"Não tenho vergonha de dizer ao povo brasileiro que temos de pedir desculpas. O PT tem de pedir desculpas..." Lula, em 2005
O escândalo do mensalão em 2005
não impediu que Lula da Silva se reelegesse em 2006 com mais de 60% dos
votos. Isso sugere algumas possibilidades: a maioria dos eleitores não
estava informada dos fatos; informada ou não, a maioria não estava
convencida do envolvimento do presidente; ou a maioria, em qualquer
caso, não associou o uso indevido de recursos públicos para fins
privados - a corrupção - a crimes políticos passíveis de punição, mesmo o
voto sendo o instrumento par excellence dos cidadãos para
responsabilizar governos. A cultura política dos brasileiros favorece a
corrupção?
A corrupção é um dos problemas
mais sérios que assolam as novas e velhas democracias. Envolve o abuso
do poder público para benefício privado, inclusive vantagens para
partidos de governo em detrimento da oposição. Frauda a igualdade
política, pois seus protagonistas ganham poder e benefícios políticos
incompatíveis com os que alcançariam através de modos legítimos de
competir politicamente. Distorce a dimensão republicana da democracia ao
fazer as políticas públicas resultarem não da disputa entre projetos
diferentes, mas de acordos de bastidores favorecendo interesses
espúrios; e assim, afeta a legitimidade da democracia.
Estudos convencionais sustentam
que ela deriva do grau de desenvolvimento social e econômico das nações,
do seu desenho institucional ou do desempenho de governos; e tratam de
consequências sistêmicas negativas como o clientelismo e o nepotismo ou
de suas supostas implicações positivas para a estabilidade política em
função do engraxamento de estruturas burocráticas que ela facilitaria.
Modernização e desenvolvimento são vistos como condição necessária para
inocular o sistema político de crimes contra o interesse público.
Sociedades menos desenvolvidas ou de experiência democrática
insuficiente tenderiam a não distinguir entre pagamentos legítimos e
prebendas ilegais nas relações entre agentes públicos e privados e
estimulariam a tolerância social diante de comportamentos
antirrepublicanos, tornando letra morta o primado da lei.
Sistemas democráticos
competitivos colocam o comportamento de burocratas e políticos sob
vigilância dos eleitores. A associação entre indicadores de liberdades
civis e políticas e a percepção da corrupção, baseada em índices
internacionais agregados, varia, mas a longevidade da democracia e a
liberdade de imprensa asseguram a responsabilização de políticos
corruptos. Não impedem a existência da corrupção, mas oferecem
alternativas para a sociedade punir os responsáveis.
Esses estudos contribuíram para o
conhecimento do problema, mas não abordaram a influência da cultura
política ao lado de outros fatores que afetam a qualidade da democracia.
Estudos recentes sobre a América Latina estão mudando isso. Após a
democratização, escândalos de corrupção atingiram a Argentina de Carlos
Menem, o Peru de Alberto Fujimori e Alan García, o México de José Lopez
Portillo e Carlos Salinas de Gortari, o Equador de Abdala Bucaram e a
Venezuela de Rafael Caldera e Carlos Andrés Pérez, este, apeado do
poder, como Collor de Mello, por um impeachment motivado por uso ilegal
de recursos públicos. A corrupção foi associada a três fatores
principais: oportunidades criadas pela dispersão de poder com mais
agentes transacionando favores públicos em troca de benefícios privados;
reformas neoliberais que ampliaram o poder dos agentes sobre bens como
empresas públicas e aumentado as oportunidades de negociações espúrias; e
emergência de lideranças personalistas e carismáticas levadas ao
governo pela mobilização de massas através da TV.
Campanhas eleitorais caras com o
uso da TV e do marketing exigem recursos só alcançáveis pela promessa
de favores a financiadores privados. Isso teria levado os partidos a
recorrer a mecanismos como o caixa 2 ou os chamados gastos eleitorais
não contabilizados, como dirigentes do PT tentaram justificar o uso
ilegal de recursos privados no Brasil. Análises da percepção do fenômeno
na América Latina confirmaram que países desenvolvidos têm índices mais
baixos de corrupção que os menos desenvolvidos, mas isso não explica
por que Argentina, Brasil, México e Venezuela são classificados pela
Transparência Internacional como muito corruptos. O advento da
democracia per se, e mesmo sua continuidade, não garantem o controle da
corrupção. O caráter endêmico do fenômeno sugere que, ao lado do
aperfeiçoamento de mecanismos institucionais, a cultura política também
conta.
As experiências neopopulistas na
região com lideranças personalistas e carismáticas estimulando a
relação direta entre líderes e eleitores, desqualificando mecanismos de
fiscalização como parlamentos e tribunais de conta, sugerem isso. Mas o
Brasil não seria passível dessa distorção da democracia, segundo
analistas. Seu desenvolvimento econômico e institucional e suas
políticas sociais teriam criado condições para a estabilidade política
e, aparentemente, menor influência de práticas neopopulistas. O
argumento pode ser testado pelo exame do papel da cultura política na
continuidade da corrupção. Qual era a percepção dos brasileiros dos
fatos quando ocorreram as denúncias do mensalão? Como a opinião pública
avaliou a corrupção em momentos-chave da história política como 1993 e
2006, ou seja, um ano após os dois mais importantes casos recentes, o de
Collor de Mello em 2002 e o de Lula da Silva em 2005?
As questões envolvem os valores e
atitudes dos eleitores diante do abuso do poder. Associada ao exercício
do direito de voto, a accountability vertical depende de que as pessoas
sejam capazes de identificar se a corrupção existe. É o ponto de
partida da decisão de continuar convivendo com políticos que praticam a
corrupção ou puni-los em defesa dos interesses públicos. Em 2005,
pesquisas mostraram que 58% dos entrevistados tinham conhecimento das
denúncias de corrupção envolvendo o governo Lula e 78% acreditavam que o
presidente tinha muita ou alguma responsabilidade nos fatos, embora
muitos não vissem seu envolvimento direto. Em 2006 os entrevistados
consideraram que a situação da corrupção no país tinha piorado não só no
governo de Collor, mas também no de Lula em comparação com os dos
antecessores. Minhas pesquisas de 2006 incluíram perguntas sobre a
corrupção e os resultados mostraram uma relativa aceitação social dela
no País. O que explica isso?
Desenvolvimento, desempenho
institucional e a ação de governos são determinantes daquela aceitação,
mas também a cultura política. Em regiões menos desenvolvidas a
aceitação da noção "rouba, mas faz" foi maior, assim como entre os menos
escolarizados, mas, mais importante, entre os que avaliaram
positivamente o governo Lula. Os conservadores quanto ao papel do Estado
diante das desigualdades sociais e econômicas também apoiavam o rouba,
mas faz, e só os favoráveis a valores democráticos ou que rechaçaram a
volta de alternativas autoritárias eram contra. Ou seja, a aceitação
social da corrupção era maior nas regiões menos desenvolvidas, entre os
politicamente autoritários, socialmente conservadores e os satisfeitos
com o governo Lula. A aceitação da corrupção afeta a adesão à
democracia, a confiança nas instituições democráticas ou a participação
política?
As análises mostraram que afeta
negativamente, ao contrário das avaliações positivas do governo e da
economia. A aceitação da corrupção também se associou às opiniões
favoráveis a que os presidentes deixem de lado as leis e o Congresso
Nacional em situações de crise, à volta dos militares ao poder, à adoção
de um sistema de partido único no País e a maiores índices de
desconfiança nas instituições públicas.
Esses traços da cultura política
impactam a qualidade da democracia ao comprometer a adesão ao regime,
estimular a aceitação de escolhas autoritárias e inibir a participação
política. Aceitar a corrupção faz as pessoas admitirem que a lei pode
ser fraudada, que sua capacidade de fazer valer direitos inexiste e que
os rumos da política não mudam nunca. Mas a experiência de democracias
consolidadas mostra que a cultura política não é imutável: ela se
transforma sob o impacto de mudanças sociais, desempenho de instituições
como o STF e, principalmente, o exemplo e a responsabilidade de líderes
políticos e de partidos. No Brasil, contudo, como ficou claro no caso
de Lula, do PT e de outros partidos, esse é um dos elos de que padece a
democracia.
* José Álvaro Moisés - é
professor titular do Departamento de Ciência Política da USP e autor do
E-Book O Papel do Congresso Nacional no Presidencialismo de Coalizão.
Este texto é resumo de um capítulo do livro A Desconfiança Política e os
seus Impactos na Qualidade da Democracia - O Caso do Brasil (EDUSP,
2012, NO PRELO)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
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