência no Planalto trouxe mais embaraços ou clareza para enxergar as coisas?
O livro foi feito em duas etapas, muito separadas. Primeiro, quando eu
estava no governo, nunca imaginei o que ia escrever o que acabei
escrevendo, porque estava lá na condição de jornalista, não de cientista
político. E na verdade a atividade de governo é de um tal grau de
envolvimento que não dava tempo de refletir. Tomei notas para mim mesmo,
mas nada que envolvesse algum grau de reflexão e leitura. E eu também
tenho por limitação pessoal essa incapacidade fazer duas coisas ao mesmo
tempo.
Fiquei mergulhado na coisa do governo e, quando saí, em maio de 2007,
voltei para São Paulo, reassumi as aulas na USP e comecei a pensar o que
ia pesquisar, pensei que estava muito interessado em ver o que
aconteceu. E fiz um percurso quase praticamente do zero, desde olhar os
dados eleitorais, fazer leituras. Num certo momento, relendo o "18
Brumário" de Marx, me veio essa ideia: eu acho que o que aconteceu foi
um tipo de configuração que lembra o apoio dos camponeses ao Luís
Bonaparte.
Tudo isso aconteceu depois, não foi durante. Eu diria para você que a
resposta é dos dois lados: acho que ter estado lá me ajudou, porque eu
comecei a me lembrar de coisas tinham acontecido, e acho que ter visto
aquilo acontecer no dia a dia, quando fui reconstruir, tenho a impressão
que me ajudou. Por outro lado, sempre fico muito temeroso de estar
sendo levado pelo meu desejo.
Ou seja, como obviamente fiz parte do governo e o defendi, fico sempre
me perguntando de novo, de novo e de novo, se não estou me
autoenganando. Isso sempre me traz certa dúvida com a qual eu tive que
lidar. Eu até coloco isso no livro. Eu me dei conta de que o que eu
estava fazendo envolvia um risco.
Você teme que o livro seja percebido como alicerce teórico do governo, sem independência intelectual?
Temo, pois acho que seria uma forma de desqualificar o trabalho. Embora
eu possa estar equivocado em tudo, desde as premissas até as conclusões,
passando pelos argumentos, julgo que fiz um esforço intelectual honesto
para demonstrar aquilo que estava vendo.
Estou comprometido com um tipo de independência crítica que é a
contribuição que os intelectuais podem e devem dar. Gostaria que meu
trabalho fosse lido dessa forma, que fosse objetado e contestado, mas
com base na argumentação interna e nas evidências empíricas que
proponho, e não em uma afirmação desse tipo, que pode simplesmente
desqualificar.
FOLHA DE S.PAULO
19/08/2012